Capítulo 3
Autora: Monica Ferreira
Os dois voltaram silenciosos do Tártaro, pois não tinham mais ânimo de continuar o passeio. O céu estava plenamente escuro, como uma noite tempestuosa. Nêmesis tentava disfarçar seu cansaço espreguiçando-se ou esfregando os olhos, mas era em vão. Seus pés queimavam dentro das sandálias.
– Estou exausta. Não estou acostumada a andar tanto.
– Deve ser doloroso não poder usar suas asas.
– Sim, é. Mas é só uma questão de hábito. Será ótimo redescobrir o prazer de caminhar.
– E quanto a sua espada, suas armas?
– Tive que deixá-la no Olimpo, em poder de Têmis.
– Não acho justo o que ela fez. Como permitiu que isso acontecesse? Que você fosse condenada e meu irmão saísse ileso? Cada vez mais tenho a impressão de que a partilha da terra não fora honesta.
– Ora, ela apenas agiu de acordo com a sua função. Não esperava menos do que o Tártaro.
– Bom, esqueça o que passou. Agora pense no que se tornará durante os dias em que passará no submundo. Mas saiba que já estive pensando em selecionar algumas almas para me ajudar a sentenciar os mortos. Mas como ainda não me apareceu ninguém confiável, vou precisar de sua ajuda.
– Agradeço mais uma vez o seu convite. – E olhou para o céu escuro. – E este céu tão diferente? De onde vem?
– Os dias e as noites aqui são as mesmas da superfície. O tom avermelhado vem do rio Flegetonte, que corre ao norte, por uma cratera. Ele corta o Tártaro e deságua no Aqueronte. Aquela cascata de lava que você encontrou na entrada não está lá por acaso. Ela serve para impedir as almas de tentarem fugir. A outra cascata, do Cocitos, também está impedindo a passagem.
– Incrível. Que grande estratégia! Foi você quem mudou o curso dos rios?
– Não, eu já os encontrei assim. Eu apenas mandei construir a entrada, o palácio, o pomar… Os Campos Elísios e o Tártaro já existem desde antes de eu reinar. Eu sou um regente destes lugares, mas não interfiro em seus relevos. Os cinco rios que cortam o submundo nada mais são do que as emoções humanas que os mortos, ao tentar atravessá-los, levam em suas correntes. Aqueronte é o rio da dor; Flegetonte, o rio do fogo; Cocitos, o rio das lamentações; Estige, o rio do ódio e Lete, o rio do esquecimento. São lembranças de tempos que eles nunca mais voltarão a sentir.
Nêmesis lançou-lhe um olhar piedoso, e viu nele um homem bom. Suas desconfianças haviam desaparecido, e mostrou-se realmente grata pela oportunidade de ter se livrado daquelas trevas. Era irmão de Zeus e Poseidon, mas era tão diferente deles!
Apesar da aparência tristonha, Hades tinha um rosto jovem, escondido pela barba espessa e curta. Seus cabelos, de cachos grossos que vinham até os ombros, também eram pretos, assim como seus trajes, bordados com pedras preciosas nos punhos e na gola de seu manto. Tinha sobrancelhas grossas e olhos verdes.
Caminharam em silêncio novamente até chegar às escadarias.
– Aproveite bem sua estadia aqui. Espero que lhe sirva de experiência para quando voltar. – Comentou o deus, sorrindo.
– Sem dúvidas. Será uma experiência incrível.
***
O céu estava de um vermelho sangue, indicando uma manhã ensolarada na superfície, e sua luminosidade refletia nos lençóis brancos da cama de Nêmesis. A deusa espreguiçou-se e levantou devagar, e sorriu ao ver que não ficara grudada na cama, como Hermes havia advertido. Olhou-se no espelho e viu que o olhar de cansaço desaparecera.
Um vestido de cor púrpura estava cuidadosamente dobrado em cima do aparador, aos pés do leito. Era uma linda túnica, de modelo parecido com seu próprio vestido negro. Sentiu o tecido macio e o pôs em sua frente, medindo o tamanho. Dobrou-o novamente e foi se lavar.
Com os cabelos soltos e um ar mais saudável, rumou para uma sala, onde estava posta a mesa de frutas, sucos e leite.
– Bom dia, Nêmesis. – Cumprimentou o deus, apoiado em seu divã e comendo algumas uvas. – Dormiu bem?
