Podcast: Play in new window | Download (Duration: 1:13:07 — 100.6MB) | Embed
Assine: Apple Podcasts | Android | Email | RSS
Nesse episódio do Papo Lendário, Leonardo Mitocôndria, Nilda Alcarinquë e o convidado Orlando conversam sobre a relação de comida com as religiões de origem africana.
Entenda a importancia da comida para as religiões.
Reflita junto ao nosso convidado se realmente essas práticas de matriz africana podem ser consideradas religiões ou não.
Ouça sobre algumas comidas bem importantes para as religiões de matriz africana.
– Esse episódio possui transcrição, veja mais abaixo.
LINKS:
— APOIE o Mitografias —
— Transcrição realizada por Amanda Barreiro (@manda_barreiro) —
[00:00:00]
[Vinheta de abertura]: Você está ouvindo Papo Lendário, o podcast de mitologias do projeto Mitografias. Quer conhecer sobre mitos, lendas, folclore e muito mais? Acesse: mitografias.com.br.
[Trilha sonora]
Leonardo: Muito bem, ouvintes. Vocês estão com fome? Se não estão, irão ficar, pois o tema de hoje é comida. E hoje estou aqui com a Nilda, a autora dessa pauta do episódio de hoje, e com o convidado, o Orlando. Então, Orlando, seja bem-vindo, pode se apresentar aí e já dizer como que as pessoas te encontram na internet. Fica à vontade aí para dar o oi.
Orlando: Boa noite para quem é de boa noite. Bom dia para quem é de bom dia, gente. Eu sou o Orlando, o @anorcofino do Twitter, ogã, antropólogo e também podcaster, eu sou o host, apresento o Benzina ao lado da Stephanie Borges. E é isso, quem quiser me encontrar, vai lá no Twitter, @anarcofino, ou escuta o Benzina. Só procurar nos melhores agregadores de podcast, Spotify, Deezer, essas coisas.
Leonardo: Maravilha, a gente já trouxe aí alguém com gabarito na questão e antropólogo e questão também de vivência. Como vocês viram aí pelo título, pela imagem do post e tudo mais, a gente vai falar de comidas e a relação que isso tem com religiões, mas isso é um tema amplo, porque comida está voltada para a humanidade inteira a todo tempo. Então vai ter muita relação de comidas, de alimentação, com praticamente toda religião que se tem aí e que já se teve. Então não dá para a gente falar de tudo, mas a gente vai apresentar o tema e vamos focar nas afro-brasileiras. É o que o nosso convidado tem de vivência também e é bem interessante, a gente sempre gosta aí de ir para esse assunto aqui no Papo Lendário.
Nilda: Vou dizer que essa pauta, eu comecei justamente por causa do Orlando às vezes falando no Twitter sobre alguns desrespeitos em relação, ou respeitos em relação ao acarajé e outros costumes da umbanda e até do candomblé, e eu fui procurar um pouco isso, porque, conversando com amigos também, eu fui percebendo que a gente foi perdendo muito a ligação que a gente tem com o alimento. O alimento está virando uma coisa, sei lá, banalizada, uma coisa só de nutrição. Está se perdendo o hábito de comer pelo gosto de comer, e não é gula, não estou falando de você se entupir de comida, mas você sentar e comer uma comida bem-feita. Levando aqui para o lado do Mitografias, também há a ligação divina que a gente tem com o alimento, porque todos os povos sempre tiveram alguma forma de ligar o alimento a alguma divindade, a algum deus – dentro do cristianismo, às vezes até a algum santo ou alguma coisa assim. Então você tem essa ligação, porque a humanidade acaba agradecendo. Você tem muitos relatos dos povos fazendo os seus agradecimentos aos deuses por terem conseguido aquele alimento. Ou agradecem ao deus ou agradecem ao próprio alimento, porque tem povos que, depois de matar um animal ou alguma coisa, fazem algum ritual de purificação ou de agradecimento para aquele animal.
