Por Eduardo Arantes Corrêa.
Você que celebra o que se foi
Que tem explorado a face externa, a superfície das raças,
A vida que exibe a si mesma,
Que tem tratado o homem como criatura política,
Agregados, legisladores e sacerdote,
Eu, espremendo o sumo da vida como poucas vezes se mostra
Cantor da personalidade, esboçando o que ainda será,
Projeto a história do futuro.
Walt Whitman – Para as terras estrangeiras1
2.1.1. Abertura: Além do arco-íris – Não há lugar no mundo como o nosso lar?
O Mágico de Oz narra a inesperada partida de Dorothy Gale rumo a um mundo fantástico, povoado por seres imaginários e algumas vezes ameaçadores, criaturas de tal qualidade que não nos deixariam nunca sem alguma matéria para o pensamento. Contudo, embora eu pudesse escrever um compêndio sobre os animais fictícios e horripilantes, tal como o fez Borges2, os perigos que me interessam na obra de L. Frank Baum3 não residem exatamente na taxonomia das aberrações que ele criou (não obstante este trabalho flerte sempre com o anômalo, o atípico), mas em outro ponto, a saber: as consequências da criação monstruosa.
Assim, como se vê frequentemente nas fábulas ditas infantis, o desaparecimento de Dorothy da fazenda de seus tios não implica de modo algum em uma busca espontânea por aventuras; antes, no seu contrário. Tanto no filme de 19394 quanto no livro que o inspira, a garota sonhadora é levada de sua terra natal, o Kansas, pela força de um tornado. Mas pouco antes de sua casa ser arrastada para a terra de Oz, tudo o que ela desejava era somente um pouco de acolhimento. Nesse sentido, o ensaio que romancista Salman Rushdie faz sobre a estória mostra bem como a obra é hipócrita ao tentar passar, ao final, a ideia de que Dorothy ‘era feliz em Kansas e não sabia’. Seu lamento, aliás, já no início do filme, não mostra outra coisa senão seu incômodo com a vida que leva no monocromático cenário. Consoante Rushdie:
O Kansas descrito por L. Frank Baum é um lugar depressivo no qual, até onde a vista alcança, tudo é cinzento: a planície é cinzenta e assim também é a casa em que Dorothy mora. É desse cinza — do cinza concentrador, cumulativo, daquele mundo triste — que provém a calamidade. O tornado é o cinza concentrado e revolvido, e por assim dizer, desencadeado contra si mesmo. Dorothy tem um sobrenome: Gale (ventania). Dorothy está disposta a romper com a inevitabilidade cinzenta de sua vida […] Em seu momento emocional mais intenso, este é, indiscutivelmente, um filme sobre as alegrias de ir embora, de deixar o cinza e ingressar na cor, de levar uma nova vida no “lugar onde não existem problemas”. “Over the Rainbow” (Além do arco-íris) é, ou deveria ser, o hino de todos os migrantes do mundo, todos aqueles que vão em busca do lugar “onde os sonhos que você sonha realmente se realizam”. É uma celebração da fuga, um canto grandioso ao eu Desenraizado, um hino, — o hino — ao Outro lugar.5
Cena do início do filme O Mágico de Oz (1939)6
Deste modo, se por um lado Rushdie aponta para o “pseudo desejo” que Dorothy tem de retornar para um lar, por outro, não deixa de diferenciar o Kansas que ela habita (e que revê no fim do filme) de um Kansas pelo qual se reclama, um Kansas virtual, por fazer, inatingível (Não há lugar no mundo como o nosso lar — There’s no place like home)7. Ora, ao contrário do que se vê em uma leitura inicial da estória, é justamente aí que a frase de Dorothy se torna verdadeiramente forte e atraente. Nessa perspectiva, a dúvida que Rushdie nos deixa é: Qual é o lar que se deve chamar de incomparável? Afinal, se a filosofia reclama, desde Kant, “os princípios do conhecimento racional das coisas mediante conceitos”8, a qual lar esses conceitos se referem? Será que buscam algo além de suas próprias instituições, ou de sua história como mero exercício de recognição? (É Descartes, é Kant, é o fim do caminho…). Ou será que os conceitos devem buscar um desenraizamento interminável e desinteressado pelo qual se desenvolvem sem legislar sobre uma terra fixa9? E por falar nisso, seria mesmo possível que Dorothy encontrasse um lugar onde não existem problemas? Ou será que eles apenas se desenvolvem ou são pensados por outros métodos, por outras vias?
Para que se faça filosofia, é preciso uma morada que nos alimente com o desconforto, que nos arremesse para longe dos lugares onde os “problemas se dissolvem como dropes de limão”10, tal como invoca no filme o canto da personagem de Judy Garland. Por isso, é imprescindível que abandonemos o Kansas cinzento de determinações das nossas escolas em favor de outro chão, terra “gêmea” por vir. Dito isto, pergunto: Custaria muito se refizéssemos nossas odes, até mesmo nossas elegias?
Na ausência de um solo que lhe pertença por direito, o filósofo em “Oz” é aquele que se reinventa, que recompõe seu assobio. É o nômade que, diante do divórcio com o mundo, não lhe dá nunca as costas, retirando antes, de seu absurdo11, a força íntima pela qual reconstrói, passo a passo, monstruosas estradas amarelas sem retorno para casa.
A estrada de tijolos amarelos que leva ao Mágico de Oz. Cena do filme de 1939.12
2.2.1. Como os monstros chegaram à terra de Oz.
Parte I – Que bons ventos os trouxeram
A terra não se apressa, nem se atrasa,
Ela tem todos os atributos, crescimentos, efeitos, latentes em si mesmos, desde o início,
Ela não é bela somente pela metade, os defeitos e as excrescências revelam tanto quanto as perfeições.
A terra não afasta, ela é muito generosa,
Suas verdades esperam continuamente, não estão isoladas também.
A terra não discute,
Não grita, avança, persuade, ameaça, promete,
Não discrimina, não tem falhas concebíveis,
Não fecha, não recusa, não exclui,
De todos os poderes, objetos, Estados, ela só notifica, não exclui nenhum
Falem, vocês que falam! Cantem, cantores!
Penetrem, Moldem! Empilhem as palavras da terra!
Trabalhem-nas, era após eras, nada existe para se perder,
Talvez seja necessário esperar bastante, mas certamente terá sua utilidade,
Quando os materiais estiverem todos preparados e prontos, os arquitetos hão de aparecer.
Walt Whitman – Canção da terra que rola13
A filosofia é a disciplina que cria conceitos. Mas se Deleuze reafirma o que já dizia Kant, não é nunca sem alguma cautela e o que parece de saída uma definição mostra-se em segundo momento como apenas parte de um processo. Afinal, para delimitar o que seja o pensamento filosófico, será mesmo suficiente atribuir à Arte a produção de afectos e perceptos e à Ciência as funções e proposições? Por quais motivos uma forma de pensar não tem qualquer privilégio sobre outra? Porque podemos dizer que um artista é um filósofo e vice-versa?
Sabe-se que desde Platão, a filosofia foi acossada para que banisse os poetas de suas cidades. Um exemplo disso é a mais conhecida de suas críticas no livro X da República. Ali, como mostra bem esta passagem, Sócrates rechaça pungentemente os artistas, considerados por ele como criadores de objetos afastados em três pontos do verdadeiro ideal:
A principiar por Homero, todos os poetas são imitadores da virtude e dos restantes assuntos sobre os quais compõe, mas não atingem a verdade […] O poeta, por meio de palavras e frases, sabe colorir devidamente cada uma das artes, sem entender delas mais do que saber imitá-las, de modo que, a outros que tais, que julgam pelas palavras, parecem falar muito bem, quando dissertam sobre a arte de fazer sapatos, ou sobre a arte da estratégia, ou sobre qualquer outra com metro, ritmo e harmonia. Tal é a grande sedução natural que estas tem, por si sós.14
Contudo, mesmo entre os modernos, com Descartes, o então método para uma nova imagem do pensamento não deixou jamais de desacreditar as fábulas15. Seja em Atenas ou fora dos eixos de La Flèche, nos encontramos diante de um quadro no qual o pensamento se exerce em maior ou menor grau a partir da compreensão de seus limites, sua distância ou sua aproximação em relação à perfeição de Deus ou às formas16. Ora, não obstante a diferença histórica e conceitual entre o filósofo grego e o francês, é diante de uma pressuposta inconfiabilidade da arte diante do verdadeiro que ambos atacam os usos que se faz do mito ou das criações fantásticas.17
Por isso, se concordarmos com Deleuze que “há religião cada vez que há transcendência, Ser vertical, Estado imperial no céu ou sobre a terra, e há Filosofia cada vez que houver imanência, mesmo se ela serve de arena ao agôn e à rivalidade”18, não será necessário mudar nossa orientação, quer dizer, mostrar simpatia pelas ideias implicadas na atitude filosófica horizontal, primeiro passo para validar o caráter filosófico da arte em face do ranço da tradição que ia do chão às nuvens?
Assim, não me interesso de maneira alguma pela sugestão de que fragmentos de Descartes ou a obra de Platão expressam, terminantemente, antes uma escrita religiosa do que filosófica, porém, não posso negar que meus objetivos passem veementemente pela crítica ao alicerce transcendente tal qual apresentado por Deleuze na 18ª série de Lógica do Sentido. Consoante suas palavras:
A imagem do filósofo, tanto popular como científica, parece ter sido fixada pelo platonismo: um ser das ascensões que sai da caverna eleva-se e purifica na medida em que mais se eleva. Neste “psiquismo ascensorial”, a moral e a filosofia, o ideal ascético e a idéia do pensamento estabeleceram laços muito estreitos. Deles dependem a imagem popular do filósofo nas nuvens, mas também a imagem científica segundo a qual o céu do filósofo é um céu inteligível que nos distrai menos da terra do que compreende sua lei. Mas nos dois casos se passa em altitude (ainda que fosse a altitude no céu da lei moral). A altura é o Oriente propriamente platônico. A operação do filósofo é então determinada como ascensão, como conversão, isto é, como o movimento de se voltar para o princípio do alto. Não vamos comparar os filósofos e as doenças, mas há doenças propriamente filosóficas. O idealismo é a doença congênita da filosofia platônica e, com seu cortejo de ascensões e de quedas, a forma maníaco- depressiva da própria filosofia. A mania inspira e guia Platão. E mesmo na morte de Sócrates, há algo de suicídio depressivo.19
Desta feita, se uma nova imagem do filósofo falar em atos de transcendência, isso não quer dizer que se expressará um deslocamento absoluto, decisivo da filosofia rumo à religião, mas que, em face da primazia de um flerte com a imanência, o transcendente não tem mais outra saída senão admitir sua origem mundana, despojando forçosamente a filosofia de seus vícios, arenas metafísicas que Kant tanto tentou derrubar, desde Platão até os universais medievais.
