Pintura da Batedura do Oceano

A Batedura do Oceano

Por André Mellagi

O episódio da mitologia hindu conhecido como a Batedura do Oceano (do sânscrito “samudramathana”) é um dos acontecimentos primordiais que relata o surgimento de divindades, seres míticos da cosmologia indiana, festivais e fenômenos naturais. Mas, antes de começar a narrar este mito, é preciso considerar certos aspectos do universo hindu para melhor compreender esta importante história.

Na mitologia hindu, há duas classes de seres espirituais que, apesar de compartilharem da mesma linhagem paterna, vivem em eterno conflito pelo poder dos três mundos. Os devas e os asuras são filhos do sábio Kashyapa, respectivamente com as deusas Aditi e Diti, que disputam o domínio sobre o mundo terrestre (Bhur), atmosférico (Bhuvar) e celestial (Swarga).

Os devas são considerados seres de luz comandados por Indra, um dos principais deuses dos Vedas que está relacionado a fenômenos atmosféricos (chuvas e relâmpago). Os asuras, por sua vez, são seres obcecados pelo poder e pela ganância, que geralmente são identificados com demônios. Acima desses está a Trimurti, ou trindade hindu, representada pelos deuses Brahma (criador), Vishnu (preservador) e Shiva (destruidor).

Estátuas do Trimurti

Assim como o ciclo de nascimento, morte e renascimento (samsara) é um dos pilares do hinduísmo, é pela interação destes princípios de criação, preservação e dissolução que permite que o tempo e o cosmos na mitologia hindu sejam cíclicos, em que há não este mundo somente, mas sim mais um mundo que surgiu, que está sendo mantido e que será destruído, para que um novo mundo seja futuramente criado.

Quando a ordem cósmica está em perigo, principalmente quando há hegemonia dos asuras sobre os devas, Vishnu sai de sua morada celeste para interferir nos três mundos como avatar, ou seja, como uma manifestação encarnada em alguma forma animal, humana ou híbrida, para re-estabelecer a ordem, o dharma. No episódio da batedura do oceano, Vishnu encarna em seu segundo avatar, em forma de uma tartaruga gigantesca chamada Kurma.

Kurma

Em uma época em que a terra estava mergulhada em um grande dilúvio, o mundo tal como conhecemos ainda não havia surgido. Havia apenas os devas, asuras e sábios celestes que também são responsáveis pela criação junto com Brahma, o deus de quatro faces que carrega os Vedas, textos sagrados do hinduísmo. Todo o resto estava mergulhado no oceano.

Quando Indra fez pouco caso de uma guirlanda presenteada pelo sábio Durvasas, este amaldiçoou os deuses tirando-lhe o vigor. Preocupados com a vantagem que os asuras teriam em conquistar os três mundos, pediram proteção a Brahma, que os conduziu até a morada de Vishnu, deitado sobre a serpente de mil cabeças Ananta que boia no oceano de leite. Vishnu explicou que somente bebendo do néctar da imortalidade (amrita) os deuses recuperariam sua força, mas que precisariam da ajuda dos asuras.

Vishnu, empunhando seu disco, sua clava, o lótus e a concha, disse que precisariam bater o oceano para extrair o néctar, e tal empreendimento só seria possível tomando o monte Mandara como uma batedeira enrolada pela serpente Vasuki. Os devas e asuras deveriam tomar a cauda e a cabeça da serpente como se fosse uma corda, para então girar a montanha de maneira que chacoalhasse o oceano para que o amrita surgisse. Preocupados com a imortalidade que estaria disponível também aos asuras, Vishnu consolou os devas de que o néctar não seria deles, pois sabia que os asuras fariam de tudo para ter o néctar só para eles.

Os devas foram até os asuras e explicaram o plano de extrair o amrita. Desejosos de tal poder, os asuras aceitaram participar do empreendimento. Jogaram ervas sobre o oceano e prepararam-se; a serpente Vasuki deu algumas voltas em torno do monte Mandara e teve sua cabeça puxada pelos asuras, enquanto a cauda foi puxada pelos devas.

