Escuridão – Capítulo 2

Capítulo 1

Autora: Monica Ferreira

O local era iluminado por tochas, mas o fogo emitia uma luz tão fria, que mais escurecia do que iluminava. O trono era feito de ouro e prata, no topo de uma escada de cinco degraus. Não havia janelas nem móveis. Hades estava sentando em seu trono, atendendo uma alma que lhe relatava seus feitos em vida. Ao ver os dois deuses, pediu-a para que se retirasse.

– Hermes! – Saudou o deus dos mortos, levantando-se. – Aproxime-se! O que tem para mim hoje?

– Hades, senhor dos mortos, venho a mando de Zeus, senhor do Olimpo, entregar esta nefasta criatura a seus cuidados.

O deus, de barbas negras e expressão melancólica, lançou um olhar confuso para a moça e desceu as escadas ao encontro deles, apoiando o tridente bifurcado no trono real. Observou-os por um longo momento e um silêncio ameaçador pairava sobre todos ali.

– Nêmesis. – Disse, olhando para a deusa. – Há muito não nos víamos. Agradeço pelos súditos que me oferece. Espero que não esteja aqui para suplicar pela alma de alguém que morreu antes da hora. Vou ficar muito chateado.

A moça, cabisbaixa, apenas sorriu e esperou que Hermes despejasse sua ladainha.

– Senhor, eu trouxe esta deusa para que seja levada ao Tártaro, devido a um crime que cometeu. Deverá ficar muitos dias, para que se arrependa e depois volte ao Olimpo. Ordens expressas por Têmis, a deusa da justiça, e Zeus, o rei dos deuses.

– Mas… Por que essa sentença tão dura? O que ela fez de errado?

– Ela cometeu a maior de todas as afrontas contra o soberano do Olimpo! Cortou a cabeça de Zeus enquanto dormia! Como se não bastasse, ainda escondeu-o numa caverna. Imagine o desespero de Hera ao ver seu marido decapitado! Tivemos que recorrer ao oráculo de Delfos para descobrir onde estava e quem foi a autora do disparate.

O deus dos mortos não pôde deixar de esconder um sorriso de troça ao ver a pompa com que Hermes relatava o ocorrido. Mas se recompôs rapidamente, ao olhar incrédulo para a deusa.

– Você fez isso? – Perguntou a ela. – Mas por quê?

– Por maldade pura e simples!

– Deixemos que a moça fale, Hermes. Tenha a palavra, Nêmesis.

A moça fixou seu olhar no deus dos mortos, contemplando cada feição de seu rosto divino. Lembrava muito o monarca olímpico, mas o semblante era mais complacente. E num tom calmo e firme, contou a sua história.

– Zeus me violentou. Há muito ele me cortejava, mas sempre o ignorei. Até que um dia, ele escapou da vista de Hera e conseguiu o que queria. Eu estava no Olimpo, andando pelos corredores do palácio, quando ele me agarrou. Tentei escapar, mas sua força era muito maior que a minha.

“Deixei que passassem os dias, até que todos esquecessem. E então, no dia marcado, esperei o casal se recolher em seus aposentos e me escondi. Coloquei um pano em sua boca para abafar o grito e, num único golpe, separei a cabeça de seu corpo. Voei para o mais longe que pude, sem me importar com os gritos de Hera ou de qualquer outro deus que descobrisse. Escondi a cabeça na gruta de uma montanha.”

“Senti-me plena, satisfeita, mesmo sabendo do que viria depois. E então, em um julgamento feito às pressas, Zeus fez com que Têmis decretasse uma sentença contra mim. Os deuses que estavam presentes concordaram, temendo sua fúria. É por isso que estou aqui.”

Hades olhou atônito para a divindade à sua frente. Sentiu um frio percorrer sua espinha, mas manteve a compostura. Sabia que ela era terrível, ouvia histórias sobre suas vinganças, mas o que seu irmão fez, era muito pior! Por um breve momento, sentiu pena da jovem, mas não deixou que transparecesse. Desviou o olhar para Hermes, e perguntou a ele se o que ouvira sobre a violação era verdade.

– Sim, é verdade. Zeus a confessou. Mas isso não justifica tal ato de loucura! Ela humilhou o meu pai, seu irmão! Merece ser punida. E como ficará presa, as Erínias deverão ficar em seu lugar como deusas da vingança, para manter o equilíbrio e a justiça entre os deuses. Elas nos interceptaram quando chegamos e…

– Hermes, – Interrompeu o deus – pode nos deixar a sós? Quero conversar com ela.

– Mas, Hades, preciso que profira a sentença para que eu…

– Por favor, rapaz. É só por alguns instantes.

