Artigo feito por Tuiaro e Gwen, e gentilmente cedido pelo Portal Tolkienianos
Foi na 1ª Era, durante a Grande Escuridão, que Morgoth criou os Trolls, gigantes canibais de sangue preto, fortes, ágeis mas pouco inteligentes, que não conheciam a fala. Morgoth criou-os à semelhança dos Ents, mas não eram tão fortes como estes, apesar de serem muito poderosos. Segundo Barba de Árvore “Os Trolls não passam de imitações feitas pelo inimigo na Grande Escuridão, à semelhança dos Ents, como os Orcs o foram à dos Elfos.” (1). Mas como todos os seres criados por Morgoth nessa altura, não estavam preparados e não conseguiam suportar o Sol: “pois os Trolls, como provavelmente sabeis, devem estar debaixo da terra antes do alvorecer, ou voltam a ser do material das montanhas de que são feitos, e nunca mais se mexem.” (2)
Por isso, depois do aparecimento da Grande Luz, os Trolls refugiaram-se nas fortalezas de Morgoth e em fundas cavernas e minas, e só raramente eram vistos: o primeiro relato que existe de trolls numa batalha é na Nirnaeth Arnoediad, e eles apareceram ao entardecer, quando o Sol já se punha e a sombra das Ered Wethrin se adensava: apenas os valentes Homens de Hador resistiam quando Morgoth lançou todas as suas hostes contra eles, chacinando todos à sua volta.
Por fim só Húrin permanecia vivo, e canta-se que o seu machado fumegou no sangue preto da guarda troll de Gothmog, até por fim ser apanhado vivo, depois de ter acabado com 70 dos inimigos que o rodeavam. Após Húrin ter sido feito prisioneiro, o Sol pôs-se para lá do mar: portanto, esses guardas trolls apareceram quando ainda havia luz do dia, apesar do Sol já não incidir no campo de batalha e da sombra das Ered Wethrin já cobrir o Pântano de Serech; e era provável que, nessa altura, a vontade imperiosa de Morgoth se lhes impusesse, fazendo-os suportar a ligeira luminosidade sem que se petrificassem.
Possivelmente os trolls que sobreviveram à Guerra da Ira, esconderam-se em cavernas inacessíveis nas raízes da terra, tal como os Balrogs; mas quando Sauron voltou a erguer-se na 2ª Era, chamou a si os antigos servos de Morgoth e eles voltaram a andar livremente pelos locais escuros do mundo. Sauron aumentou-lhes a esperteza através da maldade, e conseguiram aprender rudimentos da Língua Negra com os Orcs; nas terras Ocidentais, alguns Trolls de Pedra falavam uma forma corrompida do Idioma Comum, e com o passar dos anos foram evoluindo em diversas raças: Trolls de Montanha, de Pedra, dos Montes, das Cavernas, e no Hobbit também são referidos Trolls de 2 cabeças, que ao que parece se comportavam ainda pior e discutiam mais do que os outros!
No fim da Paz Vigilante, na 3ª Era, Sauron regressa a Dol Guldur e o seu poder começa a aumentar. Os seus servos multiplicam-se e invadem Eriador, ocupando secretamente fortalezas nas Montanhas Nebulosas. Em 2930 da 3ª Era, Arador, Capitão dos Dúnedain é capturado por Trolls Montanheses a Norte de Rivendell e é morto por eles. Sucedeu-lhe o seu filho, Arathorn, pai de Aragorn.
Quando Bilbo e os Anões iniciam a sua viagem para a Montanha Solitária, em 2941 da 3ª Era, foram aprisionados por William, Bert e Tom, 3 trolls de tamanho regular, que tinham descido das Montanhas e se tinham fixado na floresta, alimentando-se das pessoas daquela região. Felizmente, graças à intervenção de Gandalf, que os manteve a discutir até ao nascer do dia, ficaram transformados em pedra assim que tocados pelos raios de Sol; e em 3018, setenta e sete anos depois, Aragorn e os Hobbits vêm os três trolls petrificados quando se dirigem para Rivendell.