Posicionados, os devas e os asuras começaram a girar o monte Mandara, que começou a afundar por não ter um apoio. Vishnu então desceu na forma de Kurma, a tartaruga gigante que apoiou em seu casco a base da montanha para que ela ficasse estável e pudesse girar.

Porém, enquanto o oceano era batido, um mortal veneno começou a aparecer, ameaçando tanto os devas quanto os asuras. Foi então que ambos pediram a proteção do Senhor Shiva, o deus asceta e yogue que medita sentado sobre uma pele de tigre e que possui o tridente, o tambor e serpentes como adereços. Shiva bebeu todo o veneno do oceano que ficou estancado em sua garganta, tornando-a azul. Foi a partir de então que Shiva é conhecido com o nome de Nilakantha, aquele que possui o pescoço azul. Os devas e asuras agradeceram a Shiva e continuaram a bater o oceano.

Samudramathana ou Batedura do Oceano

Do oceano surgiram diversos seres míticos. Vieram as ninfas celestes, as belas dançarinas conhecidas como apsaras; apareceu a vaca propiciadora de todos os bens, Surabhi; o cavalo branco Ucchaishrava de Indra; a árvore celestial Parijata e Varuni, a deusa do vinho. Também emergiu das águas Lakshmi, a deusa da fortuna e prosperidade, que tantos os devas e asuras pararam para admirá-la e celebrar sua presença. Lakshmi foi junto a Vishnu, tornando-se sua eterna companheira.

Enfim, surgiu do oceano Dhanvantari, o deus da medicina ayurvédica carregando um pote cheio de amrita. Os asuras tomaram-lhe o néctar sem distribuir aos devas, que ficaram aterrorizados com o que poderia acontecer. Nesta luta pelo pote sagrado, quatro gotas do amrita caíram onde mais tarde surgiram as cidades de Haridwar, Ujjain, Nashik e Prayag (Allahabad), locais onde a cada 12 anos é realizada a maior peregrinação religiosa do mundo, o Maha Kumbh Mela.

Após os asuras tomarem o pote de Dhanvantari, Vishnu assumiu a forma de uma irresistível mulher chamada Mohini, que encantou os asuras a tal ponto que esqueceram do poder que tinham nas mãos. Mohini, com sua extrema beleza, seduziu os asuras que concordaram que seria ela quem distribuiria o amrita a todos. Mohini tomou o pote de amrita dos asuras e começou a oferecer o néctar aos devas.

Um asura chamado Rahu disfarçou-se de deva para tomar também o néctar. A Lua (Chandra) e o Sol (Surya), percebendo o disfarce, avisou os devas que Rahu estava bebendo o néctar. Vishnu reassumiu sua forma original e cortou a cabeça do asura com sua arma de disco sudarshan antes que ele engolisse o amrita. Porém, somente a cabeça do asura se tornou imortal por ter degustado do néctar. Foi a partir de então que Rahu procura sempre se vingar da Lua e do Sol de tempos em tempos, tentando engoli-los com a sua cabeça sem corpo, causando o eclipse.

Os asuras empunharam suas armas e guerrearam contra os devas. Revigorados pelo amrita, os devas derrotaram os asuras que fugiram para o mundo subterrâneo de Patala. Os devas enfim reconquistaram o poder sobre os três mundos e prestaram homenagens a Vishnu e Lakshmi.

FONTES

COOMARASWAMY, A. K. e NIVEDITA, I. Mitos Hindus e Budistas. São Paulo: Landy, 2002.

Livro I, Capítulo IX do Vishnu Purana. http://www.sacred-texts.com/hin/vp/vp044.htm

KADAN, D. e PATEL, T. The Churning of the Ocean. Mumbai: India Book House, 2007.

The Churning of the Ocean http://www.sanatansociety.org/indian_epics_and_stories/the_churning_of_the_ocean.htm

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