Orlando: Se a gente for parar para pensar na história da humanidade, essas regressões que a gente vai fazendo, qual sempre foi a primeira necessidade da existência da vida? A garantia de alimento. Isso é universal de todos os seres vivos. E aí tem um momento em que você tem… os primeiros homo sapiens começam a produzir o seu (imaginário) [00:04:23] simbólico, é justamente sobre a produção de alimento que vai se depositar essa imaginação simbólica, ou seja, é necessário dar algum sentido àquele processo alimentício. Ele não pode ser cognitivado apenas como algo que você está colocando para dentro, porque justamente uma coisa que nos separa dos seres inanimados ou dos não humanos, tipo, sei lá, uma bactéria ou coisa do tipo, é justamente essa produção de sentido sobre os atos. Você não pode ser um autômato. Então isso desde que… basicamente, dar sentido à comida é basicamente o que define a humanidade, é um desses critérios que definem o que ser humano: é dar sentido à comida. Inclusive, se a gente fosse puxar para um lado político, a gente poderia dizer que a não vida, a emergência da não vida, digamos, dessas experiências opressivas, é justamente quando você para de dar sentido à alimentação e a transforma em um mero ato de consumir nutrientes, por exemplo, dando farinhas, aqueles suplementos alimentares para as pessoas de baixa renda, coisa do tipo.
Leonardo: E inclusive eu tinha falado isso antes de começar o episódio, em off, mas aqui em São Paulo a gente teve um episódio disso, que foi dada ração, queriam… acho que não foi para frente isso aí, mas queriam dar ração para a população… eu não lembro agora se era de baixa renda, o pessoal mais de baixo, ou eram pessoas de rua. Eu não lembro certinho, mas estava isso de dar ração. E eu achei interessante quando eu vi nutricionistas falando que comida é mais do que apenas os nutrientes, apenas matar a fome. Vai muito além disso. E eu achei interessante ver nutricionistas, não só quem seria antropólogo ou algo assim, que já estudaria mais conceitos diferentes além de só o alimento. Eu achei interessante isso, os próprios nutricionistas mostrando que aquilo lá estava errado, porque aquilo lá não iria realmente alimentar, já que alimentação vai além disso.
Orlando: Só para dar um exemplo disso: vocês comeriam cachorro? Sabe? Vocês comeriam outro ser humano? Porque, de uma perspectiva puramente nutritiva, nutricional, não faz muita diferença o que você está comendo. Não faz diferença se você está comendo humano ou cachorro, mas a gente… sei lá, você julga um canibal moralmente. Imagino que, para todos aqui, matar outro ser humano para comer é considerado moralmente errado, e a gente julgaria essa pessoa por isso, a gente classificaria essa pessoa: “Esse aqui é um canibal”. Então só esse ato moral de classificar as pessoas, os seres, a partir daquilo que eles consomem, e classificar “Isso aqui é o tipo de comida que uma pessoa, que um ser moral deve comer”, só isso já é um ato simbólico importantíssimo, só isso já é produtor de sentido no mundo, sabe? A gente não come qualquer coisa. Além disso, a gente não só não come qualquer coisa, como a gente não come de qualquer jeito, vide, por exemplo, a quantidade de etiquetas, enfim, de distinções que são operadas por meio da forma como nós nos alimentamos. Então todo esse aparato simbólico que a gente reduz a uma mera etiqueta, meros aspectos, digamos, morais, existências, tipo, em populações que não têm neurose normativa como a nossa, de separar as esferas da vida – isso aqui é religião, isso aqui é economia, isso aqui é vida familiar -, isso emerge, ganha um caráter que a gente, na nossa falta de imaginação conceitual, vai classificar como religioso, mítico, enfim, mas que, da perspectiva dessas populações, é apenas a vida delas.