Segundo Aragorn e Elrond, os Trolls eram incapazes de construir e roubavam tudo o que podiam das suas vítimas e por vezes até de outros pilhadores. Tinham sempre um abrigo nas proximidades onde viviam, para se refugiarem durante o dia e onde juntavam por vezes consideráveis tesouros. As famosas espadas Orcrist e Glamdring foram encontradas na caverna de William, Bert e Tom.
Em Mória o grupo da Irmandade é atacado por Orcs e por um grande troll das cavernas, de pele escura com escamas esverdeadas e com pés sem dedos. Boromir atacou-o com a sua espada, mas a sua pele era tão dura que esta ressaltou e não o conseguiu ferir; foi a pequena espada de Frodo, feita com a magia élfica de Gondolin, que conseguiu trespassar a pele dura do monstro: “Soou um berro e o pé recuou bruscamente, quase arrancando Ferrão do braço de Frodo. Da lâmina caíram pingos negros que fumegaram no chão.” (3). Isso fez com que o grande troll se afastasse o tempo suficiente para que os elementos da Irmandade, defendendo-se valentemente, conseguissem fugir da Câmara de Mazarbul.
Na Guerra do Anel, Sauron utilizou uma nova raça de Trolls, de nome Olog-Hai na Língua Negra (e que significa Povo Troll). Estes eram mais duros do que pedra, e portanto mais fortes do que os primeiros trolls, muito ágeis, ferozes e cheios de maldade. Tinham ainda a particularidade de poderem suportar a luz do Sol enquanto a vontade de Sauron se lhes impusesse. Sauron resolveu usar, certamente, o truque que Morgoth já tinha utilizado na 1ª Era, para poder contar com estes poderosos e temíveis seres nas suas fileiras, mesmo durante o dia; isso, no entanto, exigia de si uma atenção constante, uma vez que, por natureza, os Trolls não suportavam o Sol.
De início, nem se sabia bem de onde tinham surgido nem o que eram: foram vistos a combater durante o dia, na batalha dos Campos de Pelennor, e são referidos como meio-trolls de olhos brancos e língua vermelha. Sauron também utilizou trolls para empurrar pesados engenhos e foram trolls montanheses que manobraram o Grond, o grande aríete que destruíu a resistente Porta da Cidade de Minas Tirith.
Na batalha que se travou junto à Porta Negra, avançaram numerosos trolls dos Montes, vindos de Gorgoroth. “Eram mais altos e mais espadaúdos do que os Homens e vestiam cotas de malha justas de escamas ósseas – ou talvez se tratasse, na verdade, da sua nojenta pele. Usavam escudos redondos, enormes e pretos, e transportavam pesados martelos nas mãos nodosas. Destemidos, saltaram para os charcos e atravessaram-nos, aos berros. Caíram como uma tempestade sobre a fileira de homens de Gondor e malharam em elmo e cabeça, braço e escudo, como ferreiros em ferro quente. Ao lado dele, Beregound ficou atordoado e subjugado e acabou por cair. O grande chefe troll que o abateu inclinou-se para ele de garra estendida, pois aquelas horríveis criaturas mordiam a garganta daqueles que faziam tombar” (4). Estes eram sem dúvida Olog-Hai, pois combatiam durante o dia e eram resistentes ao Sol.
Mais uma vez, foi um pequeno Hobbit, com a sua espada encontrada na Colinas das Antas que abateu o terrível monstro: “Desembainhou a espada e observou as formas enlaçadas vermelhas e douradas nela gravadas. Os caracteres ondulantes de Númenor cintilaram na lâmina de fogo. “Foi feita exactamente para uma hora como esta” pensou Pippin.” (5) E a lâmina gravada da Ocidentalidade, preparada para quebrar a magia negra do inimigo, conseguiu rasgar a dura pele do monstro e mais uma vez o seu sangue negro jorrou e o grande chefe troll caíu como um pedregulho.