Contudo, segundo Deleuze, Kant não foi tão próspero nessa empreitada. Afinal, “a imanência só é imanente a si mesma, e então toma tudo, absorve o Todo-Uno, e não deixa subsistir nada a que ela poderia ser imanente. Em todo caso, cada vez que se interpreta a imanência como imanente a Algo, pode-se estar certo de que este algo reintroduz o transcendente”. É por isso que Kant nomeará o sujeito “transcendental e não transcendente, precisamente porque é o sujeito do campo de imanência de toda experiência possível, ao qual nada escapa, o exterior bem como o interior. Ele pode até mesmo dar-se ao luxo de denunciar as ideias transcendentes, para fazer delas o “horizonte” do campo imanente ao sujeito. Mas, fazendo isso, Kant encontra a maneira moderna de salvar a transcendência: não é mais a transcendência de um Algo, ou de um Uno superior a toda coisa (contemplação), mas de um sujeito ao qual o campo de imanência é atribuído por pertencer a um eu que se representa necessariamente um tal sujeito (reflexão)”20. Donde, doravante, os conceitos deverão ser pensados, não mais a partir do caráter impositivo da profundidade ou da altura, mas em sua relação com a superfície.21
Nesse sentido, ao menos no caso de Deleuze, a principal função da filosofia e do conceito, de saída, é esta: relacionar-se com o que aparece ou emerge do caos, tanto com sua atualização quanto com sua contra-efetuação, movimentos imanentes que vão dos estados de coisas ao que ele chama de virtual. Em O Que é a Filosofia?, aliás, tais ideias aparecem de maneira bastante clara:
Define-se o caos menos por sua desordem que pela velocidade infinita pela qual se dissipa toda forma que nele se esboça. É um vazio que não é um nada, mas um virtual, contendo todas as partículas possíveis e suscitando todas as formas possíveis que surgem para desaparecer logo em seguida, sem consistência nem referência, sem conseqüência. É uma velocidade infinita de nascimento e de esvanecimento. Ora, a filosofia pergunta como guardar as velocidades infinitas, ganhando ao mesmo tempo consistência, dando uma consistência própria ao virtual. […] Se remontamos a linha na direção contrária, se vamos dos estados de coisas ao virtual, não se trata da mesma linha, porque não é o mesmo virtual. O virtual não é mais virtualidade caótica, mas a virtualidade tornada consistente, entidade formada sobre um plano de imanência que corta o caos. É o que se chama o Acontecimento, ou a parte do que escapa à sua própria atualização em tudo o que acontece. O acontecimento se atualiza num estado de coisas, num corpo, num vivido, mas tem uma parte sombria e secreta que não para de se subtrair ou de acrescentar à sua atualização22.
Ora, é justamente essa a base espinosana que me interessa evocar, influência que se nota em Deleuze quando ele diz: “Espinosa foi talvez o único a não ter aceitado nenhum compromisso com a transcendência, a tê-la expulsado de todos os lugares”23. Mas isso não significa que eu pretenda reler aqui o conceito de Deus ou me guiar por alguma metafísica atrelada à ideia de substância única, tal como apresentada pela Ética; antes, desejo pensar num Espinosa que priorize uma prosa do mundo, encerrado em suas possibilidades nada leibnizianas24 ou, como poderia dizer Hannah Arendt, que veja o mundo habitado pelos homens da Terra, partícipes da vida política.25
Destarte, quando Deleuze diz que romancistas como Rimbaud, Kakfa, Fernando Pessoa, Herman Melville, ou Lewis Carroll são “filósofos pela metade”26, é porque tem certeza de que eles não operam da mesma maneira como faz a história da filosofia, tal como a conhecemos. Mas se ele os chama de gênios híbridos, “acrobatas esquartejados num malabarismo perpétuo”27, o faz pensando na disposição de suas obras perante a vida, liberando-a, “sem conceitos”, lá onde ela é prisioneira28. De tal modo, se As Aventuras de Alice tratam de um mundo dos acontecimentos puros29, de um “entre-tempo”, tempo morto em que nada se passa, que “não é eterno, mas também não é tempo, é devir”30, o que me importa, mais do que a preocupação em definir uma ontologia do virtual, é saber em que medida há algo que obriga Alice a duvidar ou questionar sua identidade31, afinal, trata-se sempre de entender como os paradoxos lógicos carrollinianos contribuem para a destituição do senso comum ou do bom senso neste mundo possível? De acordo com Deleuze:
Os paradoxos de sentido são essencialmente a subdivisão ao infinito (sempre passado-futuro e jamais presente). De qualquer maneira, tem por característica o fato de ir em dois sentidos ao mesmo tempo e tornar impossível uma identificação, colocando a ênfase, ora num, ora noutro desses efeitos: tal é a dupla aventura de Alice, o devir-louco e o nome perdido. O chapeleiro e a lebre de março: cada um habita em uma direção, mas as duas direções são inseparáveis, cada uma se subdivide na outra, tanto que as encontramos ambas em cada uma. Ambos se tornam loucos no dia em que massacraram o tempo, isto é, destruíram a medida, suprimiram as paradas e os repousos que referem a qualidade a alguma coisa de fixo. Eles mataram o presente, que não subsiste a não ser no momento abstrato, na hora do chá, infinitamente subdivisível em passado e futuro. Tanto que agora eles não cessam de mudar de lugar, sempre em atraso e sempre adiantados, nas duas direções ao mesmo tempo, mas nunca na hora certa.32
Daí, se Deleuze vê em Carroll um romancista que apreende o acontecimento “melhor que qualquer tentativa da ciência”33, devemos nos lembrar também de sua capacidade de amarrar os problemas34. Ora, e não é isso que a filosofia faz, não exigindo “somente um problema sob o qual remaneja ou substitui conceitos precedentes, mas uma encruzilhada de problemas em que se alia a outros conceitos coexistentes”35? Porque então seria diferente com a arte? Não será preciso falar agora em uma universalidade dos problemas filosóficos? Como fiz saber, não se trata mais aqui daquela abóbada celeste dos medievais, mas ao fato de que, com a criação-modificação de novos e velhos conceitos, a filosofia, o mito e a arte lançam luzes às mesmas questões, temas que se repetem ou retornam de acordo com as necessidades de cada tempo. É por isso que Deleuze diz: O conceito “nasce na História, e nela recaí, mas não pertence a ela. Não tem em si mesmo nem início nem fim”.36
Assim, se uma obra literária “tanto traça conceitos, de forma implícita, quanto traça perceptos”37, por quais motivos não se deveria retirar a filosofia do seu presumido Kansas, sua história linear, por vezes institucionalizada? Afinal de contas, se “o mundo é tudo que é o caso”38, como diz Wittgenstein, o que impede o jovem protagonista de À la recherche du temps perdu de Proust de procurar “um assunto filosófico para uma grande obra literária”39? Além disso, se Deleuze acreditasse mesmo que a separação entre o domínio dos conceitos e dos perceptos e afectos é um obstáculo grande e legítimo para se pensar a figura de um artista-filósofo ou de um filósofo-artista, não nos sugeriria de modo algum a ideia de que Nietzsche e Espinosa são “artistas pela metade”, atribuindo a eles uma aliança entre conceitos e afectos. Conforme a entrevista do Abecedário:
Quando se pega um conceito filosófico, este conceito faz com que se veja as coisas. Os filósofos têm este lado de videntes, pelo menos aqueles de quem gosto. Spinoza faz ver. É um dos filósofos mais videntes que existe. Nietzsche também faz ver. E eles também são fantásticos “lançadores de afectos”. É por isso que me vem logo à mente a idéia de uma música destes filósofos. Assim como a música faz ver coisas estranhas. Às vezes, ela nos faz ver cores, mas cores que não existem fora da música. E os perceptos também. Todos estão muito ligados. Eu sonho com uma espécie de circulação entre uns e outros, entre os conceitos filosóficos, os perceptos pictóricos, os afectos musicais. E não é de se espantar que existam repercussões. Por mais independentes que sejam estes trabalhos, eles se penetram constantemente. O que há de comum entre as duas atividades, a grande filosofia e a grande literatura, é que ambas testemunham em favor da vida.40
Nesse sentido, a ideia deleuzeana de que os afectos são os devires que fazem com que um homem se torne algo diferente do que ele pressupunha ser ou ter se transformado41, certamente expressa a seu modo um investimento contra a reificação do sujeito ou da consciência, mas, além disso, trata principalmente da modificação do ânimo, do corpo ou do pensamento. A importância do afetivo, aliás, é bem delineada em Diferença e Repetição:
Há no mundo alguma coisa que força a pensar. Esse algo é objeto de um encontro fundamental e não de uma recognição. O que é encontrado pode ser Sócrates, o templo ou o demônio. Pode ser apreendido sob tonalidades afetivas diversas, admiração, amor, ódio, dor. Mas, em sua primeira característica e sob qualquer tonalidade, ele só pode ser sentido.42
Por isso, se Deleuze nos faz atentar para as nuances e relações entre os afetos (affectus) e os devires nas obras de Nietzsche e de Espinosa43, é justamente porque vê ali a matéria germinal por meio da qual se pode criar com o imane44, seja quais forem as fragmentações, desconstruções ou apropriações que se pretende realizar. Ademais, se os conceitos são mesmo monstros que renascem de seus pedaços45, será natural que se chame de gênio em filosofia aqueles que os redistribuem46, na medida em que apontam para o caos que se recorta e que se luta contra47. De tal modo, como se poderá notar, é sobretudo pela contribuição diante da potência do intelecto e por sua crítica aos pressupostos implicados na transcendência que Nietzsche faz, em carta, um jubiloso elogio à Espinosa:
Estou inteiramente espantado, inteiramente encantado! Tenho um precursor e que precursor! Eu não conhecia quase nada de Espinosa; que eu agora ansiasse por ele foi uma “ação do instinto”. Não só, que sua tendência geral seja idêntica à minha — fazer do conhecimento o afeto mais potente — em cinco pontos capitais de sua doutrina eu me reencontro, este pensador, o mais fora da norma e o mais solitário, me é o mais próximo justamente nestas coisas: ele nega o livre-arbítrio —os fins —; a ordem moral do mundo —; o não-egoísmo —; o mal —; se certamente também as diferenças são enormes, isso se deve mais à diversidade de época, de cultura, de ciência. In summa: minha solidão, que, como sobre montes muito altos, com freqüência provocou-me falta de ar e fez-me o sangue refluir, é ao menos agora uma dualidão.48
Diante de todas essas reflexões, a ideia de uma trupe de “aberrações” conceituais em “Oz” ou no “país das Maravilhas” não soa mais como nenhum disparate, haja vista as palavras de Deleuze sobre o nomadismo do problema filosófico, em Diálogos:
Então é isso, pintar, compor, escrever? Tudo é questão de linha, não há diferença considerável entre a pintura, a música e a escritura. Essas atividades se distinguem por suas substâncias, seus códigos e suas territorialidades respectivas, mas não pela linha abstrata que traçam, que corre entre elas e as leva para um destino comum.49
Assim, podemos nos perguntar: Quantas moradas há na casa da filosofia? Contanto que não se habite o recanto retratado pela máxima de Hamlet: “eu poderia viver preso numa casca de noz e me considerar o rei do espaço infinito”50, o artista-filósofo não fará outra coisa senão refazer dia após dia seus lares, mundos sobre o mundo, tal como nunca vimos, tal como pode sempre vir a ser.