Nilda: Quando eu estava estudando sobre os povos da Indonésia, um dos seres que eles levavam para povoar de ilha em ilha era cachorro e havia distinção de que as mulheres não comeriam carne de porco e os homens não comeriam carne de cachorro, e a carne de cachorro era alimento normal. Aí você pensa que para a gente é uma coisa extremamente estranha atualmente, mas eu não vou dizer que não tenha sido em alguma época totalmente normal. Aliás, a gente tem também esse estigma, por exemplo, em cima de coreanos: “Eles comem carne de cachorro”, como se… quando você pega a história daquele povo, não haveria motivo para eles não comerem.
Orlando: É, porque quando a gente para e pensa nisso, a gente vê como, por exemplo, a própria definição de humano para a gente, da nossa perspectiva, passa por um critério alimentar. Então você vê, por exemplo, as discussões sobre veganismo, sobretudo aquelas mais moralistas, como elas vão rapidamente se converter em uma discussão sobre o direito das pessoas de consumir estes ou aqueles animais e como vão, muitas vezes, acusar aqueles que consomem animais de não serem pessoas moralmente superiores. Já que a gente está falando de alimentações, é bom lembrar um episódio recente, onde algumas, digamos, celebridades que militam em prol dos direitos dos animais, que, só deixando registrado, é uma luta pela qual eu também me engajo, mas que rapidamente converte-se em uma máquina racista, moral, na discussão sobre a imolação animal evocaram imagens de cachorrinhos, justamente para trazer todo esse sentimento de simpatia e convertê-lo rapidamente em uma antipatia para com essas religiões, como se essas religiões consumissem cachorros, consumissem cachorrinhos em seus rituais.
[Trilha sonora]
Nilda: Vamos falar hoje preferencialmente de comidas da umbanda e do candomblé, mas só para lembrar que desde antigamente você tem esses rituais, você tem rituais, principalmente na época de colheitas ou na época de caças fartas, ou na época em que a pesca é mais abundante, a gente tem vários rituais e várias festas que são ligadas a isso e são festas de agradecimento por que a gente conquistou essa comida. A gente, quando fala de mitologia, sempre fala dos gregos antigos, então os gregos tinham o costume de, toda vez que matavam um animal, uma parte do animal era queimada para o deus. No caso, as vísceras e a gordura. Já na nossa… que tem um pouco mais de influência… que é o judaísmo, você tem a questão da Páscoa, do Pessach, entre os judeus, e uma das coisas mais comuns lá é a questão do pão ázimo, que é o pão sem fermentar, e tem regras rígidas para fazer esse pão. Entre começar a fazê-lo e colocar no forno, tem que ser em no máximo 18 minutos, porque senão não é considerado um alimento sagrado. Então você tem essas questões ligadas a um preparo, vamos dizer assim, ritualístico da comida, e esses são preparos levados mais a fundo quando você está em uma festa específica daquela religião. Então eu posso comer pão ázimo em qualquer época, mas o pão ázimo do Pessach é um pão específico, feito para aquilo, normalmente feito pelos próprios judeus, pela mãe ou um padeiro especializado, um padeiro autorizado. Inclusive você tem isso, você tem a questão de autorizar algumas pessoas a cumprirem os ritos, os sacrifícios ou não, e isso não é exclusivo, não é só do judaísmo, que às vezes a gente fica colocando como uma coisa, assim, tão antiga, mas no judaísmo é atual, e entre os muçulmanos também você tem isso, que é uma coisa bem atual. E eu estou falando isso por quê? Porque aí a gente vai falar do candomblé e umbanda, porque a gente fala: “Oh, no candomblé e umbanda tem isso”; gente, a gente tem isso direto em todas as religiões, às vezes a gente só não para para pensar no que a gente está tendo.
Orlando: Tem dois aspectos fundamentais. É o peru de Natal, que é isso, o peru de Natal é isso, é um alimento, ainda que reduzido a um aspecto meramente simbólico, mas por que a gente tem que consumir uma ave no Natal? E o outro ponto que as pessoas esquecem também que… você falou dos muçulmanos, mas é um detalhe interessante sobre isso, que o Brasil, se eu não me engano, é o maior ou um dos maiores produtores de frango halal do mundo, que é um tipo de frango produzido especificamente para o mercado muçulmano, que ele é abatido de uma maneira ritualística dentro dos frigoríficos no Brasil, inclusive ele só pode ser abatido por muçulmanos que rezam antes, rezam depois, enfim, ele tem que ser cortado de um determinado jeito, coisas do tipo. Então é sempre bom lembrar que, por exemplo, uma parcela do PIB brasileiro depende da produção de comida religiosa.
