Por Ruben Pimentel (valholl@valholl.zzn.com)
Comunicação (com algumas alterações) apresentada no I Simpósio Internacional e II Nacional de Estudos Celtas e Germânicos, realizado em Florianópolis – SC, dos dias 25 a 28 de julho de 2006.
© Copyright do autor, 2006.
A Völuspá (“A profecia da vidente”) é um dos principais poemas do medievo paganista germânico. Faz parte de uma coletânea de poemas anônimos conhecida como Edda poética, pertencendo a um grupo de poemas relativos à mitologia e divindades germânicas. Este grupo de poemas é de composição mais recente que os poemas do segundo grupo, os poemas relativos aos heróis ou heroicos. Algumas estrofes da Völuspá aparecem também em outra importante obra do medievo germânico, a Edda em prosa, de autoria do poeta, político e historiador islandês Snorri Sturluson.
A Völuspá foi encontrada em dois manuscritos diferentes, o Codex Regius e o Hauksbók, sendo que se constatam algumas diferenças entre aqueles. Na primeira fonte, o texto apresenta-se de forma mais completa, e com algumas diferenças no número de estrofes, enquanto que o Hauksbók parece possuir uma maior interferência do compilador cristão, pois nele está inserida no final uma estrofe claramente falando da vinda do Cristo após o Ragnarök (o apocalipse da mitologia germânica):
[Então se levanta vindo para julgar,
O forte e glorioso, que a tudo comanda.]
Völuspá, 65 (Hauksbók, 58)
Estes dois manuscritos, escritos em Old Norse (“Nórdico Antigo”), a língua comum a todos os escandinavos, são respectivamente dos séculos XIII e XIV, portanto da época em que o cristianismo já era a religião aceita em toda Escandinávia. Contudo, a composição do poema é datada do século X, período anterior à implantação do cristianismo, sendo possivelmente seu autor um islandês.
A versificação da Völuspá apresenta-se sob a forma da fornyr usualðislay, ou fornyrðislay, isto é, “metrificação antiga”, uma forma primitiva e bastante comum da poesia germânica, onde cada linha é dividida por uma pausa cesural em duas metades, com cada uma contendo duas sílabas tônicas e duas (às vezes três) átonas. As duas metades de linha formando a linha completa são unidas pela aliteração, ou mais apropriadamente “rima inicial”, de três (ou duas) das sílabas tônicas.
Nossa fonte primária, em sua forma “publicada”, é divida em 66 (sessenta e seis) estrofes cada uma com um número variado de versos. Conta através da visão de uma völva (“vidente”), consultada pelo deus Óðinn (Odin), a criação do mundo, descrevendo toda a cosmogonia germânica, até o final dos tempos, a escatologia germânica, narrando a guerra entre deuses e gigantes no Ragnarök, e por fim um novo início, evidenciando o grau cíclico da mitologia germânica.
Em primeiro lugar as diferenças existentes entre as três versões literárias diferentes do poema, a saber, aquela contida no manuscrito Codex Regius, a pertencente ao manuscrito Hauksbók e a presente na Edda em prosa, são dignas de comparação para se procurar evidencias de influência cristã. O primeiro manuscrito é, em nosso ver, o mais completo, pois nele o poema aparece com um maior número de estrofes e versos, o que por outro lado pode significar uma maior interferência do compilador cristão.
Em segundo lugar a obra de Snorri, apesar de o poema não constar de forma completa nesta obra, isso devido ao fato do autor ter tido acesso ao poema através de uma outra fonte, e não àquela dos manuscritos referidos, que são de compilação um pouco posterior ou contemporânea a sua obra, o que nos leva a conjecturar que sua fonte talvez esteja redigida com menos influências cristãs.
Em terceiro lugar, o manuscrito Hauksbók, o mais recente dos três, copilado no século XIV, pode ser o que tem a maior influência cristã no momento de ser redigido, é nele que aparece o verso exemplificado acima, que atesta a vinda de Cristo, pois nesse momento do poema, o deus principal do panteão germânico, Óðinn, já havia sido morto nas mandíbulas do lobo-monstro Fenrir, assim como outros dos principais deuses.
Por fim, as analogias das passagens do poema com as fontes bíblicas, considerando não somente as fontes literárias, mas também as fontes de outros tipos, como, por exemplo da arqueologia, onde podemos ver passagens do poema representadas em cenas de pinturas da Idade do Bronze na Escandinávia. Portanto, deve-se tomar cuidado para não atrelar tudo às influências cristãs, como o fato da morte dos principais deuses no Ragnarök e o surgimento de um novo mundo, ser a superação do cristianismo anti uma fé paganista em decadência, como alguns autores já defenderam. Essa ciclicidade do mundo mitológico germânico é comum em todas as mitologias indo-europeias.
Referências:
Fontes Primárias:
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