Depois da queda de Sauron, muitas das criaturas que ele tinha escravizado por feitiço, como os Trolls “mataram-se ou lançaram-se em abismos, ou fugiram a uivar e foram esconder-se em buracos e lugares escuros, longe da esperança”. (6). Esta deve ter sido a última Era em que tais criaturas viveram, pois não há registos de terem sido vistas posteriormente. Com o desaparecimento dos seus criadores, o poderoso feitiço que os mantinha vivos quebrou-se e também eles acabaram por desaparecer.
Citações:
(1) Duas Torres, pág. 96
(2) Hobbit, pág.39
(3) A Irmandade do Anel, pág. 373
(4) Regresso do Rei, pág. 180-181
(5) Regresso do Rei, pág. 180
(6) Regresso do Rei, pág. 244
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Trolls, Jötnar e Thursar
A ideia inicial deste artigo era analisar os trolls tal como são referidos e representados nas fontes mitológicas nórdicas, mas não só o uso de dois outros termos como sinónimos é frequente, como estes ocorrem muitas mais vezes. Assim sendo, tal como indica o título, o texto debruça-se não só sobre trolls, mas também jötnar e thursar. Não é nem se pretende que seja uma recolha exaustiva, mas apenas parcial, uma amostra, de modo a dar uma ideia geral sobre cada desses seres e, desse modo, fornecer as bases para uma comparação com outros do mesmo género na obra mitológica de J. R. R. Tolkien.
À excepção das citações de textos e expressões, os caractéres ð e þ foram transliterados para d e th, respectivamente, tendo o primeiro o valor fonético [d] e o segundo [f], tal como o th em Sindarin (ex.: Elbereth). Notas e referências bibliográficas foram todas remetidas para o final do artigo.
“Eg man jötna
ár um borna,
þá er forðum mig
fædda höfðu.” (1)
Voluspá, 2
O excerto da segunda estrofe do primeiro poema da Edda Poética – Voluspá – cita as palavras da vidente que ao longo de todo o texto relata em linhas gerais os principais acontecimentos da mitologia nórdica, desde os primórdios do Universo até ao fim do Mundo e o renascimento posterior do mesmo, numa narrativa escatológica que terá deixado marcas na imaginação de Tolkien. Diz a vidente recordar-se dos jötnar que em tempos idos lhe deram vida, eles que foram, segundo as fontes escritas que chegaram até nós, os primeiros habitantes do cosmos: o próprio ser primordial – Ymir – fora ele mesmo um jötun, até que os deuses o mataram e do seu corpo fizerem o mundo. Estes seres são muitas vezes referidos por nós como “gigantes”, frequentemente por analogia com a mitologia grega e levando, assim, a uma conclusão simples de inimizade deles para com os deuses.
Mas, na realidade, as denominações originais são muito mais complexas, na medida em que os dois termos mais usados – jötun e thurs – não só podem ter sentidos diferentes, como são também usados como sinónimos. E depois há um terceiro termo – troll – mais conhecido, embora muito menos frequente nos poemas eddicos, mas que assume por vezes características do thurs. Tem uma proeminência muito maior no folclore, onde chega a ser retratado como gigante em dimensão.
O mais proeminente destes termos será jötun, curiosamente o que menos interesse directo tem numa análise comparativa da mitologia de Tolkien. A palavra surge na denominação Jötunheim(ar), o mundo dos jötnar, e é igualmente usada para diversas personagens míticas: o ser primordial Ymir; o sobrevivente do dilúvio nórdico, causado pelo jorrar do sangue de Ymir aquando da sua morte; o ser com plumagem de águia que causa o vento; o pai da deusa Skadi, etc. É um termo relativamente neutro, não detendo necessariamente uma conotação pejorativa. De notar, aliás, que diversas divindades são, tanto quanto sabemos, jötnar: a já referida deusa Skadi, que foi aceite entre os de Asgard como forma de compensação pela morte do seu pai; a mulher do deus Frey; e o famoso Loki, demasiadas vezes retratado como um diabo nórdico.