Leonardo: Nesse ponto, eu acho que tem muito essa questão que muita gente vai ver os ritos referentes à comida no candomblé, na umbanda, ou no judaísmo ou com os muçulmanos, e vai… a gente não, porque a gente já costuma pesquisar mais disso, estamos acostumados, e quem for da religião também não, mas pode ter muita gente que acha meio “Nossa, que diferente” ou “Que estranho”, algo assim, mas por quê? Querendo ou não – isso eu estou chutando agora -, tipo o Natal, beleza, é católico ali, é algo católico, mas está diluído no país, digamos assim. Diluído que eu quero dizer assim: você não precisa muitas vezes seguir realmente ali e vai ter o Natal, vai ser um feriado de qualquer maneira; você sendo da religião ou não, é um feriado, é algo que já ficou meio que padronizado. Então muitas vezes você vai comemorar o Natal nem parando para pensar naquilo como um ritual, algo ritualístico em si, como uma festividade religiosa. Obviamente, todo mundo sabe que é, mas ficou uma coisa corriqueira. Agora, quando você vê o da outra religião, parece que a pessoa é focada naquilo lá, “Não, tem que ser daquele jeito, tem que ser ali”, mas é porque você está meio que de fora, você está meio que aceitando o que foi padronizado, que aí é o do católico. Por isso que aquela ideia que muitas vezes falam que aqui é católico no sentido de muitos costumes, mas que a pessoa não pratica isso.
Nilda: Até o Orlando falou nessa coisa do peru de Natal, que sequer é exatamente um alimento religioso; é um costume que foi trazido com o tempo, e, detalhe, importado de outra coisa. Na verdade, o peru faz parte das comemorações nos Estados Unidos, no dia de Ação de Graças, foi trazida para o Brasil essa questão, só que a gente não tem aqui o costume do dia de Ação de Graças, então a indústria alimentícia, desde a década de 70, faz campanha para você comer o peru no Natal, e virou um costume de Natal, mas não é um costume exatamente religioso, porque ele não tem base na religião, mas virou um costume ligado a uma festa religiosa. Quer dizer, essas coisas da cultura, de como a sociedade vai indo e incorporando coisas, às vezes do capitalismo ou de quem quer que seja, ou de outra cultura, e de repente passa a fazer parte do seu rito. Aí todo mundo vai e faz um peru de Natal ritualmente. Mas vamos deixar o cristianismo de lado, que não é a pauta.
Leonardo: Mas, então, ouvinte, nesse episódio a gente vai focar mais comidas relacionadas ao candomblé e à umbanda. A gente pode, mais para a frente, fazer – pode não, com certeza, vale a pena fazer – um focado em outras religiões para se aprofundar mais. A gente falou aí de judaísmo e tudo, a gente pode se aprofundar mais. No de hoje, a gente fica na parte de religiões afro-brasileiras.
Orlando: Um detalhe que eu acho que vocês falaram é das pessoas que são qualificadas para fazer o sacrifício. Eu falei, comecei a minha apresentação falando que eu sou ogã em um terreiro traçado, que se chama, porque é um terreiro de candomblé e umbanda. Isso significa… eu não sou só ogã, eu sou um ogã axogum, que significa que eu sou uma das pessoas responsáveis pelo corte dos animais, pela imolação ritualística de animais durante o culto. Então só para deixar isso claro para o ouvinte.
Nilda: A gente está falando aqui de religiões, e tem a questão de se (a gente) [00:16:32] classifica mesmo o candomblé e umbanda como religião ou conceito de religião, que você tem uma opinião… não é uma opinião, existe toda uma teoria sobre não exatamente serem religiões ou se não é o tema adequado para isso.
