Etnografia dos Povos Kachin: Seus Rituais e Mitologia

Por Edgar Indalecio Smaniotto
Filósofo, mestrando em Ciências Sociais pela UNESP de Marília e resenhista da revista macroCOSMO.com

Neste artigo pretendemos, usando como fonte bibliográfica a monografia “Sistemas Políticos da Alta Birmânia”, de Edmund Ronald Leach, apresentar ao leitor a mitologia dos povos Kachin, habitantes da Birmânia. Todas as citações se referem a esta monografia. Dividimos o artigo em duas partes, a primeira referente a apresentação da religião e mitos Kachin e a segunda a interpretação destes mitos.

Organização Religiosa e Mitologia entre os Kachins

Vejamos primeiro as Funções Sacerdotais na Sociedade Kachin:

jaiwa – contador de sagas
dumsa – sacerdote
hkinjawng – açougueiro ritual (reparte a carne durante o ritual de sacrifício).
hpunglum – ajudante do açougueiro ritual

O acesso a estes cargos sacerdotais se dá por meio de aprendizagem ou habilidade adquirida. Mas não são cargos hereditários. Esta pratica da arte sacerdotal traz ao executante consideráveis prestígios e privilégios.

A recitação das sagas pode durar até dias nos rituais de manau, por isso o sacerdote capaz de realizar tal proeza tem o título especial de jaiwa, em 1940 (pág. 240), existiam apenas 2 ou 3 homens capazes de fazer este ritual, assim podiam cobrar uma remuneração substancial. Atribui-se ao jaiwa a capacidade de cavalgar um tigre.

nwawat – adivinho
myihtoi – médium

Estes não são necessariamente sacerdotes. Em geral os Kachins recorrem aos adivinhos para diversas questões. Onde devo construir minha casa? Com quem devo me casar? E etc. Muitas pessoas insistem ser adivinhos nesta sociedade, mas é um cargo de pouco prestigio. Mas ainda assim tem um poder considerável, vejamos o seguinte exemplo:

Quando deve ser dirimida uma pendência, cada lado escolhe um corpo de anciões e chefes para atuarem como agentes na arbitragem. Obviamente muita coisa dependerá de quem for escolhido, mas a decisão não cabe a nenhuma das partes interessadas, é feita por adivinhação.” (pág. 241)

Já os médiuns tem um status mais elevado que o dos adivinhos. Teoricamente os médiuns não se fazem (como os adivinhos), mas nascem. Assim esta seria uma faculdade natural e não apreendida com um mestre. Eles tendem a ser consultados quando a adivinhação falha.

A ideologia da mediunidade é a de que o médium em estado de transe é capaz de transportar-se para o mundo dos nats e consultá-los em pessoa, ou, alternativamente, a de que ele pode estabelecer comunicação direta com os nats e persuadir um nat menor, como um antepassado recém-falecido, a vir falar através da sua própria boca humana.” (pág. 242)

Costuma-se atribuir a estes poderes físicos supranormais – subir em uma escada cheia de espadas com a ponta para cima ou caminhar ao longo de um fio de algodão.

Lugares sagrados

Toda a casa de um chefe kachin deve possuir um compartimente especial conhecido como madai dap, que é um santuário dedicado ao nat Madai, o chefe dos Espíritos Celestes (mu nat), tido como um parente afim de um dos ancestrais remotos do chefe.

Já os homens comuns possuem um pequeno santuário dedicado ao espírito ancestral do dono da casa. Este é geralmente chamado de macha nat (espírito humano) ou gumgun nat (espírito protetor), recebe oferendas com bastante freqüência, visto que qualquer dificuldade que ocorra, logo se recorre a este.

Na entrada da maioria das aldeia existe uma área sagrada destinada a rituais, o numchang. Usados em ocasiões de rituais comunitários. Geralmente feito de bambu e pedras, cercado de arvores.

Além disso, na frente de cada casa existe um pequeno altar de bambu (hkungri). Onde é fixado também um poste sacrifical (wudang), neste é pendurado os crânios de animais oferecidos à comunidade em sacrifício, pelo dono da casa, que assim ostenta sua prosperidade. Afinal se um homem esta disposto a sacrificar um búfalo, ele deseja que seus vizinhos lembrem disto. Vale lembrar, entretanto que nenhum altar pode ser usado duas vezes, assim a cada cerimônia é necessário reconstruir este.

A Mitologia Kachin

Os espíritos (nat) kachins são “homens não-naturais ampliados”: “Simplesmente estendem a hierarquia humana de classe a um nível mais elevado e dão-lhe continuidade. No mundo nat, como no mundo humano, existem chefes, aristocratas, plebeus e escravos. Os plebeus do mundo nat são simplesmente os ancestrais mortos dos plebeus do mundo humano; os aristocratas do mundo nat são os chefes humanos falecidos. A fim de obter concessões de um superior humano, o individuo começa por fazer-lhe uma doação, colocando desse modo o superior em sua dívida. Para obter concessões dos espíritos, faz o mesmo: “dá-lhes honra” (hkungga jaw), o que, nesse caso, significa fazer um sacrifício. Ao aceitar a oferenda, o espírito apenas absorve o “alento” ou “essência” (nsa) dela, para que, convenientemente, os seres humanos possam consumir a carcaça.” (pág. 224)

Hierarquia de seres sobrenaturais kachins:

nat – um espírito, um ser sobrenatural.