2.2.2. Como os monstros chegaram à terra de Oz.
Parte II – Questões de método
Sim, sou um ladrão de pensamentos
Não, por favor, um ladrão de almas
Eu construí e reconstruí
Sobre o que está à espera
Pois a areia nas praias esculpe muitos castelos
No que foi aberto
Antes de meu tempo
Uma palavra, uma ária, uma história, uma linha
Chaves no vento para que minha mente fuja
E fornecer a meus pensamentos fechados uma corrente de ar fresco.
Não é coisa minha, sentar e meditar
Perdendo e contemplando o tempo
Pensando pensamentos que não foram pensados
Pensando sonhos que não foram sonhados,
Ideias novas ainda não escritas,
Palavras novas que seguiriam a rima…
E não liga para as novas regras
Já que elas ainda não foram fabricadas
E grito o que soa em minha cabeça
Sabendo que sou eu e os de minha espécie
Que faremos essas novas regras,
E se as pessoas de amanhã
Tiverem realmente necessidade das regras de hoje
Então juntem-se todos, procuradores, generais
O mundo não passa de um tribunal.
Sim
Mas conheço os acusados melhor que vocês
E enquanto vocês se ocupam em julgá-los
Nós nos ocupamos em assobiar
Limpamos a sala de audiência
Varrendo varrendo
Escutando escutando
Piscando os olhos entre nós
Atenção atenção
Sua hora há de chegar.
Bob Dylan – 11 Outlined Epitaphs
Se for legítimo afirmar como Camus que os “métodos implicam metafísicas, e elas traem, à sua revelia, as conclusões que pretendem não conhecer ainda”52, este trabalho não trata nunca de colocar em primeiro plano a busca por um princípio irrefutável ou inelutável, ao contrário. Partindo da premissa de que “todo conhecimento verdadeiro é impossível”53, ou seja, de que a meditação sobre o Ser vem em segundo lugar diante da indagação sobre a vida valer ou não a pena ser vivida54, só nos resta encontrar os meios menos ortodoxos de se pensar, especialmente se eles nos permitem enxergar alguma diferença no homem lançado no mundo. De tal modo, após a morte de Deus55, as noções de caos, acontecimento, afecto ou devir, só contribuem significativamente para a filosofia se trazem a nervura da vida até os olhos, transformando nossas potências na carne e evitando, de alguma forma, a aniquilação ou o suicídio.
Nesse sentido, os aforismos célebres que colocam a filosofia como “estudo da Sabedoria”, implicando “um perfeito conhecimento de todas as coisas que o homem pode saber, tanto para a conduta de sua vida como para a conservação de sua saúde”56, para além de especulações sobre a clareza e distinção da razão asseguradas por um ente supremo, só adquirem completa relevância quando se referem indispensavelmente à criação diante do Outro em seu desarrazoamento, mormente quando se trata de impedir ou minimizar os iminentes confrontos entre os pontos de vista sob a suposta mesma cidade57, cuidado necessário diante dos lados perigosos da revolta58.
Tal é a perspectiva moral dos ressentidos pelo cadáver em putrefação do criador benevolente, representados pela figura do herói romântico que “se sente obrigado a fazer o mal, por nostalgia de um bem impossível”59. Como aponta Camus:
Aquele que nega tudo e autoriza-se a matar, Sade, o dândi assassino, o Único Impiedoso, Karamazov, os partidários do bandido enfurecido, o surrealista que atira na multidão reivindicam, em suma, a liberdade total, a ostentação sem limites do orgulho humano.60
Ora, longe das verdades eternas, seria necessário que a filosofia de superfície exigisse uma ‘moral’ sempre provisória61, principalmente se as regras definitivas incorrerem em recusa do dessemelhante e em práticas de exclusão. Se afirmativo, como a arte contribui quando se trata de fazer pensar, ou seja, de forçar o pensamento rumo à criação de um modo de vida ou de um êthos que traga a maior felicidade, como diria Espinosa62? Assim, desejando encontrar subsídios para pensar a figura do artista-filósofo, busco na inspiração da monstruosidade espinosana a revisão dos métodos pelos quais se faz filosofia, de tal modo que, não se garantindo mais um conhecimento certo à razão, só me resta o sentimento atormentador e absurdo apresentado pelo ambiente63.
Por isso, se o poema 11 Outlined Epitaphs64 de Bob Dylan é tão importante a Deleuze, é porque opera magistralmente diante das ações que esmagam o diferente, procedimentos contra os quais Camus, à sua maneira, já se posicionava.
Nos dizeres de Deleuze:
Bob Dylan. Ele diz tudo. Professor, gostaria de conseguir dar uma aula como Dylan organiza uma canção, surpreendente produtor, mais que autor. E que comece como ele, de repente, com sua máscara de palhaço, com uma arte de cada detalhe arranjado e, no entanto, improvisado. O contrário de um plagiador, mas também o contrário de um mestre ou de um modelo. Uma preparação longa, mas nada de método ou de receitas. Ter um saco em que coloco tudo que encontro com a condição de que me coloquem também em um saco. Achar, encontrar, roubar, ao invés de regular, reconhecer e julgar. Julgar é a profissão de muita gente, mas não é uma boa profissão, mas é o uso que muitos fazem da escritura. Quanto mais alguém se enganou em sua vida, mais ele dá lições; nada como um stalinista para dar lições de não-stalinismo e enunciar as “novas regras”.65
Desse modo, se os personagens filosóficos e devires em Deleuze ou em Dylan fogem a qualquer totalização, se o os adjetivos “platônico” “kantiano” ou “cartesiano” devem ser compreendidos a partir da reativação nos nossos problemas66, é justamente em oposição aos tribunais que determinam com seus conceitos acabados, incólumes pela suposta égide de sua assinatura. Assim, mesmo quando aparecem em cena completamente descaracterizados, e utilizando-se de diversas máscaras, os chamados personagens conceituais ou “heterônimos do filósofo”67 expressam somente a transformação dos conceitos diante dos movimentos incessantes que realiza o pensamento. Quando Deleuze diz: “Eu não sou mais eu, mas uma aptidão do pensamento para se ver e se desenvolver através de um plano que me atravessa em vários lugares”68, não devemos entender aí outra coisa senão que os filósofos deixaram de ser o que eram historicamente, fazendo dos conceitos algo universal e maior que seus criadores. Por isso, se o personagem conceitual “aparece por si mesmo muito raramente, ou por alusão, todavia, ele está lá; e, mesmo não nomeado, subterrâneo, deve sempre ser reconstituído pelo leitor”69. E o mesmo vale para a arte. Se ela sai da história da filosofia por um lado, porque não reencontraria os problemas em outro lugar, criando monstros num “mundo de Oz”?