Orlando: O meu problema com a palavra religião… é sempre bom lembrar que até muito pouco tempo, em termos da história da humanidade, inclusive muita gente repete isso até, que só existe uma religião, o cristianismo é a única religião, porque existe um conceito de religião que tem como base a percepção, a imaginação que se tem do cristianismo, e todas as outras religiões, digamos, habitualmente a gente tende a classificar como religiões, são julgadas tendo o cristianismo como modelo. Então, por exemplo, as religiões de matriz africana vão ser chamadas de religiões sem livro. Quando você adota a religião como uma palavra capaz de aferir um valor, um sentido às outras práticas de sentido de outras populações, enfim, você está impondo uma espécie de comparação sempre no negativo. É como se você mantivesse o nosso modelo sobretudo europeu, enfim, porque é onde ali o centro do papismo vai se consolidar, mas você cria um critério de avaliação etnocêntrico sobre a vida dos outros povos. Então, por exemplo, quando você diz que o candomblé é uma religião, sem querer você evoca todo um imaginário sobre o que deve ser uma religião ou não, que mais para frente é usado para dar a esses cultos, essas práticas, um valor negativo ou um valor incompleto. Não é à toa que, por exemplo, no Brasil até hoje, para muitas pessoas, tendo esse critério de o que é uma religião em mente, o candomblé e a umbanda são considerados folclore. Várias celebridades, o Ratinho, por exemplo, que é um ser bastante conhecido por suas opiniões polêmicas, para dizer o mínimo, declara continuamente no seu programa que candomblé e umbanda ou terecô, enfim, qualquer religião de matriz africana, na verdade são o folclore brasileiro. Então esse é um problema. É sempre bom lembrar, por exemplo, quando os portugueses chegaram no Brasil, eles decretaram que os povos indígenas não tinham religiões por conta disso, por conta desse critério, o que é uma religião, em mente. O que eu proponho como antropólogo, mas também como praticamente de uma dessas outras religiões, vamos colocar assim, só para caráter de entendimento, é de que a gente abandone a ideia do que é uma religião e passe a entender mais a partir dos termos colocados pelos próprios praticantes. Então, por exemplo, quando você vai ver o que seria o candomblé e a umbanda, eles estão muito mais próximos de artes, tecnologias, do que de fato aquilo que se concebe como sendo uma religião nos termos cristãos. Isso também é muito importante para você perceber, por exemplo, a vida das populações ameríndias, como eles se ligam com uma espécie de dimensão sobrenatural da existência. E esse também é um ponto importante: por que para mim a ideia de uma religião é complicada? Porque ela traz consigo também toda uma distinção normativa da vida, que é uma neurose que os euro-americanos, os modernos, carregam consigo, que é essa ideia de que tem que separar a vida em esferas: isso aqui é religião, isso aqui é, sei lá, negócio, isso aqui é economia, isso aqui é o Estado. Essa separação é impossível quando você vai falar, por exemplo, dessas práticas de outros povos, por exemplo, como o candomblé e a umbanda. O candomblé e a umbanda não são esferas separadas da vida, eles são a vida em si, são a vida em sua plenitude. Todos os aspectos da sua vida estão contidos ali.
Leonardo: Gostei de ouvir isso aí, porque eu não tinha parado para pensar dessa forma. Mas por que também eu não tinha pensado assim? Porque, agora você falando, eu percebo essa ideia de você, pô, religião, então você vai estar meio que comparando ali e pode estar até rebaixando em si, comparando com o cristianismo, coisa assim, mas porque, para mim, como eu acabo meio estando fora de qualquer religião – não pratico nenhuma, eu vou mais ali pela questão do estudo em si, por conhecê-las -, quando eu englobo como religião, nunca englobei pensando dessa forma. Muitas vezes eu ia até mais colocando assim, tipo, já que o candomblé e a umbanda, e, sei lá, o hinduísmo, o xintoísmo, qualquer coisa assim, tudo, são ditas muitas vezes como religiões, e o cristianismo também, então vamos ver o que tem em comum, esses, para a gente tentar ver o que seria, então, uma religião. Não que eu dissesse: “Ah, então, tipo, o candomblé é uma religião sem livro”, porque aí dá a entender que religião precisa ter um livro, e, na minha cabeça, isso não, porque religião… isso vem antes até de ter texto em si, (quer dizer) [00:21:35], não precisaria ter um livro, ter criação de livro e você já tinha religiões, ou pelo menos as crenças iam no que costuma-se chamar de religião. Então por isso eu não via com esse lado de comparar de forma negativa, mas faz sentido.