Divididos nas seguintes classes:

ga nat – espírito da terra. São o topo da hierarquia. Seu chefe é Chadip, que é considerado uma “reencarnação” de Chyanum-Woichun, o progenitor-progenitora bissexual de todas as coisas.

um nat – espírito do céu. Esses são os chefes (d uni) entre os nats. Filhos de Chadip. O de status mais elevado é Madai. Sua filha Madai Jan Hpraw Nga, desposou um ser humano, o primeiro antepassado de todos os chefes Kachins. Daí a relação de poder destes com estes espíritos.

gumgun nat, macha nat – nats ancestrais – é geralmente um acestral da família, avó, bisavó e etc. É para ele que é feito o altar caseiro.

uma nat. É o espírito ancestral da linhagem do chefe. Este será o intermediário do chefe com Madai e desta com Chadip. Mantendo assim a relação de hierarquia.

jahtung, sawan, lasa – espíritos do mal, assombrações.

Jahtung: confunde os planos de caçadores e pescadores. São o progênito de uma jovem humana e do “coração do cervo”.

Sawan: traz desgraças as mulheres em trabalho de parto. As mulheres que morrem de parto se tornam sawan. Ou a prole de uma humana com um macaco.

Lasa: provoca acidentes fatais. As pessoas que morrem de acidente se tornam Lasa.

Maraw – sorte. Uma oferenda a este espírito traz boa sorte.

Raw – desamarrar ou cancelar. Podem, apesar de sua baixíssima origem, podem cancelar dádivas aos deuses mais altos. Ou seja, se um sacerdote diz que através de um sacrifício alguém terá uma determinada dádiva, e isto não acontece à culpa é deste espírito. Uma forma de proteger o sistema religioso.

Hpyi – espíritos de feiticeiro. São espíritos hereditários que se apossam de alguém, causando doenças. Não existe cura, nem o exorcismo se mostra eficaz. O único remédio é matar o hospedeiro humano, e muitas vezes toda a sua família. Geralmente quando uma doença se mostra incurável, ele é o responsável.

II – Dragão-aligator (o semimítico baren): é um mostro fabuloso, que habita os rios e pântanos. Geralmente aparecem como ancestrais dos kacnis, ainda que parece que estes ainda acreditam poder encontrar estes. A por exemplo o caso de Tangai ma Já In, que tem um filho ilegítimo com outro homem, e a criança é roubado por um aligátor, que se esconde numa caverna. Mediante um sacrifício ao nat celeste, este fende a montanha e recupera a criança.

III- Karai Kasang (o Deus Cristão): após a conversão ao cristinanismo, seja por batistas ou católicos, os Kachins assimilaram o Deus Cristão com uma espécie de nat celeste superior.

Interpretação da Religiosidade e Mitologia dos Kachins

Para Edmund Ronald Leach em geral os antropólogos ingleses, seguindo Durkheim, dividem as ações sociais em duas grandes classes.

Ritos religiosos: sagrados
Atos Técnicos: profanos.

Entretanto a magia por exemplo dificilmente pode estar ligada a apenas uma destas categorias. Segundo Leach.

Malinowski, situa a magia no terreno do sagrado.
Mauss parece considera-lá profana.

Mas, independentemente de a principal dicotomia estar situada entre mágico-religioso (sagrado) e o técnico (profano), ou entre o religioso (sagrado) e o mágico-religioso (profano), permanece o pressuposto de que situações de algum modo sagradas e profanas são distintas como totalidades. Ritual é pois uma palavra usada para descrever as ações sociais que ocorrem em situações sagradas. Uso a palavra de modo diferente deste.” (pág. 74)

Podemos até ter: “Num extremo temos ações que são inteiramente profanas, inteiramente funcionais, pura e simples técnica; no outro, temos as ações que são inteiramente sagradas, estritamente estéticas, tecnicamente não-funcionais. Entre esses dois extremos temos a grande maioria das ações sociais que participam em parte de uma das esferas e em parte da outra“. (pág. 76)

Deste ponto de vista seguido por Leach, “técnica e ritual, profano e sagrado não denotam tipos de ação, mas aspectos de virtualmente qualquer tipo de ação. A técnica tem conseqüências materiais econômicas que são mensuráveis e predizíveis; o ritual, por outro lado, é uma declaração simbólica que diz alguma coisa sobre os indivíduos envolvidos na a cão.” (pág. 76)

Desta forma o autor cita dois exemplos:
A técnica de cultivar arroz dos Kachins segue toda uma técnica (limpar o chão, jogar as sementes, cercar o terreno e capinar as ervas daninhas). Mas os Kachins ao fazer este serviço técnico usam todos os tipos de adornos e ornatos, que são supérfluos para um maior rendimento econômico. Mas são esteticamente importantes para dar a esta tarefa um caráter propriamente Kachin.