Há ainda um caso particularmente explícito, o de uma personagem de nome Ægir, contada entre os Æsir (os deuses) na Edda do islandês Snorri Sturluson, mas referido na estrofe 3 do poema eddico Hymskvida como sendo um jötun e, na estrofe anterior, por meio da expressão bergbúi, que quer dizer um habitante das rochas. E se Snorri descreve Ægir de boas relações com os deuses, já a referida composição poética revela uma perspectiva distinta, uma vez que a personagem surge como sendo muito menos amistosa e desejando vingar-se dos Æsir pedindo-lhes que executem uma difícil missão. Por oposição, o guardião de Asgard, o deus Heimdall, nasceu e foi criado por nove mulheres jötnar, ou pelo menos assim o diz o poema Hyndlaljod na estrofe 36.
A visão negativa destes seres surge noutras passagens: Voluspá 50 fala da raiva deles nos acontecimentos no início de Ragnarök, a grande batalha que põe fim ao mundo; o deus Frey tinha uma espada mágica que lutava sozinha, uma arma que é referida na estrofe 8 do poema Skirnísmal como lutando contra os jötnar; e no poema gronelandês de Atli, estrofe 33, é usada a expressão de um jötun levar alguém caso essa pessoa esteja a mentir. Surge também em conjunto com o segunto termo em análise neste artigo, ao ponto de serem mesmo usados como sinónimos.
Thurs é dos termos menos conhecidos por frequentemente não sobreviver às traduções, sendo substituido por outros como gigante, ogre e troll (vá-se lá saber porquê!); e, no entanto, é o único que consta dos poemas rúnicos, como por exemplo no norueguês:
“(þurs) causa a doença das mulheres;
poucas estão contentes
ante a má sorte.” (2)
O islandês é mais elaborado, mas mantém a nota negativa:
“(þurs) é a doença das mulheres
e um habitante das ravinas
e marido de [a gigante?] Vardrun.” (3)
O sentido pejorativo é bem vincado em ambos os poemas e o mesmo sucede nas composições eddicas, numa longa sucessão de passagens. Uma em particular faz inclusive referência ao elemento rúnico acabado de citar: no poema Skirnísmal, o deus Frey apaixona-se pela jötun Gerd e pede ao seu amigo de infância, Skirnir, que vá a Jotunheim cortejá-la em seu nome; quando ele tenta convencê-la a casar com o deus por meio de presentes e ela recusa, Skirnir adopta uma atitude mais agressiva e profere uma enorme lista de ameaças de infelicidade, pobreza e infertilidade ao longo de diversas estrofes e, na número 36, o amigo de Frey ameaça talhar a runa þurs juntamente com três outros caractéres.
O mesmo poema é rico em referências aos thursar, o que não é de espantar tendo em conta a violência verbal de Skirnir: na estrofe 31 diz-se que Gerd unir-se-à a um thurs de três cabeças ou viverá sozinha, sem marido; na estrofe 35 é dito que um thurs de nome Hrimgrimnir (4) casará com Gerd.
A imagem com que se fica é a de que os seres com o nome em questão são portadores de infelicidade, sinónimo de ausência de abundância, força, vitalidade, daquilo que seria necessário a uma boa vida. Nesse sentido, é curioso verificar como no poema Volsupá aquilo que surge como uma Idade de Ouro nos primórdios do mundo termina precisamente com a vinda de três figuras femininas na estrofe 8, referidas como “þursa meyjar”, damas thursar.
Do mesmo modo, na segunda balada de Helgi Hundingsbana, na Edda Poética, dois adversários confrontam-se injuriando-se um ou ao outro e, a dada altura, um acusa o outro de ter sido castrado por três mulheres thursar (i.e., eliminação da masculinidade, logo da vitalidade, força).