Orlando: É, só um detalhe, porque, por exemplo, a ideia de religião, por exemplo, traz consigo a categoria da crença, a ideia de uma crença. A palavra crença, quando a gente vai pegar e vai ver o momento em que ela começa a ser usada, a primeira vez que se começa a utilizar a palavra crença é para designar os outros povos. Você consegue encontrar inclusive os textos começando a falar de crença e fetiche. Crença e fetiche surgem muito juntos a partir do contato dos povos europeus com os povos ali da costa da África. O ponto é que o cristianismo, no original, não era considerado uma crença. Quem crê é sempre o outro, é sempre o diferente. A crença, dizer que era uma crença, era um epistemicídio da existência do outro. Quando você reduz a vida do outro a uma crença, você reduz a vida do outro a uma mentira. O cristianismo era considerado um saber: eu sei, é a palavra, é a verdade, é a boa nova; a vida dos outros povos é reduzida ao domínio da crença. Aí depois você tem um deslocamento semântico, você tem uma confusão, porque, ali para 1600, 1700, quando você meio que cria a ideia de… a ciência começa a existir como a gente a concebe hoje em dia, um pouco, e você separa as esferas da vida, o próprio cristianismo é concebido enquanto uma crença, que também é uma forma de despotencializar o próprio cristianismo: o feitiço virou contra o feiticeiro totalmente nesse aspecto. Então esse também é um outro ponto, porque, quando você traz a palavra religião consigo, você também traz a palavra crença a rebote, e essa palavra crença a rebote, quando você vê o que ela está operando ali no imaginário conceitual, ela está operando um epistemicídio. Então, por exemplo, quando você começa a falar de um artista que está apresentando uma obra de arte, a crença dele não é envolvida ali. Não faz sentido perguntar se o artista acredita ou não no que ele está produzindo ali. Para a gente, por exemplo, praticante do candomblé, da umbanda, crer ou não crer naquilo não é exatamente o que está em jogo. A ideia de crença é um problema europeu, você vai lá discutir isso com Santo Agostinho. Para as outras populações, e a vida que emerge das outras populações, que a gente chama de candomblé, de umbanda, crer ou não crer não é exatamente uma coisa, até porque você não precisa crer para participar, sabe? A troca, o axé circula, a movimentação não está reduzida à esfera de se você acredita naquilo ou não. A sua participação é aferida por outras formas.
Leonardo: Isso é uma coisa que fica encucando, assim, pensando sobre isso aí, porque crença, querendo ou não, é… crença e religião são conceitos que a gente sempre traz aqui no podcast e tudo, a gente sempre está… então a gente tenta estar sempre definindo, mas é algo bem complexo e tudo; mais; agora, uma forma de ver isso aí.