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O plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia podem deslizar um no outro, a tal ponto que certas extensões de um sejam ocupadas por entidades do outro. Em cada caso, com efeito, o plano e o que o ocupa são como duas partes relativamente distintas, relativamente heterogêneas. Um pensador pode portanto modificar de maneira decisiva o que significa pensar, traçar uma nova imagem do pensamento, instaurar um novo plano de imanência, mas, em lugar de criar novos conceitos que o ocupam, ele o povoa com outras instâncias, outras entidades, poéticas, romanescas, ou mesmo pictóricas ou musicais. E o inverso também.70
É esse é o destino inevitável do teatro filosófico. Seja romance, na poesia ou fora deles, Deleuze se torna Nietzsche assim como este veste as roupas de Dionísio, ao passo que Leibniz faz o advogado de Deus e Kierkegaard um Don Juan angustiado.71
Não obstante, é claro que se pode perguntar em que medida os personagens conceituais, a apropriação ou o reencontro da filosofia com seu passado também não implicam em práticas que minimizam a condição humana. Mas a isso, Deleuze nos lembra da relação entre Heidegger e o nazismo, exemplo e alerta aos perigos a que se pode chegar com as escolas. Segundo ele:
Ter-se-ia compreendido melhor que um grande pintor, um grande músico caíssem assim na vergonha (mas justamente eles não o fizeram). Precisou ter sido um filósofo, como se a vergonha devesse entrar na própria filosofia. Ele quis reencontrar os gregos pelos alemães, no pior momento de sua história: que há de pior, dizia Nietzsche, do que se encontrar ante um alemão quando se esperava um grego? Como os conceitos (de Heidegger) não seriam intrinsecamente maculados por uma reterritorialização abjeta? […] o olho cansado do pensador toma um pelo outro: não somente o alemão por um grego, mas o fascista por um criador de existência e de liberdade. Heidegger se perdeu nos caminhos da reterritorialização, pois são caminhos sem baliza nem parapeito. Talvez este rigoroso professor fosse mais louco do que parecia. Ele se enganou de povo, de terra, de sangue. Pois a raça invocada pela arte ou a filosofia não é a que se pretende pura, mas uma raça oprimida, bastarda, inferior, anárquica, nômade, irremediavelmente menor.72
Tem-se aí um notável caso em que a filosofia tentou levar às últimas consequencias os seus conceitos, traçando um plano de desterritorialização e reterritorialização ‘definitivas’ (a ideia de um território dominado pela raça ariana, um Reich que durasse mil anos, como dizia Hitler, expressa bem isso). Nesse sentido, a questão dos personagens conceituais só é relevante por que é possível que se identifique com eles os conceitos que jazem nas entrelinhas, evitando assim a primazia da faceta execrável de um autor sobre os filósofos que ele estima.
Portanto, não é falso dizer que os discursos envenenam o pensamento em troca de uma terra prometida, mas, na medida em que o faz, a reflexão sobre a validade dos métodos ou das direções da filosofia se faz sempre necessária, seja quando ela fala em nome de um povo ou em nome da verdade.
Conforme diz Deleuze:
Nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender – que amores tornam alguém bom em latim, por meio de que encontros se é filósofo, em que dicionários se aprende a pensar. Os limites das faculdades se encaixam uns nos outros sob a forma partida daquilo que traz e transmite a diferença. Não há método para encontrar tesouros ou para aprender, mas um violento adestramento, uma cultura ou Paidéia que percorre todo o indivíduo […] O método é o meio de saber quem regula a colaboração de todas as faculdades.73
Assim, quando Deleuze concebe toda a história da filosofia como história inconfessa do roubo74, é verdade que também sugere sorrateiramente seu próprio método, mesmo quando afirma não gostar de receitas? Será que não somos todos, em alguma medida, deleuzeanos, adestrados a priori pela forma roubo de filosofar? Pode-se dizer que as reutilizações filosóficas possibilitam dizer que seguir o mestre significa ao mesmo tempo não segui-lo? É verdade então que se rouba os filósofos e o próprio Deleuze com Deleuze? Se a questão parece nos colocar diante de um impasse, o que importa mesmo é saber por que caminhos o pensamento, esse “ato primeiro” da filosofia fornece, tanto matéria para uma ontologia maligna como para as distintas tonalidades de um êthos revoltado, aquele que diz não.75
Afinal, pela via da arte, é possível conhecer os riscos de se cultuar uma terra como bálsamo e baluarte da verdade? Quando William Blake escreve Milton — poema em que encarna o autor de Paraíso Perdido —, invoca uma Jerusalém nunca vista, anunciada, colocando uma pergunta premente: Por que se deseja uma terra e em nome de que filosofia?
Terão esses pés percorrido outrora
Da Inglaterra as montanhas cintilantes?
E o Cordeiro de Deus terá pastado
Na Inglaterra de campos verdejantes?
E porventura o semblante divino
Brilhou nestas colinas nebulosas?
E foi Jerusalém edificada aqui
Entre Moinhos Satânicos tenebrosos?
Trazei-me o meu arco de ouro ardente
Trazei-me as minhas flechas do desejo
Trazei-me a minha lança: Ó nuvens, abri!
Trazei-me minha Carruagem de fogo!
Não dormirá na minha mão a Espada
Nem cessará na minha Mente a Guerra
Até vermos Jerusalém edificada
Na terra bela e verde da Inglaterra76
Contanto que inalcançável, uma Jerusalém edificada na Inglaterra não expressa mais que uma visão límbica77 da criação artística, comunidade que vem e que nunca chega; do contrário, o dasein de um povo majoritário, terra das bruxas e dos bruxos do leste, do oeste e de todos os pontos cardinais do pensamento. Terra em que se produz “em primeiro lugar a confusão profunda e, por assim dizer, religiosa entre o bem e o mal”78. Terra de assassinos, enfim. Terra de ninguém.
2.3.1. O que os monstros fazem em Oz – Pensar com imagens para pensar sem imagens.
Às vezes, os sentimentos de temor e pena procedem do espetáculo; às vezes, também, do próprio arranjo das ações, como é preferível e próprio de melhor poeta. É mister, com efeito, arranjar a fábula de maneira tal que, mesmo sem assistir, quem ouvir contar as ocorrências sinta arrepios e compaixão em consequência dos fatos.
Aristóteles – Arte Poética.79
Descartes afirma que as fábulas ou as histórias mais fiéis fazem os homens regularem seus costumes pelos seus exemplos, concebendo propósitos que ultrapassam suas forças80, ao passo que Aristóteles, em caminho um tanto quanto diferente, via nas criações fabulosas um procedimento pelo qual se imita ações, tanto reais quanto sejam verossímeis e possíveis81. Assim, enquanto o primeiro prefere a razão guiada pelo bom senso e arredia às imagens dos romances, o segundo vê nas fábulas a inspiração da piedade e do temor que operam a catarse das emoções82.
Contudo, mesmo quando Aristóteles impõe restrições às fábulas que faltam com a plausibilidade ou a verossimilhança83, algo de que não se pode duvidar é que a arte modifica mesmo o ânimo ou dá que pensar, caso contrário, não se responderia negativamente às fábulas episódicas84 nem se buscaria um método para bem conduzir a razão, como é o caso de Descartes.
Mas será que a ausência de suporte no real torna a arte definitivamente inválida ao pensamento? Assim, as perguntas contemporâneas que se devem fazer são: (1) o que impede que o incoerente, o mórbido, o grotesco, o desproporcional ou o improvável forneçam seu germe à moralidade? (2) Não será preciso desviar-se do apoio das concepções de arte ou de escrita que colocam a verossimilhança e a necessidade como pressupostos para se fazer pensar? Afinal, se a questão é encontrar os meios para isso, não há porque não se investir também contra as âncoras, os muros ou as regras da razão, haja vista o que o nonsense de Alice deu ao pensamento.
Os grandes romancistas [afirma Camus] são romancistas filósofos, ou seja, o contrário de escritores com teses. Vejam Balzac, Melville, Stendhal, Dostoievski, Proust […] Mas justamente, a opção que fizeram de escrever mais com imagens mais que com raciocínios revela um certo pensamento que lhes é comum, persuadido da inutilidade de todo princípio de explicação e convencido da mensagem instrutiva da aparência sensível [..] é a culminação de uma filosofia muitas vezes não manifesta, sua ilustração e seu coroamento85.
Partindo dessa perspectiva, por qual sorte de imagens, caricaturas ou personagens filosófico-conceituais um artista move o pensamento? Num texto chamado A Filosofia da Composição, Edgar Allan Poe tenta explicar os motivos e as técnicas pelas quais seu mais conhecido poema, O Corvo, foi escrito. Nos versos, a ave de mau agouro do título adentra o quarto de um homem, um amante que lamenta a morte de sua amada e que, depois de certo tempo, submete diversas questões ao animal, tal como se faria diante de um adivinho86.
Destarte, a resposta que o corvo dá, o contínuo e vazio “nunca mais” (nevermore), é, nos dizeres de Poe, o refrão pelo qual o poema chegará aos seus grandes objetivos. Segundo suas palavras:
Encarando a Beleza como minha província, minha seguinte questão se referia ao mais alto tom de sua manifestação, e todas as experiências tem demonstrado que esse tom é o da tristeza. A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo, invariavelmente provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos87.
Ora, se Poe já dizia abertamente que é “desnecessário demonstrar que um poema só o é quando emociona, intensamente, elevando a alma”88, será que a comoção e o arrepio que emergem da estrutura do poema não expressam o fato de que o juízo “é belo”, na medida em que causa prazer ou desprazer, auxilia também a elevar o sentimento de “respeito” do espectador? Conforme diz Poe:
A resposta “nunca mais” dispõe a mente a buscar uma moral em tudo quanto foi anteriormente narrado. O leitor começa agora a encarar o corvo como simbólico; mas não é senão nos versos finais da última estância que se permite distintamente ser vista a intenção de torná-lo um emblema da Recordação lutuosa e infindável.89
Podemos reconstituir aí um problema filosófico já colocado por alguns autores. Ainda que bem desfigurados nesta terra da poesia, podemos enxergar neste monstro artístico um Aristóteles “purificador”, um Kant e um Deleuze que violentam as faculdades ou a dualidão de Nietzsche com Espinosa em busca das tonalidades afetivas mais potentes. Como sustenta Borges, “todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare são William Shakespeare”90.
Quando Deleuze busca um pensamento nascido em sua genitalidade, aquele que escapa à reminiscência e à representação, é justamente em vista de algo que desloque as faculdades, mesmo ao custo das afetividades mais estranhas. Por isso, se um leitor pode ser impelido por um poema a buscar uma moral, é apenas porque nada é dado do ponto de vista das faculdades ativas: ao contrário, só se tem aí uma “matéria bruta, sem ser, para falar em termos precisos, representada”91. É esse o problema que Oscar Wilde também coloca, abertamente, no prefácio de seu Retrato de Dorian Gray.
Revelar a arte e ocultar o artista [afirma Wilde] é o objetivo da arte. O crítico é aquele que sabe traduzir em outra forma ou em novo material sua impressão das coisas belas […] A vida moral do homem forma parte do tema do artista, mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito de um meio imperfeito. Nenhum artista deseja provar coisa alguma. O artista pode exprimir tudo. Pensamento e linguagem são, para o artista, instrumentos de uma arte. Toda arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo. Aqueles que vão abaixo da superfície fazem-no por sua conta e risco. Aqueles que leem o símbolo, fazem-no por sua conta e risco. É o espectador o que a arte reflete realmente. A diversidade de opiniões sobre uma obra de arte indica que é nova, complexa e vital. Quando os críticos divergem, o artista está de acordo consigo mesmo92.