Num outro poema, Baldrs Drauma, Odin busca respostas às muitas questões levantadas pelo sonho inquietante que o seu filho Baldr teve. Chamando uma vidente morta e apresentando-se como um homem de nome Vegtam, ele obriga-a a revelar-lhe informação oculta; no final, quando ela reconhece Odin, ele acusa-a de ser mãe de três thursar e deixa-a. Alguns viram nesta enigmática referência de maternidade uma alusão à prole de Loki que, após um episódio em que se transfigurou, inclusive sexualmente, engravidou e deu à luz três seres: o lobo Fenris, mais tarde preso pelos deuses até ao começo de Ragnarök; a Serpente do Mundo, que rodeia a Terra mordendo a sua própria cauda e forma, assim, um enorme anel, e que haverá de lutar com Thor na batalha final; Hel, a deusa da morte. Se o autor do poema estava de facto a referir-se a Loki podemos nunca saber ao certo, mas, a ser verdade, a carga pejorativa do thurs sai ainda mais reforçada. Não necessariamente relacionado com este ponto está a referência ao deus Thor como “þurs ráðbani”, isto é, o que conduz à morte do thurs (5). O antagonismo entre o mesmo deus e os “gigantes” é bem conhecido, e aqui isso ele surge-nos com referência a um termo original e não a tradução livre, opondo-se o Senhor do Trovão aos thursar.
É o mesmo deus quem no poema eddico Thrymskvida vai resgatar o seu martelo das mãos de um thurs de nome Thrym, apresentando-se, para tal efeito, diante dele disfarçado de Freya. Thrym é constantemente referido como “þursa dróttinn”, senhor dos thursar, mas, curiosamente, aqui este último termo confunde-se com jötun: logo na referência geográfica mitológica, uma vez que Thor e Loki dirigem-se para Jotunheim; depois, na estrofe 32, é dito como o deus primeiro matou Thrym e, depois dele, esmagou todos os jötnar em seu redor e, na estrofe seguinte, a irmã do ladrão do martelo é chamada de “jötna systr”, irmã do jötun. Os termos surgem, assim, como sinónimos, algo que se repete noutros poemas (Skirnísmal, Vafthrudnismál, etc.) (6).
O que interessa aqui reter é principalmente a natureza negativa do thurs, a sua carga pejorativa e relação com a ausência de tudo o que o homem antigo associaria a uma vida feliz. O elemento de habitante das rochas, já antes referido para o jötun Ægir surge também para os thursar em diversas ocasiões. Nas já citada estrode do poema rúnico islandês, por exemplo, mas também na balada de Helgi Hjorvarthsson, estrofe 26, onde um homem confronta uma mulher thurs de nome Hrímgerd e, por entre as muitas injúrias, ele diz que ela teria como bom companheiro um thurs ou jötun (os dois termos são usados) que é de todos os habitantes das rochas o pior; no mesmo poema, estrofe 32, o homem canta vitória, pois manteve Hrímgerd ocupada o suficiente para o sol nascer e transformá-la em pedra (lembram-se do Bilbo no Hobbit?). Esta mesma técnica é empregue por Thor no poema Alvíssmal num confronto de conhecimentos (7) com um ser que ele reconhece como sendo semelhante a um thurs; o deus entretém-no ao longo de 25 estrofes ao ponto de ele não se aperceber da vinda do sol e acabar transformado em pedra.
Por fim, os trolls! Encontrei apenas três referências em toda a Edda Poética. A primeira surge em Voluspá 40 onde é dito que da prole do lobo Fenris sairá um que irá devorar a lua em Ragnarök sob a forma de um troll. A associação com lobos não é única, uma vez que na balada de Helgi Hjorvarthsson uma personagem de nome Hedin encontra-se com uma mulher troll que é descrita como deslocando-se em cima de um lobo e tendo serpentes como rédeas; ela convida Hedin a vir com ela, mas ele recusa e, por isso, a troll lança-lhe uma maldição.