Nilda: Você falou isso, que no candomblé e umbanda, você participando, você está ajudando a fazer circular o axé, que é esse conceito de… eu poderia dizer como energia, mas não é só isso. Seria só uma forma um pouco mais fácil de entender isso, para quem não é da religião, e aí, partindo aqui para o que eu pesquisei, eu vi que a questão da alimentação na comunidade… porque o candomblé e a umbanda são muito isso, são muito comunidade, todo mundo tem que participar, todo mundo que é da religião, todo mundo que é praticante, para ser considerado praticante, tem que participar de todos os aspectos ou dos aspectos que lhe são destinados, dos quais é incumbido dentro da religião. E aí, pesquisando… no livro Candomblé bem explicado tem uma explicação sobre essa importância da alimentação; um item que eu achei muito interessante, que eu até vou ler aqui, que é: “Muitas vezes o homem compartilha com o orixá o mesmo alimento que lhe é ofertado, e este momento provoca a distribuição e a movimentação do axé na casa, fortalecendo assim o maior entrosamento das forças divinas com o homem. O alimento faz do humano mais feliz e proporciona o melhor equilíbrio e harmonia na comunidade”. Eu achei muito interessante esse texto, porque eu sinto um pouco isso também em almoços de família.
Orlando: Exatamente.
Nilda: Independentemente de todo mundo ser da mesma religião. Quando você une o… como a gente estava falando de Natal antes e tudo mais, o almoço de Natal na minha família sempre foi um pouco isso, cada um fazendo a sua parte e dando um jeito de ser feliz dentro daquela festa. Não sei se eu consegui pegar um pouco o que é isso, essa festa pelos orixás, isso de você fazer as festas tanto para o orixá quanto para o pessoal do terreiro.
Orlando: O compartilhamento de alimentos e a forma como eles produzem e atualizam, vamos chamar assim, grupos sociais – porque a família é isso, é um grupo social – é universal. Comer com alguém produz laços. Isso a gente vê de forma cotidiana: com quem você almoça no trabalho? Grupos, laços, amizades, intrigas, são todas constituídas dentro de algum fluxo de alimentos. O compartilhamento de alimentos é o que caracteriza uma unidade social. Para a gente, família é muito isso. Quando, por exemplo, você vai lembrar do pai e da mãe, uma das primeiras coisas que vem à mente é o compartilhamento de alimentos, é comer juntos, é comer a comida deles, a comida que eles preparavam. A comida é carregada de afeto por isso – esse é um ponto fundamental. Um outro ponto que é fundamental quando a gente vai falar, já trazendo um pouco para o candomblé, umbanda, terecô, mina, enfim, é que se trata de uma prática de uma arte diaspórica, ou seja, uma arte que se inicia tendo como… muito a partir da experiência da escravidão. O que foi a experiência da escravidão? Foi justamente uma desterritorialização aguda de comunidades inteiras, que foram dispersas ao longo do mundo e isoladas, então, que é aquela prática clássica dos navios que colocavam homens e mulheres de populações distintas, que nem falavam a mesma língua, misturavam para que não pudesse haver revolta, essas coisas. Agora, imagina essas pessoas serem transportadas para as Américas desse jeito. Quando elas chegavam aqui, muitas vezes não tinha nenhuma língua que pudesse ser utilizada como, enfim, universal, como um tradutor ali, então a primeira coisa que essas práticas, essas artes fazem é resistir a esse processo de isolamento, essa dispersão. Como eles faziam? Eles produziam comunidade. Então a primeira forma de produzir uma comunidade é compartilhando alimentos. Então os alimentos começam a ser compartilhados, as pessoas começam a produzir vínculos, e o aspecto sobrenatural da coisa é uma consequência disso. Na verdade, ele é tanto a consequência como a origem, porque, quando você começa a compartilhar esses alimentos, você precisa dar um sentido a isso, você precisa dar um sentido àquela experiência, de onde emerge toda a matriz africana do pensamento. Então, quando você começa a dar um sentido – “Por que nós estamos aqui juntos?” -, você começa a dar àquele corpo, àquele grupo de pessoas um novo sentido, um novo nome. Não é à toa que, por exemplo, dentro das casas, dos barracões, as pessoas se tornam irmãos, irmãs, inclusive com interdição sexual. Você não pode ter relações com pessoas que tenham o mesmo pai que você dentro do terreiro, que foi feito pelo mesmo pai de santo, que foi feito pela mesma mãe de santo. Ou seja, rapidamente aquela unidade se reatualiza, se configura como uma família. E aí, mais uma vez, o compartilhamento de alimento tem um papel fundamental nesse processo. E aí vem um outro ponto: compartilhar alimentos, comer, cria vínculo entre os humanos – esse é um ponto sociológico -, mas também cria um vínculo do humano com o seu outro lado, com o aspecto sobrenatural da existência. Quando você para para pensar que a relação dos orixás com os viventes, com os humanos, não é uma relação do tipo deus, não é do tipo uma divindade inalcançável, muito pelo contrário, o orixá faz parte da pessoa – na verdade, a pessoa faz parte do orixá -, é como se, por exemplo, eu sou filho de um determinado orixá. A comida que eu como também faz parte da vida desse orixá. Inclusive, eu tenho interdições alimentares por conta desse orixá. E quando eu coloco comida para esse orixá, quando eu faço um ebó, quando eu faço, enfim… eu também estou me alimentando. Então a comida que eu como, como eu como, também gera um vínculo meu com o sobrenatural. Então essa ideia de que a gente vê isso atualizado no almoço em família, ela é, digamos uma manifestação de uma estrutura que é universal em diversas outras práticas que nós, por convenção, chamamos de religião, que é justamente essa produção de vínculo, produção de laços por meio do compartilhamento de alimentos.