Tal qual assinalado na citação acima, a crítica traduz de diversos modos o que a arte dá que pensar. E se a intenção da escrita é a mensagem desprendida do autor, como é explícito no caso de Wilde, não é de se admirar que outros tentem, em vão, passar instruções de como sua obra deve ser lida. Sobre esse aspecto da escrita, aliás, Virginia Woolf nos fala muito bem quando discute como se deve ler um livro. Para ela, “o único conselho, de fato, que uma pessoa pode dar à outra sobre o ato de ler é não seguir conselho algum, seguir seus próprios instintos, usar suas próprias razões, chegar a suas próprias conclusões”93.
Essa questão, vale lembrar, expressa precisamente as críticas que a obra de Lewis Carroll recebeu desde sua publicação. Numa edição comentada de Alice, o belo prefácio de Sebastião Uchoa Leite nos lembra com lucidez da riqueza desses mitos, assim como da leitura equivocada que se faz da obra de tempos em tempos:
Lewis Carroll carrega até hoje o fardo de ser considerado autor de literatura infantil. A maioria só ouviu falar de Alice no país das maravilhas, que vagamente leu na infância, em adaptações. Alguns poucos leram também através do espelho, e ficaram por aí […] Que os dois livros mais celebrados de Carroll, Alice in Wonderland e Through the looking-glass, sejam livros para crianças, é verdade muito relativa. Na época, talvez. Hoje, mais de um século depois que foram publicados, são cada vez mais leitura para adultos. Também se foi compreendido que não são apenas caprichosas fantasias. Pois não há nada por trás dos enredos que não esteja rigorosamente referenciado, seja através de dados da própria existência de Carroll, seja através de inúmeras alusões literárias, científicas, lógico-matemáticas, etc94.
Mas quem diria que esses romancistas seriam tão férteis, não só ao problema do que significa pensar95 como a tantos outros? (A perspectiva da psicanálise sobre a controversa questão da pedofilia na vida de Carroll não nos mostra outra coisa)96. É bem verdade que Frank Baum foi taxativo ao dizer o que esperava de seu Mágico de Oz97, mas não foi por isso que Salman Rushdie deixou de contrariar suas instruções, sobretudo quando escreveu o livro ao qual fiz referência no início deste texto.
Desta feita, se o crítico em arte, como quer Wilde, sabe traduzir em novo material sua impressão das belas coisas, não se pode esquecer que o mesmo ocorre com o que se entende usualmente por filosofia. Seja entre Kant e Deleuze ou entre Milton e William Blake, o apelo de um autor a outro implica sempre em seus desvios e seus desregramentos necessários. Por isso, a despeito do que desejava Baum, o Mágico de Oz talvez possa impulsionar as teorias e morais mais sombrias e catastróficas. É nesse sentido que a ideia de Kant acerca do gênio mostra, não só a relação indissociável entre o que se pensa e o que será pensado, mas, que se há alguma coisa entre o texto e o pensamento, esse algo é a diferença trazida pela beleza, “começo” das filosofias que os próprios criadores desconhecem completamente a força. Conforme diz Kant:
Mas nenhum Homero ou Wieland pode indicar como suas ideias ricas de fantasia e contudo ao mesmo tempo densas de pensamento surgem e reúnem-se em sua cabeça, porque ele mesmo não o sabe, e, portanto, também não pode ensiná-lo a nenhum outro [..] De que espécie é, pois, esta regra? Ela não pode ser captada em uma fórmula e servir como preceito; pois, do contrário, o juízo sobre o belo seria determinável segundo conceitos […] As ideias do artista provocam ideias semelhantes em seu aprendiz, se a natureza o proveu com uma porção semelhante de faculdades do ânimo98.
Ora, se há então algo de belo nos grandes textos dos filósofos ou romancistas que precede os conceitos, o que nos garante que não venha misturado a uma porção de tédio e de calmaria que só os afetos muito violentos poderiam compensar? Virginia Woolf aponta exatamente para isso. Em suas palavras, “há uma deslavada tranquilidade entre páginas e mais páginas de Wordsworth e Scott e Miss Austen que é sedativa até a beira da sonolência”99. Assim, de maneira análoga, pode-se conceber passagens de Descartes, Kant e Deleuze carregadas de uma espécie de “pó sonífero”. Tais temas, aliás, se tornam recorrentes, e mesmo na literatura, a resposta ao que significa pensar não permanece nunca sem algum tipo de abordagem. Em Proust, por exemplo, o mundo do amor traz consigo toda uma paisagem a ser desbravada, fazendo da mulher o impulso necessário ao pensamento que não reconhece o que se passa no fundo. Em À Sombra das moças em flor, o protagonista diz:
De cada vez que a imagem das mulheres tão diversas penetra em nós, a menos que o esquecimento ou a concorrência de outras imagens a elimine, já não temos sossego enquanto não tenhamos convertido essas estranhas em algo semelhante a nós mesmos, pois nossa alma, é sob esse aspecto, dotada do mesmo tipo de reação e de atividade do nosso organismo físico, o qual não pode tolerar a intromissão, em seu seio, de um corpo estranho sem se empenhar imediatamente em digerir e assimilar o intruso100.
Essa ideia de que o mundo oculto do amor não representa algo semelhante a nós mesmos significa muito para Deleuze, haja vista a leitura que faz de Proust. Desse modo, se “o amado implica, envolve, aprisiona um mundo que é preciso decifrar”101, seria justo dizer que os signos emitidos pelo amado, ainda que mentirosos102, constroem muito mais que as verdades de qualquer amizade103?
Se “começar a pensar é começar a ser atormentado”104, como diz um Camus deleuzeano, então se pode dizer que este ato também se originaria pelas vias do ciúme. Quando Proust retrata, tanto o amor de Charles Swann por Odette como o de Marcel por Albertine, essa é a tonalidade afetiva que interessa e que conduz em partes o aprendizado105, mesmo quando o herói tenta a todo custo dissimular sua importância106.
Destarte, ainda que se possa ser impelido a pensar a partir de uma gama de imagens ou cenários, desde a cantata proustiana do ciúme masculino até o fel ou a mórbida lembrança da mulher amada de Poe, o que não se pode mais esconder é que, a partir de uma aliança Camus-Deleuze, pensa-se ou escreve-se com imagens para, então, poder pensar sem imagens. Aliás, como afirma Derrida, essa é a cadência do que se procura chamar de escritura:
Há, agora, a tendência a designar por “escritura” tudo isso e mais alguma coisa: não apenas os gestos físicos da inscrição literal, pictográfica ou ideográfica, mas também a totalidade do que a possibilita […] a partir daí, tudo o que pode dar lugar a uma inscrição em geral, literal ou não, e mesmo que o que ela distribui no espaço não pertença à ordem da voz: cinematografia, coreografia, sem dúvida, mas também “escritura” pictural, musical, escultural etc107.
Mas, se por fim, o propósito de toda escrita ou escritura for atingir o ponto em que o pensamento é forçado, a que consequencias epistemológicas se pretende chegar? É verdade que os signos sensíveis de Proust contribuem de alguma maneira à criação108, mas a questão toda é mesmo saber as direções de tal ato. Saber por quais amores se diz sim ou não.
Donde, quando falo do que significa pensar e das operações de negação ou afirmação do pensamento, refiro-me a três pontos discutidos até aqui, a saber: (i) A recognição; (ii) a transcendência e; (iii) as práticas minimizadoras da condição humana. Assim, em primeiro lugar, desejei apontar para a possibilidade de aceitação incondicional da história e das escolas da filosofia, movimento adjacente àquele pelo qual não se pensa ou se pensa pouco diante do que a grande escrita, para além da sociedade de consumo, tenta fazer ver.
Esse problema, aliás, já bem conhecido por Platão109, reaparece também no romance A Caverna de José Saramago110. É possível, assim, que ambos nos mostrem uma densa e imóvel imagem do pensamento. E se a questão é retirar os homens das sombras, não importando quais são suas matizes, no caso de Saramago, poder-se-ia perguntar se não é contra as representações da sociedade do espetáculo que se deve investir111.
Em segundo lugar, tentei compreender como as manias filosóficas de transcendência, na medida em que priorizam as categorias ontológicas da abóboda celeste, esquecem-se justamente daquilo que emerge de mais valioso no mundo e que por vezes, só o artista como filósofo obtém a coragem de apresentar, tanto ou mais que qualquer outro. Contiguamente, tratei de assinalar as implicações dos métodos e dos meios pelos quais se faz pensar, principalmente em suas ligações perigosas com as ações que atentam contra a vida, fazendo dos discursos e dos conceitos a expressão máxima da crueldade filosófica.
Desse modo, pode-se dizer que a criação caminha sempre de acordo com o que se entende como recusa ou insubordinação. Por exemplo: na ausência de um lugar no mundo, os dândis revoltados permitem-se algumas vantagens, as quais Camus aponta bem. Segundo ele, “Sem dúvida, por si mesmo o assassinato não é recomendado. Mas está implícito no valor, supremo para o romântico, de frenesi”112.
Mas será que essa atitude romântica e transcendente (já que promove uma forma degradada de ascese)113 do homem divorciado com o mundo não o coloca a um passo de aceitar discursos como o de Joseph Goebbels? Em seus diários, o ministro das comunicações de Hitler diz:
Atenção! Qualquer pessoa que favoreça, ou divulgue medidas que possam embranquecer nossa resistência é um traidor! Deve ser imediatamente fuzilado ou enforcado. (Jornal Panfleto Der Pänzenbär 23 de abril de 1945). Não deixem nada para eles tomarem, queimem terra, arrasem as fábricas e dinamitem os transportes114.