O deus mensageiro retirou-se depressa, fazendo o ruído das asas de suas sandálias ecoarem pelo salão. Nêmesis tornou a baixar a cabeça, olhando o mármore que revestia o chão. Não conseguia mais encarar a divindade a sua frente, como se o rapaz tivesse levado sua coragem.

Aproximou-se da moça. As mãos apoiadas nas costas, contrastando com as da deusa, entrelaçadas na altura do ventre. Observou-a mais uma vez, de cima abaixo: era bonita, como há muito não se via. A pele alva, os olhos azuis, os cabelos negros enrolados em um coque malfeito, caindo para o lado direito. Usava uma toga preta, de alças típicas ligadas por broches dourados.

Sentiu-se atraído por ela. Estava a tantos anos sozinho… Era como uma dádiva, um presente de Zeus para ele. Estranhou não haver asas em suas costas.

– Desculpe-me, mas…A deusa da vingança não era alada? – Perguntou.

A jovem, em resposta, fez aparecer as suas asas, presas por dois grilhões de ferro.

– Eu as uso apenas quando vou executar meus castigos, ir e vir ao Olimpo e Ramnunte. Para andar, faço-as desaparecer. Na condição em que estão, elas me atrapalhariam. E apenas o sei irmão pode remover essas correntes.

– Diga-me: quer mesmo ir para o Tártaro?

– Se essa é a minha condenação, não vejo porque não cumpri-la.

– Lá é um lugar horrível, cheio de monstros… Os Titãs estão presos e também os Hecatônquiros! Além, é claro, das almas castigadas pelas Erínias. Quer mesmo conviver com eles?

– Hades, tudo que quero é que meu destino se cumpra. Sou a deusa da vingança, sei inferir castigos aos soberbos e reduzo os gananciosos à miséria. Sei o preço que cada um deve pagar por seus atos. O que Zeus fez comigo foi uma afronta a mim e eu apenas me vinguei. Como vingança, ele também me puniu. Foi algo cíclico. Não deixo ninguém impune, nem mesmo o pai dos deuses. E não tenho medo do que possa habitar o Tártaro.

– Admiro sua coragem. – Declarou. – Nunca imaginei que a vingativa Nêmesis, filha de Nix, irmã das Erínias, de Hipnos e Tânatos fosse uma deusa tão destemida. Bom, está decidido. Será a minha conselheira. Vai me auxiliar a julgar os mortos. O que acha?

Houve um silêncio aterrador. A deusa olhou-o atônita, como se tivesse dito a sua punição, aquela a que estava esperando.

– O-o que?! – Hesitou, gaguejante.

– Um talento como o seu não pode ser desperdiçado. Seu senso de justiça é implacável, inexorável! O que fez com o meu irmão foi uma prova disso. Suas sentenças serão até mais honestas do que as minhas.

– Não, Hades! Por favor! Não quero causar um conflito entre vocês. Mande-me para o Tártaro e tudo estará resolvido.

– Zeus lhe mandou para que esteja sob o meu domínio, não é? Pois então, seja agraciada com esta oportunidade. Não se preocupe, será por pouco tempo. Logo poderá voltar ao seu trabalho.

Assim que terminou de falar, o deus mensageiro apareceu já bem impaciente.

– Sabe que não posso ficar aqui por muito tempo. O que decidiu?

– Decidi que darei uma chance a Nêmesis. Ela viverá comigo aqui, julgando as almas dos mortos. Eu a deixarei sob minha vigilância.

– Zeus não permitirá isso. Ela tem que ir ao Tártaro.

– Hermes, quem rege o mundo dos mortos sou eu. Conheço cada pedaço deste lugar, suas planícies, rios, do mais profundo abismo até os sublimes Campos Elísios. Sei o que devo fazer com cada um que entra em meu reino. Deixe-a comigo.

O rapaz não teve outra escolha senão acatar a ordem do regente e ir embora. O deus dos mortos voltou-se para a moça e deu-lhe as boas vindas.

– Espero que goste do seu novo lar, mesmo que provisório. Vou providenciar algo para comer. Está com fome?

– Hermes disse que não posso tocar em nada daqui.

– Ele está certo. Bom, essas leis foram promulgadas por mim desde o início de meu reinado, para evitar que os vivos invadam o lugar e busquem seus parentes mortos. Mas elas não estão talhadas em pedra. Além do mais, será ótimo tê-la como companhia. Conversar sobre coisas que não sejam mórbidas será muito prazeroso.

O sorriso pálido da moça foi o sinal para selar a conversa. Uma ponta de desconfiança começara a aparecer e ideias obscuras já infestavam sua mente. Porém manteve-se solícita e aceitou a decisão do soberano.

Capítulo 3