Por fim, na estrofe 155 do poema Hávamál, Odin declara saber um feitiço que, caso ele veja mulheres trolls a deslocarem-se pelo ar, fará com que elas não consigam regressar aos seus corpos e às suas mentes. A alusão aqui parece ser a bruxas, mulheres que conseguiam viajar até longe, abandonando o seu corpo e assumindo outras formas (8), algo que surge diversas vezes nas sagas islandesas, nomeadamente no que à prática de seid diz respeito. Não julgo provável ser este tipo de alusão a que se pretende em Voluspá 40.
Mais rico em referências a trolls é o folclore nórdico: as lendas e contos populares que falam deles são abundantes e o elemento rochoso é frequente. É esse o caso, por exemplo, de uma história recolhida na Islândia: dois homens que viajavam para sul encontram uma mulher troll que dirige a palavra a um deles, vaticinando-lhe infelicidades; o homem responde dizendo à troll para olhar para Este, no preciso momento em que surgiram os primeiros raios de sol, transformando-a em pedra. Por vezes são descritos como alimentando-se de carne humana, como numa pequena história recolhida na Noruega: um pescador encontrava-se no lago onde costumava apanhar peixe, até que ouviu duas vozes, uma de cada margem oposta, a discutirem como haviam de o cozinhar, ao que o pescador fugiu e nunca mais voltou a aquele lugar.
A mesma confusão de termos que se encontra nos poemas eddicos sucede também nas fontes mais populares, nomeadamente entre os atributos dos trolls e os de um outro ser de nome jøtul ou jutul (9). Num conto norueguês, é-nos dito como um homem que teve que ceifar um campo mais depressa que um jutul fez uso de um objecto mágico que lhe fora dado e que lhe deu uma vantagem sobre o seu adversário. São também lentos, como numa história também ela norueguesa em que um jøtul de uma determinada localidade gritou algo que foi respondido sete anos depois por outro jøtul de outro sítio.
De algo modo distinto de tudo isto é o efeito que a cristianização teve nas concepções populares. Parece que à medida que as crenças pré-cristãs perdiam terreno e iam sendo demonizadas, o termo troll tornou-se frequente para denominar algo exterior à prática e vida dentro do permitido pela ortodoxia cristã (e, como tal, impuro, demoníaco, bárbaro, mesmo animalesco). Já nos deparamos com um exemplo que pode muito bem ter reminiscências desse mentalidade, no feitiço de Odin em Hávamál 155: com efeito, a referência a mulheres dotadas ou que usam determinados poderes e que viajam em diversas formas como sendo trolls é consistente com, por exemplo, uma fórmula sueca supostamente usada para dar vida a um gato-troll, isto é, um gato criado por magia e com a ajuda de Satanás.
São também abundantes as lendas de oposição dos trolls à construção de igrejas. Num conto sueco, esse elemento junta-se ao de uma vingança, possivelmente por uma corte mal sucedida: um troll não aguenta com o sino de um local chamado Skrea e atira uma rocha, falhando o alvo. Então, ele deslocou-se para uma ilha onde aporta um marinheiro ao qual ele dá um colar para uma rapariga de Skrea, uma caixa para ser colocada no altar da igreja e outra com sementes que ele queria que fossem semeadas. Quando o marinheiro chega à localidade, desconfiado, ele atou o colar à volta de um carvalho e a árvore logo desapareceu; depois colocou a primeira caixa no topo de um colina e ela incendiou-se de imediato; por fim, lançou as sementes e delas cresceram cabeças de trolls. A aldeia juntou-se e cortaram-nas todas.