Ademais, a égide da ascese diante do absurdo é, em outro ponto, um modo de retirar o homem de suas possibilidades, haja vista o conflito que percorre toda a vida de Kierkegaard, desde o rompimento com a noiva Regina Olsen até a busca de uma cura115. De tal modo, será que é preciso pular de cama em cama, sem escolas nem instituições por trás, migrando de um Kansas a outro como fez Rushdie quando teve sua cabeça caçada pelo islã?116
Diante das determinações conceituais das escolas e das manipulações dos mestres da verdade, não seria prudente falar em soluções. Talvez fosse melhor considerarmos a validade de um lirismo descompromissado pelo qual se pode pensar, por Proust ou por Poe, a criação universal dos conceitos de uma poética117 sem amanhã. Afinal, por quais fármacos a escrita oferece ou não anticorpos? Trata-se por isso de apontar para uma filosofia desenraizada, um livro dos desassossegos118, pensamento fora de si para ver os mágicos (We’re off to see the wizard) monstruosos e não obstante desinteressados.
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1Cf. WHITMAN, W. Folhas de relva. Edição do leito de morte. Trad. Bruno Gambarotto. São Paulo: Hedra, 2011. p. 26-27.
2Cf. BORGES, J. L. O livro dos seres imaginários. Trad. Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
3Cf. BAUM, L. F. O Mágico de Oz. Tradução: Santiago Nazarian. São Paulo: Barba Negra: Leya, 2011.
4Cf. O MÁGICO DE OZ. (filme). Victor Fleming, 1939. Warner Home Video. DVD, 101min.
5Cf. RUSHDIE, S. O Mágico de Oz. Tradução de Rolf Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 17-27.
6Disponível em
7Cf. RUSHDIE, S. O Mágico de Oz. Op. Cit., p. 16.
8Cf. KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Op. Cit, p. 15.
9A Filosofia, diz Deleuze, se “reterritorializa sobre o conceito. O conceito não é objeto, mas território. Não há Objeto, mas um território. Precisamente por isso, ele tem uma forma passada, presente e talvez por vir”. Cf. DELEUZE, G. & GUATARRI, F. O Que é a Filosofia?. Op. Cit., p. 131-136.
10Cf. RUSHDIE, S. O Mágico de Oz. Op. Cit., p. 27.
11Essa ideia ecoa O Mito de Sísifo, “carta aberta” de Camus aos suicidas, aos nauseados ou angustiados, aos homens sem familiaridade com o mundo. Segundo ele, “Num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, porque está privado das lembranças de uma pátria perdida ou de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo”. Cf. CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Trad. De Ari Roitman e Paulina Watch. 8ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. p. 20.
12Disponível em < http://www.dallasvoice.com/tag/room>. Acesso: 16 de outubro de 2013.
13Cf. WHITMAN, W. Folhas de relva. Edição do leito de morte. Op. Cit., p. 189-193.
14Cf. PLATÃO. A República. Trad. M. H. da Rocha Pereira. 9ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. Livro X, 601a – 601b. p. 461.
15Embora Descartes não rechace prontamente as outras formas de pensar, afirmando até mesmo que seu “propósito não é ensinar o método que cada um deve seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo procurei conduzir a minha”, vale lembrar que ele não se esqueceu de alfinetar os artistas. Aí, me interessa principalmente a seguinte afirmação: “As fábulas nos fazem imaginar como são possíveis acontecimentos que não o são”. Cf. DESCARTES, R. Discurso do Método. Op.Cit., p. 9-13.
16No caso de Descartes, a seguinte passagem da Carta-prefácio dos princípios da Filosofia nos ajuda a compreender bem o problema:: “mas o que chamamos nossa alma ou nosso pensamento, tomei o ser ou a existência desse pensamento como o primeiro Princípio, do qual deduzi claramente os seguintes, a saber: há um Deus que é autor de tudo que há no mundo e que, sendo a fonte de toda verdade, não criou nosso intelecto de tal natureza que se possa enganar no juízo que faz das coisas de quem tem uma percepção muito clara e muito distinta”. Cf. DESCARTES, R. Carta-prefácio dos princípios da Filosofia. trad. Homero Santiago. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 15.
17É importante que se faça uma ressalva: Não obstante Platão seja um crítico mordaz da poesia, é bem verdade que boa parte de seus diálogos utilize-se de imagens para subverter o mito a seu favor. Para maiores detalhes sobre a relação entre o logos e a imagem, Cf. VERNANT, J.P. O Universo, os Deuses, os Homens. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. SP: Companhia das Letras, 2000.
18Cf. DELEUZE, G. & GUATARRI, F. O Que é a Filosofia?. Op. Cit., p. 60.
19Cf. DELEUZE, G. Lógica do sentido. Op. Cit, p. 131.
20Cf. DELEUZE, G. & GUATARRI, F. O Que é a Filosofia?. Op. Cit., p. 63-64.
21Sobre a ideia de filosofia na superfície, Deleuze diz: “O filósofo não é mais o ser das cavernas, nem a alma ou o pássaro de Platão, mas o animal chato das superfícies, o carrapato, o piolho. O símbolo filosófico não é mais a águia de Platão, nem a sandália de chumbo de Empédocles, mas o manto duplo de Antístenes e de Diógenes. O bastão e o manto, como Hércules com seu porrete e sua pele de leão. Como nomear a nova operação filosófica enquanto ela se opõe ao mesmo tempo à conversão platônica e à subversão pré-socrática? Talvez pela palavra perversão, que convém pelo menos ao sistema de provocações deste novo tipo de filósofos, se é verdade que a perversão implica uma estranha arte das superfícies. Cf. DELEUZE, G. Lógica do sentido. Op. Cit, p. 136.
22Cf. DELEUZE, G. & GUATARRI, F. O Que é a Filosofia?. Op. Cit., p. 153-202.
23Ibidem, p. 66. Refiro-me também aqui ao apêndice à primeira parte da Ética, em que Espinosa é incisivo contra os preconceitos filosóficos implicados na transcendência, principalmente quando se considera que a ideia de ruptura entre o homem e Deus é a causa das privações e da bonança do homem. Segundo suas palavras: “todos os preconceitos que aqui me proponho a expor dependem de um único, a saber, que todos os homens pressupõem, em geral, que todas as coisas naturais agem, tal como eles próprios, em função de um fim, chegando até mesmo a dar como assentado que o próprio Deus dirige todas as coisas tendo em vista algum fim preciso, pois dizem que Deus fez todas as coisas em função do homem, por sua vez, para que este lhe prestasse culto”. Cf. SPINOZA, B. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2010. p. 65.
24Um dos grandes temas da oposição filosófica entre Leibniz e Espinosa é a ideia do primeiro de que Deus, em sua bondade e diante das verdades eternas, nunca poderia encerrar neste mundo todos os possíveis. Em termos muito gerais, é por isso que compreendemos as razões pelas quais ele afirma que vivemos no melhor dos mundos. Segundo o mito de Sextus, na Teodicéia, “É suficiente que eu ordene e veremos todos os mundos que meu pai poderia ter produzido, nos quais estariam representadas todas as coisas que dele poder-se-ia pedir; e desse modo conhecer-se-ia, ainda, tudo que aconteceria, se tal ou tal possibilidade particular devesse existir. E, mesmo que as condições não estejam suficientemente determinadas, haverá tantos mundos diferentes dos outros quanto se possa desejar, que responderão diferentemente à mesma questão, de tantas maneiras quanto possíveis. Você pode imaginar por si mesmo uma seqüência ordenada de mundos, que conterá cada um e todos os exemplos que estão em questão variando suas circunstâncias e suas conseqüências”. Cf. LEIBNIZ, G. W. Essais de Théodicée: Sur la bonté de Dieu, la liberté de l’homme et l’origine du mal. Préface et notes de Jacques Jalabert. Paris: Aubier Montaigne: 1956. p. 375.
25Cf. ARENDT, H. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo; Posfácio de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. p.15.
26Cf. DELEUZE, G & GUATARRI, F. O Que é a Filosofia?. Op. Cit., p. 89.
27Ibidem, p. 89-90.
28Ibidem, p. 222.
29Cf. DELEUZE, G. Lógica do sentido. Op. Cit, p. 01.
30Cf. DELEUZE, G & GUATARRI, F. O Que é a Filosofia?. Op. Cit., p. 203-204.
31A questão da perda de identidade percorre toda a obra, se estendendo desde o momento em que ela bebe o frasco em cima da mesa, aumentando e diminuindo de tamanho, até a conversa com a lagarta, com Humpty Dumpty ou com as flores em Além do Espelho. Cf. CARROLL, L. Alice: edição comentada. Op. Cit.
32Cf. DELEUZE, G. Lógica do sentido. Op. Cit, p. 78-82.
33Cf. DELEUZE, G & GUATARRI, F. O Que é a Filosofia?. Op. Cit., p. 203.
34Num texto intitulado “Uma história emaranhada”, Lewis Carroll compila diversos artigos em forma de dez “nós” que envolvem problemas “(como no caso dos remédios amargos)” com a intenção de desenvolver os acontecimentos humanos. Cf. CARROLL, L. Obras Escolhidas. Tradução de Eugênio Amado. Belo Horizonte, Itatiaia, 1999. p. 887-1005.
35Cf. DELEUZE, G & GUATARRI, F. O Que é a Filosofia?. Op. Cit., p. 30.
36Idem, Ibidem, p. 143.
37Cf. DELEUZE, G. O Abecedário de Gilles Deleuze. Entrevista com G. Deleuze. Op. Cit.
38Cf. WITTGENSTEIN, L. Tractatus Lógico-Philosophicus. Trad. José Arthur Giannoti. São Paulo: Companhia Editora Nacional: Editora da Universidade de São Paulo, 1968, p. 55.
39Em termos gerais, o ciclo proustiano de Em busca do tempo perdido, composto por 7 romances, deve ser compreendido não apenas como uma busca do personagem Marcel pela verdade, mas como uma jornada sobre o que significa aprender. Nesse sentido, a memória dá, a princípio, o tom primeiro da descoberta temporal que só se completará no entrelaçamento entre os signos mundanos, sensíveis, do amor e sobretudo da arte. PROUST, M. No caminho de Swann / À sombra das moças em flor. Tradução de Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. p. 150.