– Sim, nunca dormi tão bem em toda a minha vida. E o vestido é lindo, obrigada. Onde conseguiu?
– Digamos que tenho meus contatos lá no Olimpo.
– Não me diga que Hermes…
– Oh, não! Não estou falando dele. Imagine ele me trazendo uma roupa de mulher e sabendo que é para você! Não aceitaria nunca!
– É verdade. Seria engraçado!
– Mas ficou muito bem em você. É uma deusa muito bonita. Espero que não seja uma ofensa.
– Claro que não. É até melhor que me achem bonita e, por consequência, inofensiva. Pois quando menos esperam, aplico a minha punição.
– Como uma verdadeira deusa da vingança.
– Prefiro retribuição. Ou equilíbrio, se quiser.
Tomaram o desjejum e depois se dirigiram a sala do trono, onde Hermes já os esperava com a alma de um combatente.
– Olá, Hades. Olá, nova juíza do mundo dos mortos. – Cumprimentou irônico, e em troca, recebeu um sorriso da moça. – Venho lhe trazer a primeira alma do dia. Agora, se me dão licença, trarei mais.
– Hermes, por favor, fique. – Chamou o regente, indo direto ao assunto. – Quero saber o que Zeus achou da minha decisão.
– Ele tratou com indiferença. Não sei o que planeja.
– Ótimo. Espero que seja um bom sinal. Viu Nêmesis? Pode ficar tranquila.
O mensageiro divino olhou com desprezo para ambos e partiu, deixando a moça respirar aliviada. Não era exatamente um perdão o que ouvira, mas já conseguia sentir-se liberta da condenação.
O dia passou sem muitos julgamentos, e no final da tarde, ambos saíram em passeio para um local mais afastado do palácio, um bosque cortado pelo rio Estige.
– Sobre aquilo que Hermes disse sobre as Erínias, não acha melhor avisá-las? – Relembrou a jovem.
– Não creio que Hermes tenha dito a verdade. Mas isso cabe a você decidir. Acha que precisa de substitutas?
– Não custa tentar. Pode ter sido uma ordem vinda de Zeus que ele manteve em segredo. Quanto menos problemas eu tiver com ele, melhor.
– Bem, de fato, elas estão ociosas ultimamente. Vou convocá-las. A montanha delas fica aqui perto, vamos.
O deus apressou o passo, deixando a moça para trás. Saíram do bosque e rumaram em direção a um denso nevoeiro, cuja brancura contrastava com a escuridão habitual. Nêmesis visualizou o vulto de Hades parado diante de uma encosta de montanha. Ouviu-o gritar apenas uma vez o nome de cada uma delas e, como um raio, as três saltaram e pousaram diante do regente.
Era estranho vê-las junto a ele, pois eram mais altas do que o governante, um pouco devido aos seus cabelos revoltosos. As cobras peçonhentas, enroladas em seus braços e cinturas, mantiveram-se imóveis, com suas línguas dentro da boca.
– Erínias, chamei-as aqui para esclarecer sobre o motivo pelo qual a irmã de vocês está em nosso mundo. E tenho uma proposta.
As moças se entreolharam, o ar de interrogação misturado com malícia pairava sobre seus semblantes monstruosos. A deusa da vingança se aproximava lentamente, parando ao lado de seu benfeitor. O deus dos mortos continuou:
– Nêmesis foi convidada a me auxiliar na tomada de decisões sobre as sentenças aplicadas aos mortos. Ela aceitou e está aqui. Porém, como o seu cargo sobre a terra ficou vago, gostaria de saber se as três aqui presentes poderiam ocupar o seu lugar. Será por um breve período de tempo. Então, o que acham?
Novamente a troca de olhares entre elas e como resposta, uma gargalhada estridente.
– Acha que vamos acreditar nesta história?! – Berrou Alecto, chamada de “a inominável”. – Terão que ser mais criativos do que isso! Sabemos muito bem o que aconteceu, bela e inevitável Nêmesis…
– Respondam a minha pergunta, Erínias! – Esbravejou Hades, a imponência irredutível que fizeram as criaturas recuarem. – Aceitam ou não?
Sem hesitar, Tisífone tomou a palavra e falou por todas:
– Não queremos o raio de Zeus atingindo nossas cabeças. Deixe tudo como está.
E sumiram, assim como chegaram. O casal se entreolhou, desapontado e voltaram pelo mesmo caminho.
Capítulo 5