Muitos destes elementos não encontram necessariamente um equivalente directo na mitologia de Tolkien, mas, ainda assim, há outros que nos lembram certamente criaturas da Terra-Média: a transformação em pedra pelo contacto com a luz solar será o mais óbvio, assim como a associação com os locais rochosos. Recordemo-nos, ainda, da fraca inteligência dos trolls e de como isso permite aos heróis vencê-los não pela força, mas pela perspicácia. Depois muito há que, atrevo-me a dizê-lo, mesmo que não apareça directamente na obra mitológica do Professor, tem uma ressonância próxima: a imagem de um ser de uma força física bruta, o lobo que acompanha o troll e que surge por entre as sombras da floresta, o carácter antagónico em relação à vitalidade e abundância, etc. E mesmo que a relação não seja directamente identificável, certo é que nem sempre as influências do Professor o foram: ele mesmo diz na carta de 1951 a Milton Waldman que a batalha final da Primeira Idade deve mais à visão nórdica de Ragnarök do que a qualquer outra fonte, muito embora, e passo a citar, ”it is not much like it.” (10).
Notas:
(1) – “Volsupá”, Edda Poética (http://www.normanniireiks.org/lore/poetic/voluspa.php)
(2) – Ap. Stephen Pollington, Rudiments of Runelore, Anglo-Saxon Books, Inglaterra, 1995, p.52
(3) – Idem, p. 54.
(4) – A partícula Hrim- no nome deste thurs é característica, na medida em que surge na denominação Hrimthursar, os thurs do gelo, usada em diversos poemas eddicos. Tem o seu quê de apropriado na medida em que o frio gélido do norte seria uma das ameaças à vida próspera e feliz. A partícula surge também noutros nomes de jötnar e/ou thursar
(5) – A título de comparação, o termo “bani” tem o seu equivalente moderno inglês na palavra “bane”, diversas vezes usada por Tolkien no Senhor dos Anéis: o Anel é, por exemplo, “Isildur’s Bane” (Cfr. o sonho de Faramir e Boromir), na medida em que foi o mesmo objecto o que levou à morte do filho de Elendil.
(6) – Uma possível origem para a confusão poderá estar na eventual data tardia do poema, uma vez que os autor seria cristão e, como tal, não teriam noções precisas do que era o quê na cosmologia pré-cristã; por outro lado, as crenças pagãs eram naturalmente diversas e nunca se uniformizaram, pelo que a confusão poderá ser anterior ao advento do cristianismo.
(7) – Tais confrontos em que dois adversários se questionam sobre determinados assuntos (por exemplo, a origem do sol, o nome de determinados rios mitológicos, etc.) lembra o confronto entre Bilbo e Gollum, inclusive no que a uma pergunta sem resposta directamente conhecida diz respeito.
(8) – Trata-se de práticas em muito semelhante às xamânicas: o xamâ desliga-se do corpo e o seu espírito ou parte dele viaja para longe ou para outro mundo de modo a executar um pedido ou uma missão.
(9) – Repare-se na semelhança com o termo jötun. Esta diluição de termos e uso para seres menores não é estranha ao advento do cristianismo e à sua imposição.
(10) – Cfr. J.R.R. Tolkien, The Silmarillion, “From a Letter by J.R.R. Tolkien to Milton Waldman, 1951”, HarperCollins Publishers, 1999, p. xvii.
Bibliografia:
– Poetic Edda (http://www.normanniireiks.org/lore/poetic/voluspa.php)
– Poetic Edda, trad. Carolyne Larrington, Oxford University Press, 1996
– Scandinavian Folkt Belief and Legend, ed. Reimund Kvidland e Henning K. Sehmsdorf, University of Minnesota Press, 1988
– Pollington, Stephen, Rudiments of Runelore, Anglo-Saxon Books, Inglaterra, 1995
– Simek, Rudolf, Dictionary of Northern Mythology, trad. Angela Hall, D. S. Brewer, Cambridge, 1993
– Sturluson, Snorri, Edda, trad. Anthony Faulkes, Everyman, Gãr-Bretanha, 1987
– Tolkien, J.R.R., The Lord of The Rings, HarperCollins Publishers, Londres, 1995
– Idem, The Silmarillion, HarperCollins Publishers, Londres, 1999
– Zoëga, A Concise Dictionary of Old Icelandic
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