40Cf. DELEUZE, G. O Abecedário de Gilles Deleuze. Entrevista com G. Deleuze. Op. Cit.
41Idem, Ibidem. Para Deleuze, os afectos são “devires que transbordam daquele que passa por eles, que excedem as forças daquele que passa por eles”. É importante notar também que devir, conforme dito em O Que é filosofia?, é para Deleuze aquilo que dois termos heterogêneos trocam entre si numa zona de vizinhança, proporcionando por conseguinte a fuga de um princípio fixo de identidade. Cf. DELEUZE, G & GUATARRI, F. O Que é a Filosofia?. Op. Cit., p. 225.
42Cf. DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Op.Cit., p. 203.
43Nas palavras de Espinosa: “O corpo pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, enquanto outras tantas não tornam sua potência de agir nem maior nem menor”. Cf. SPINOZA, B. Ética. Op. Cit., p. 163. Vale destacar também a observação que Deleuze faz em curso de 1978 sobre os afetos na obra de Espinosa: “No livro principal de Spinoza, que se chama “Ética” e está escrito em latim, encontramos duas palavras: “affectio” e “affectus”. Alguns tradutores, muito estranhamente, traduzem-nas da mesma maneira. É uma catástrofe. Eles traduzem os dois termos, affectio e affectus, por “afecção”. Assim, quando eu emprego a palavra “afeto” ela remete ao affectus de Spinoza, e quando eu disser a palavra “afecção”, ela remete a affectio. Cf. DELEUZE, G. Spinoza. Disponível em:
44Utilizo-me da palavra imane a partir do latim immanis, denotando justamente a ideia de grandeza, desmesura ou monstruosidade.
45Cf. DELEUZE, G & GUATARRI, F. O Que é a Filosofia?. Op. Cit., p. 183.
46Cf. DELEUZE, G. Lógica do sentido. Op. Cit, p. 07.
47Vale lembrar também a visão semelhante da romancista Virginia Woolf sobre essa questão. Segundo ela: “Mas o grande escritor – Hardy ou Proust – segue seu caminho indiferente aos direitos de propriedade privada; com o suor de seus rosto, retira ordem do caos; planta sua árvore lá, e seu homem aqui.traça a figura de seu Deus mais próxima ou mais distante conforme deseja. Eles nos impõe sua perspectiva tão severamente que em geral nos angustiamos – nossa vaidade porque nossa própria ordem é perturbada; nos amedrontamos porque os velhos esteios estão sendo arrancados de nós; e ficamos aborrecidos – pois que prazer ou divertimento pode ser extraído de uma fagulha de ideia nova? Ainda que seja de raiva, medo e aborrecimento, um raro e duradouro encanto às vezes nasce”. Cf. WOOLF, V. O leitor comum. Trad. Luciana Viégas. Rio de Janeiro: Graphia, 2007. p. 44-45.
48A carta, enviada a seu amigo Franz Overbeck, data de 30 de julho de 1881. Cf. CADERNOS ESPINOSANOS / ESTUDOS SOBRE O SÉCULO XVII. Trad. Homero Santiago. São Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 2007. p. 137.
49Cf. DELEUZE, G. & PARNET, C. Diálogos. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora Escuta, 1998, p. 88.
50Cf. SHAKESPEARE, W. Hamlet, Rei Lear, MacBeth. Trad. Bárbara Heliodora. São Paulo: Abril, 2010. p. 98.
51Tradução do título: Onze Epitáfios Esboçados.
52Cf. CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Op. Cit., p. 26.
53Idem, Ibidem.
54Cf. CAMUS, A. O Mito de Sísifo.Op. Cit., p. 17.
55Para Deleuze, Nietzsche estava “profundamente farto de todas essas histórias feitas em torno da morte do pai, da morte de Deus, e queria findar com os intermináveis discursos a esse respeito, discursos que eram moda no seu tempo hegeliano”. O que Nietzsche queria, segue dizendo Deleuze, era “que se passasse, enfim, às coisas sérias”. Cf. DELEUZE, G. & GUATARRI, F. O Anti-Édipo. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo, Ed. 34, 2010. p. 145.
56Cf. DESCARTES, R. Carta-prefácio dos princípios da Filosofia. Op. Cit., p. 4.
57Aludo aos Discursos de Metafísica de Leibniz, na seguinte passagem: “Toda a substância é como um mundo inteiro e como um espelho de Deus, ou de todo o universo, que cada uma exprime à sua maneira, quase como uma mesma cidade é diversamente representada segundo as posições de quem a vê”. Cf. LEIBNIZ, G. W. Discurso de Metafísica. Trad. Adelino Cardoso. Lisboa: Edições 70, 1985. p. 27.
58Para Camus, o revoltado, “em seu primeiro movimento recusa-se a deixar que toquem naquilo que ele é. Ele luta pela integridade de uma parte de seu ser. Não busca conquistar, mas impor”. A revolta, diz Camus, “em seu princípio, limita-se a recusar a humilhação sem exigi-la para os outros. Aceita inclusive o sofrimento para si mesma, desde que sua integridade seja respeitada”. Quando falo de um lado perigoso da revolta, refiro-me à revolta luciferina dos dândis, afastados de um Deus agressor por um lado e simpáticos ao assassinato por outro. Cf. CAMUS, A. O Homem Revoltado. Op.Cit., p .30.
59Idem, Ibidem p . 67.
60Ibidem, p . 325.
61Cf. DESCARTES, R. Discurso do Método. Op.Cit., p. 43-56. A questão é discutida na terceira parte da obra.
62Essa questão, que já não é novidade na história da filosofia, aparece em Espinosa antes da Ética, já no Tratado da Reforma da Inteligência. Conforme diz o filósofo ele: “decidi, finalmente, indagar se existia algo que fosse um bem verdadeiro, capaz de comunicar-se, e que, rejeitados todos os outros, fosse o único a afetar a alma (animus); algo que, uma vez descoberto e adquirido, me desse para sempre o gozo contínuo de suprema felicidade”. Cf. ESPINOSA, B. Tratado da Reforma da Inteligência. Trad. Lívio Teixeira. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2004. p. 5.
63Cf. CAMUS, A. O Mito de Sísifo.Op. Cit., 26.
64Cf. DELEUZE, G. & PARNET, C. Diálogos. Op. Cit., p. 15-16.
65Idem, Ibidem, p. 16.
66Cf. DELEUZE, G & GUATARRI, F. O Que é a Filosofia?. Op. Cit., p. 41.
67Ibidem, p. 86.
68Ibidem.
69Ibidem, p. 85.
70Ibidem, p. 89.
71Ibidem, p.94-95.
72Ibidem, p. 141.
73Cf. DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Op.Cit., p. 237-238.
74Ibidem, p. 172.
75A bela passagem de Camus esclarece bem o sentido da revolta: “O primeiro avanço da mente que se sente estranha é, portanto, reconhecer que ela compartilha esse sentimento com todos os homens, e que a realidade humana, em sua totalidade, sofre com esse distanciamento em relação a si mesma e ao mundo. O mal que apenas um homem sentia torna-se peste coletiva. Na nossa provação diária, a revolta desempenha o mesmo papel que o cogito na ordem do pensamento: ela é a primeira evidência. Mas essa evidência tira o indivíduo de sua solidão. Ela é um território comum que fundamenta o primeiro valor dos homens. Eu me revolto, logo existimos”. Cf. CAMUS, A. O Homem Revoltado. Op.Cit., p .35.
76Cf. BLAKE, W. Milton. Trad. Manuel Portela. Lisboa: Antígona, 2009. p. 29-31.
77Sobre aquilo ou aqueles que se encontram no limbo, Giorgio Agamben diz: “Nem bem-aventurados como os eleitos, nem desesperados como os condenados, eles são plenos de uma alegria para sempre não-destinável”. Cf. AGAMBEN, G. A comunidade que vem. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. p. 14.
78Camus atribui esse tema a boa parte da obra de William Blake. Cf. CAMUS, A. O Homem Revoltado. Op.Cit., p .66.
79Cf. ARISTÓTELES. Arte poética. In: A poética clássica/ Aristóteles, Horácio, Longino. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 33.
80Diz Descartes: “As fábulas podem nos fazer imaginar, como possíveis de terem acontecido no passado ou no futuro, fatos que nunca puderam ou não poderão ocorrer”. Cf. DESCARTES, R. Discurso do Método. Op.Cit., p. 13-14.
81Cf. ARISTÓTELES. Arte poética. Op. Cit., p. 29.
82Idem, Ibidem, p. 24. A questão da catarse em Aristóteles é referida sobretudo em relação à tragédia.
83As fábulas, de acordo com Aristóteles, “não se devem compor de partes irracionais; tanto quanto plausível, não deve haver nelas nada de absurdo”. Ibidem, p. 48.
84Para Aristóteles, a fábula episódica é uma “composição fraca em que a sucessão de episódios não decorre nem da verossimilhança nem da necessidade. Dessas fazem os poetas medíocres por serem o que são, e também os bons por atenção aos atores; compondo para concursos e dilatando a fábula além do que ela suporta, são amiúde forçados a contrafazer a sequência natural”. Idem, Ibidem, p. 29.
85Cf. CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Op. Cit., p. 116.
86Conforme as três últimas estrofes do poema: “Profeta!”, disse, “coisa do mal — profeta sim, seja ave ou demônio! — por esse céu que se estende sobre nós, por esse Deus que ambos adoramos, dizei a esta alma, dizei a esta alma pesada de tristeza se, no Éden distante, poderá estreitar uma jovem santificada, uma jovem rara e radiante, a quem os anjos chamam Leonore”. Disse o Corvo, “Nunca mais” / “Que tais palavras marquem nossa despedida, ave ou vilão”, uivei, levantando-me. “Voltai para a tempestade e para as plagas plutônicas da Noite! Não deixeis pluma negra como memória da mentira que vossa alma proferiu! Largai intacta a minha solidão! Deixai o busto sobre a minha porta! Tirai vosso bico de meu coração e arrancai vossa forma de minha porta!” Disse o Corvo, “Nunca Mais”. / E o Corvo, sem mover-se, ainda pousa, ainda pousa sobe o pálido busto de Palas, bem acima da porta de meu gabinete; e seus olhos são como os de um demônio que sonha, e a luz da lamparina que sobre ele se derrama lança sua sombra ao chão; e dessa sombra que flutua sobre o chão minha alma não se erguerá — nunca mais! Cf. ABRAMO, C. W. O corvo. Gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe. Trad. Cláudio Weber Abramo. São Paulo: Hedra, 2011. p. 69.
