Capítulo 7
Autora: Monica Ferreira
A moça vestia uma túnica preta, de mangas longas e ombros à mostra, bordada com pequenos brilhantes. Hades vestia seu tradicional manto escuro e sob este, uma túnica negra. Os cabelos revoltosos de ambos brigavam com a gélida ventania que vinha do norte, mas nenhum deles se importava. Ora beijavam-se, ora corriam para sentir o ar em seus pulmões e o sangue pulsar em suas veias.
O tempo fechara-se completamente, com grossas nuvens cobrindo o sol que já não mais aparecia. A chuva não demorou em cair, mas ambos sequer se preocupavam em procurar abrigo. Nêmesis estava radiante e corria pelos campos como se fosse um dia quente de verão, sem se importar com as roupas encharcadas ou sandálias enlameadas.
– Nunca pensei que poderia sentir tanta falta da chuva… – Comentou, aproximando-se do esposo, extasiado por vê-la assim, tão feliz. Os cabelos grudados em volta do rosto, delicadamente retirados por Hades, tornavam a sua visão ainda mais encantadora.
– Você é tão linda… – Sussurrou o deus, sendo recompensado com um beijo.
A chuva caía solta pelo campo e o casal ria alegremente, como se só existissem os dois naquela terra. Conversavam frivolidades, brincavam entre si, corriam. O passeio, porém, não terminaria ali. Um relâmpago ribombou perto deles, seguido por um raio e um homem de barbas grisalhas apareceu diante de seus olhos. A expressão severa e o porte imponente não restavam dúvidas sobre quem estava ali: Zeus, o rei do dos deuses, senhor das tempestades. Uma aura dourada reluzia em volta do deus o impedia de molhar-se na própria chuva.
Houve um silêncio aterrador. Apenas o ruído da água caindo sobre a relva era o que se ouvia. Nêmesis ficou paralisada ao lado do soberano, olhando para o seu algoz com uma expressão séria e na defensiva.
– Pelo visto, sua estadia no mundo dos mortos não foi como eu pensava, não é? – Comentou o regente do Olimpo, ao olhar as divindades à sua frente. – Na verdade, eu vim fazer justamente o contrário do que eu fiz. Eu vim libertá-la.
A moça fitou-o incrédula, acompanhada por um Hades perplexo. Era o seu irmão ali, mas não conseguia prever seus pensamentos ou suas ações, o que o deixava completamente temeroso sobre o que fazer.
– Nêmesis… – Chamou Zeus, aproximando-se da deusa. – Eu, o senhor de todo o Olimpo, venho humildemente lhe pedir perdão. Perdão pelos meus impulsos, em como fui um tolo por deixar-me levar pela sua beleza e causar todo o mal que resultou em sua vingança e em minha punição. Sei que minha ordem que levá-la ao Tártaro não foi cumprida, mas isso não me interessa mais. Venho também lhe conceder novamente a liberdade. Poderá retornar à Ramnunte ou ao Olimpo, no comando de suas funções.
Imediatamente, a deusa sentiu os grilhões que prendiam suas asas abrirem-se num estalo, o que fez com que elas se mostrassem como são. Hades estava apreensivo, pois sabia que poderia perdê-la, caso aceitasse ir embora. Zeus mostrava-se realmente arrependido pelo que fizera. Seus olhos claros não negavam sua sinceridade, mas era inevitável uma desconfiança da parte de ambos.
– Agora poderá voltar a ser a deusa da vingança que os humanos tanto precisam. O mundo tornou-se injusto sem as suas sentenças. Tiqué, a deusa da fortuna, espalhou a sua sorte por toda a Hélade, tornando os mortais mais venturosos e egoístas. É necessário que volte e desfaça o que ela fez.
– Zeus, meu irmão… – Interrompeu o deus dos mortos, opondo-se entre os dois. – Vejo em seus olhos que diz a verdade sobre seus sentimentos, mas agora, Nêmesis tornou-se minha esposa e rainha do mundo dos mortos. Ela me auxilia nos julgamentos e suas sentenças são as mais corretas possíveis. Não poderá tomar uma decisão tão importante como essa agora. Por que não dê um tempo à moça?
– Hades… – Sussurrou o olímpico, ao perceber a presença do irmão. – Sei que estou em falta. Há tempos lhe prometi uma esposa e não dei nenhuma resposta. No entanto, ao ver a bela divindade em seus domínios, interessou-se por ela. Não o culpo por sentir-se atraído pela sua beleza. Mas a deusa da vingança não é a esposa destinada e você. Sinto muito, mas terá que se separar dela.
– O que?! Como ousa?! – Esbravejou o deus do submundo, ao ouvir tamanha afronta.
– Querido irmão, escute. Nêmesis é uma divindade olímpica. Sua vida se resume a aplicar juízo sobre os mortais e dar-lhes o que merece como consequência de seus atos. Não é à toa que é denominada “A inevitável” por ter sua sina ligada a dos humanos. Ela não pode viver no mundo dos mortos para sempre! Onde estará o equilíbrio da conduta humana sem Nêmesis a vingar e Tiqué a abençoar? Sei que cometi um grande erro punindo-a e levando-a até você, mas agora estou arrependido e quero o quanto antes reparar o meu erro. E isso inclui também a minha promessa. Confie em mim, por favor. Eu conversei com minha filha Perséfone e creio que ela lhe será uma boa esposa.
O deus dos mortos estava indignado com tamanha petulância. Como Zeus adorava brincar com os sentimentos dos outros! Sim, pois, para ele, essa história de lhe arranjar uma esposa já se tornou ridícula. E Nêmesis, então? Ou melhor, e as ninfas e mortais por quem ele se apaixona e ataca sem piedade, como fizera com a deusa? Não sentia mais orgulho pelo seu ato de nobreza em vê-lo arrependido, mas, sim, nojo e revolta.
A deusa continuava a manter-se em silêncio, processando com calma tudo que o governante olímpico lhe contara, mas não deixava de se sentir incomodada com o ser à sua frente.
– Zeus… – Suspirou, a voz quase inaudível, abafada pelo som da chuva. – Eu… Eu agradeço por ter vindo até aqui lhe pedir perdão por tudo. É muita gentileza de sua parte. Mas… Assim como Hades lhe falou, eu não posso dar uma resposta agora sobre voltar ao Olimpo. Agora sou esposa do deus dos mortos, julgo almas e auxilio na tomada de decisões.
O rei dos deuses encarou-os com desdém, deu de ombros e concluiu:
– Muito bem, faça como quiser. Mas não deixe que o destino arruíne sua felicidade. Sabe que não pode desafiar as Moiras, não sabe? Bom, os portões do Olimpo estarão sempre abertos a você. Ah, quase ia me esquecendo. A sua espada está comigo.
E de seu cinto fez aparecer uma espada reluzente de punho dourado e lâmina brilhante. Entregou-a como em uma cerimônia, repousada em suas mãos. A jovem pegou-a ainda atônita e alisou o fio de corte.
– Eu mandei afiá-la. Espero um bom uso quando voltar.
O deus, ao concluir suas sentenças, deu-lhes as costas e sumiu num piscar de olhos, sob uma faísca de relâmpago e o som de um trovão.
Capítulo 9
Li o texto com The Sound of Silence tocando na minha cabeça