Processo semelhante ocorre no momento em que se mata o gado e é feita a distribuição da carne, este ato é visto possivelmente como uma boa festa, mas existem coisas que ocorrem neste ato como os processos de qual concerne o matadouro, o cozimento e a distribuição desta carne que são irrelevantes (ritualísticos). O que da um novo patamar cultural e estético a um ato puramente técnico e econômico.

Então “a técnica tem conseqüências materiais e econômicas que são mensuráveis e predizíveis; o ritual, por outro lado, é uma declaração simbólica que “diz” alguma coisa sobre os indivíduos na ação“. (pág. 76)

Sendo que, “são estes outros aspectos que têm significado como símbolos de status social, e são esses outros aspectos que descrevo como rituais quer envolvam ou não diretamente qualquer conceituação do sobrenatural ou metafísico.” (pág. 76)

Por sua vez o “mito é a contrapartida do ritual; mito implica ritual, ritual implica mito, ambos são uma só mesma coisa… Ao meu ver, o mito encarado como uma afirmação em palavras “diz” a mesma coisa que o ritual encarado como uma afirmação em ação. Indagar Sobre o conteúdo da crença que não está contido no conteúdo do ritual é um contra-senso.” (Pág. 76) Os mitos seriam então sempre modos de descrever certos tipos de comportamento humano. Como faz a própria sociologia ao descrever as ações observadas pelo sociólogo. Mito e tradição são basicamente uma sanção ou justificativa de uma ação ritual.

Para ele o mito não é uma espécie de história, visto que, cada conto tradicional tem diferentes versões , cada uma delas tendendo a corroborar as alegações de um direito adquirido diferente.

Dois etnógrafos kachins, Harson e Gilhodes, recontam de maneira bastante aproximada o mesmo mito, mas uma é o inverso da outra. Na história de Gilhodes, o irmão mais velho é afogado num ataúde que ele preparou para o irmão caçula e este se torna o chefe poderoso. Na história de Hanson, os papeis são invertidos e o irmão caula, tendo por longo tempo defraudado o mais velho, é finalmente afogado no ataúde que preparou o irmão mais velho.” (pág. 309)

Nem uma nem outra versão é mais correta, ambas são validadas por quem conta. As contradições entre versões antagônicas da mesma história adquirem então um novo significado. Em cada caso as implicações estruturais do mito são totalmente ambíguas e variam de acordo com os direitos adquiridos do indivíduo que esta citando a história. Concluísse então que, “mitos e ritual são uma linguagem de signos em função da qual se expressam as pretensões a direitos e a Status, mas é uma linguagem de argumentação, e não um coro de harmonia. Se o ritual é as vezes um mecanismo de integração, pode-se igualmente dizer que ele é freqüentemente um mecanismo de desintegração. Uma assimilação adequada desse ponto de vista requer, dizia eu, uma mudança fundamental no atual conceito antropológico de estrutura social.” (pág. 319)

Leach também se dedica a descrever as influencias que o ambiente tem ao determinar a organização dos povos. Para ele os contrates econômicos e culturais observados entre os habitantes das terras altas e os das terras baixas da sociedade Kachin é primeiramente ecológico.

Muito embora as duas categorias de população falem a mesma língua, poder-se-ia esperar encontrar diferenças culturais acentuadas entre os dois grupos e, em analogia com regiões como a Escócia e o Norte da Itália, poder-se-ia também prever um desprezo cioso e recíproco entre as partes rivais. E é o que acontece.” (pág. 83)

Os habitantes das terras baixas e altas não compartilham uma língua comum e nem traços culturais, com exceção de materiais como panelas compradas dos chineses. Já habitantes dos vales, “birmaneses” e “chans”, praticam o cultivo de arroz irrigado. Que geralmente lhes proporciona um excedente. Tendo uma pequena urbanização e se constituindo como campesinato semiletrado.

Os povos das colinas por sua vez não conseguem gerar excedente, tendo uma técnica de rotação de culturas. Ou desenvolveram aspectos de se relacionar como suseranos dos povos dos vales. Estes lhes paga uma tacha de arrendamento. Já os povos das colinas cobram tachas para o uso das vias de comunicação entre os vales, por eles controladas. Ou estes são contratados como mercenários pelos povos dos vales.

Esperamos com este pequeno artigo termos dado uma idéia da rica mitologia Kachin ao leitor. Menos conhecida do que aquelas de origem europeia é extremamente rica. Não podemos esquecer entretanto que o livro de referencia usado por nos foi escrito a quase meio século atras, muita coisa neste período pode ou não ter mudado. Ainda que a Birmânia seja um país com relativamente pouca influencia da cultura ocidental.