87Cf. POE, E. A. Ficção completa, poesia & ensaios. Org. e trad. Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1958. p. 914.
88Idem, Ibidem. p. 913.
89Ibidem. p. 920.
90Cf. BORGES, J.L. Ficções. Op. Cit., p. 14.
91Cf. DELEUZE, G. A Filosofia Crítica de Kant. Op. Cit.,. p. 66.
92Cf. WILDE, O. O retrato de Dorian Gray. Trad. Lígia Junqueira. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2011. p. 5-6.
93Cf. WOOLF, V. O leitor comum. Op. Cit., p. 123.
94Cf. CARROLL, L. Aventuras de Alice. Tradução e organização de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Summus, 1980. p. 7.
95Uchoa Leite chega a dizer que o paradoxo como tema central da leitura deleuzeana de Carroll é talvez a mais ambiciosa investida sobre o autor de Alice. Cf. CARROLL, L. Aventuras de Alice. Op. Cit., p. 23.
96Idem, Ibidem, p. 19. Ainda de acordo com Uchoa Leite, a psicanálise se concentrou não só na aversão de Caroll a meninos. Em suas palavras, “As abordagens psicanalíticas de Carroll não se limitam só ao campo freudiano estrito. Também os junguianos deram a sua versão de Alice. Assim, Judith Bloomingdale torceu a poética imagem de Alice como a Beatrice de Carrol, a musa de sua Comédia, sendo também a representação do arquétipo feminino, do elemento inconsciente, ou anima, no espírito humano”.
97Nas palavras de Baum, no prefácio: “Chegou a hora de novos contos maravilhosos, nos quais os personagens do gênio, da fada e do anão estereotipados sejam eliminados, junto com todo aquele derramamento de sangue criado por seus autores para demonstrar uma terrível moral em cada história. A criança moderna busca apenas diversão em suas histórias maravilhosas e dispensa sem pensar todos esses incidentes desagradáveis. Pensando nisso, a história de O Mágico de Oz foi escrita puramente para agradar as crianças de hoje. Essa história aspira ser um conto de fadas moderno, no qual o deslumbramento e a alegria são assegurados, e o sofrimento e os pesadelos são deixados de fora”. Cf. BAUM, L. F. O Mágico de Oz. p. 9.
98Cf. KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Op. Cit, p. 154-155.
99Cf. WOOLF, V. O leitor comum. Op. Cit., p. 111.
100Cf. PROUST, M. No caminho de Swann / À sombra das raparigas em flor. Op. Cit., p. 607.
101Cf. DELEUZE, G. Proust e os Signos. Op. Cit.,p. 7.
102Idem, Ibidem. p. 8.
103Diz o herói de Proust: “Até a conversação que é a forma de expressão da amizade, não passa de uma divagação superficial, que não nos faz adquirir coisa alguma. Podemos conversar durante a vida inteira sem dizer nada senão repetir indefinidamente o vazio de um minuto, ao passo que a marcha do pensamento no trabalho solitário de criação artística se faz no sentido da profundidade, a única direção que não nos é fechada, onde poderíamos progredir, claro que com mais sofrimento, para obter uma verdade. E a amizade não é apenas destituída de virtudes, ela é funesta. Pois a impressão de tédio que que não podem deixar de sentir junto ao amigo, isto é, de permanecer na superfície de si mesmos em vez de prosseguir sua viagem de descobertas nas profundezas”. Cf. PROUST, M. No caminho de Swann / À sombra das raparigas em flor. Op. Cit., p. 682.
104Cf. CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Op. Cit., 18.
105Para Deleuze, quando Proust parece descrever tão minuciosamente o ciúme, “inventa um afecto porque não deixa de inverter a ordem que a opinião supõe nas afecções, segundo a qual o ciúme seria uma conseqüência infeliz do amor: para ele, ao contrário, o ciúme é finalidade, destinação e, se é preciso amar, é para poder ser ciumento, sendo o ciúme o sentido dos signos”. Cf. DELEUZE, G & GUATARRI, F. O Que é a Filosofia?. Op. Cit., p. 227.
106Diz o protagonista, Charles Swann: “E dizer que desperdicei anos da minha vida, que desejei morrer, que vivi o meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não fazia meu tipo!”. Cf. PROUST, M. No caminho de Swann / À sombra das raparigas em flor. Op. Cit., p. 298.
107Cf. DERRIDA, J. Gramatologia. Trad. Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 11.
108Afirma Deleuze: “Uma qualidade sensível nos proporciona uma estranha alegria, ao mesmo tempo que nos transmite uma espécie de imperativo. Uma vez experimentada, a qualidade não aparece mais como uma propriedade do objeto que a possui no momento, mas como o signo de um objeto completamente diferente, que devemos tentar decifrar através de um esforço sempre sujeito a fracasso. Depois, uma espécie de sentimento de obrigação, necessidade de um trabalho do pensamento: procurar o sentimento do signo (acontece, entretanto, que nós nos furtamos a esse imperativo, por preguiça ou porque nossas buscas fracassam por impotência ou azar)”. Cf. DELEUZE, G. Proust e os Signos. Op. Cit., p. 10-11.
109Falo do notório mito da caverna e do não menos célebre diálogo entre Glauco e Sócrates: “estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas (…) semelhantes a nós”. Cf. PLATÃO. A República. Op. Cit., p. 315-316.
110No romance, Saramago narra a história de Cipriano Algor, oleiro sexagenário que fabrica louças de barro para o que é dito ser um grande Centro comercial. O livro, que discute entre outros temas a precarização do trabalho e a substituição do trabalho artesanal pelo industrializado, apresenta, ao seu final, uma imagem extremamente irônica que mostra como o capitalismo se apropria de todas as esferas da vida para transformá-las em meios de obtenção de lucro. Na cena em questão, o personagem Marçal conta estarrecido aos familiares os dizeres de um enorme anúncio colocado na fachada do Centro comercial: “BREVEMENTE, ABERTURA AO PÚBLICO DA CAVERNA DE PLATÃO, ATRACÇÃO EXCLUSIVA, ÚNICA NO MUNDO, COMPRE JÁ A SUA ENTRADA”. Cf. SARAMAGO, J. A Caverna. São Paulo: Companhia das letras, 2000. p. 350.
111Em entrevista, Saramago diz: “Não são apenas as pequenas livrarias que estão acabando, mas todo o pequeno comércio. O que se quer? Que as pessoas se solidarizem com o pequeno comércio? Não, as pessoas agem de acordo com seus interesses, elas encontram tudo no centro comercial, compram no centro comercial. O que não se diz é que no centro comercial não é preciso falar, ao contrário do que ocorre nas lojas, você pega o que precisa, paga e vai embora. É preciso admitir que há coisas que já não se mostram mais necessárias, e o mundo não pode virar um museu. O problema não está tanto na existência do centro comercial; tudo está é no deslocamento do poder. Quem manda são as multinacionais, e os centros comerciais são ponto de implantação de um sistema econômico, o nosso”. Cf. SARAMAGO, J. As palavras de Saramago: catálogo de reflexões pessoais, literárias e políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 463.
112Cf. CAMUS, A. O Homem Revoltado. Op.Cit., p . 68.
113Idem, Ibidem, p. 70.
114Cf. GOEBBELS, J. Diário, ultimas anotações 1945. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. p. 267.
115Nas palavras de Camus: “O importante não é se curar, mas conviver com os próprios males. Kierkegaard quer se curar. Curar-se é seu desejo furioso, que percorre seu diário de ponta a ponta. Todo o esforço da sua inteligência é escapar à antinomia da razão humana. Esforço ainda mais desesperado quando ele percebe, em lampejos, a vaidade. Por exemplo, quando fala de si, como se nem o temor a Deus nem a piedade fossem capazes de lhe trazer a paz”. Além disso, em outra passagem, Camus lembra o ponto a que Kierkegaard chegou na busca de conforto, citando-o: “Mas, para o cristão, a morte não é de modo algum o fim de tudo, ela implica infinitamente mais esperança que a vida comporta para nós, mesmo transbordando de saúde e força”. Cf. CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Op. Cit., p. 52-53.
116A partir da publicação de seu romance Os Versos Satânicos, em 1989, o romancista indiano foi caçado pela determinação de uma fatwa do islã, decretada pelo aiatolá Khomeini, que o acusava de fomentar o abandono da religião. Segundo as palavras do próprio escritor, “Viver, evitar o assassinato, é uma vitória maior do que ser assassinado. Só fanáticos procuram o martírio. Às vezes há momentos ruins. Durante um desses momentos ruins, dormi em treze camas diferentes em vinte noites. Nesses momentos, uma louca e imensa dissonância preenche seu corpo. Nesses momentos, você começa a se descolar de si mesmo”. Cf. RUSHDIE, S. Cruze esta linha: ensaios e artigos (1992-2002). trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das letras, 2007. p. 238.
117Aludo à conhecida passagem da Arte Poética em que Aristóteles diz: “A poesia encerra mais filosofia e elevação do que a História; aquela enuncia verdades universais. Esta relata fatos particulares”. Cf. ARISTÓTELES. Arte poética. Op. Cit., p. 28.
118No trecho 152 de seu Livro do desassossego, Fernando Pessoa diz: “Por que escrevo, se não escrevo melhor? Mas que seria de mim se não escrevesse o que consigo escrever, por inferior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspiração, porque tento realizar; não ouso o silêncio como quem receia um quarto escuro. Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo”. Cf. PESSOA, F. Livro do desassossego. São Paulo: Companhia das letras, 2011. p. 171.