Nilda: Eu já tinha visto isso da questão tanto de alimentos específicos de um orixá quanto os interditos. Eu acho muito interessante e uma ligação que eu não consigo aprender totalmente, sendo de fora da religião, mas eu acho fascinante isso.
Orlando: É chamada quizila.
Nilda: É, de você não poder comer algumas coisas, e, a partir do momento que a pessoa é feito o santo, aparentemente, quer dizer, a pessoa realmente não vai passar bem se ela comer alguma coisa que não é… um alimento que é proibido para o santo.
Orlando: É porque é aquilo que eu falo, a vida está englobada como um todo; o corpo da pessoa é produzido, tanto que você renasce efetivamente dentro do… quando você faz um amaci, que é, digamos, um ritual de batismo, você renasce e fica vivendo… tanto que, quando você faz o amaci – enfim, não posso falar muito sobre isso -, uma das primeiras coisas que acontece é você, durante um tempo, ser alvo de um monte de restrições alimentares, porque justamente, como você está funcionando essencialmente nas forças dos seus orixás, você está só funcionando no teu axé dos seus orixás durante aquele processo de reclusão no terreiro, enfim, você não pode comer outros alimentos, porque ele vai justamente dar uma quizila com você, vai dar um problema, vai dar, digamos, uma disfunção energética.
[Trilha sonora]
Nilda: Seguindo aqui na questão dos festejos e alimentos, vamos falar de alguns que são mais conhecidos de todo mundo, e a gente passou no mês de setembro dos festejos de Cosme e Damião, que é uma festa bem conhecida acho que no Brasil todo, mas acho que não necessariamente festejada no Brasil todo com a mesma força. Eu sei que no Rio de Janeiro é uma festa com muita força de você fazer, muito ligada aos terreiros de umbanda e candomblé. Essa festa é uma festa cheia de problemas, às vezes, porque tem gente que considera receber os doces de Cosme e Damião… você não deveria pegar esses doces. Eu vou dizer que, como católica, eu não tenho problema nenhum em pegar doces. Eu tenho problema como diabética, mas como católica não tenho problema nenhum de pegar doce. Não tenho problema nenhum e eu sinto falta toda vez que eu vejo esse relato, porque eu morei em uma região em que não havia essas festas. Eu falo: “Pô, eu poderia ter comido muito mais doce quando eu era criança, se eu morasse em um local em que houvesse a distribuição de doces nessa festa”. E aí, Orlando, eu peguei e aproveitei que você sempre vive falando nisso, que você teve todos esses doces distribuídos, (isso tem) [00:33:47] um significado especial. Meio que é um doce para cada orixá.
Orlando:
Leonardo: E essa relação entre determinado doce ali estaria mais focada só no festejo ali, naquele momento, ou em geral?
Orlando: Pode ser em geral. Tem uma dimensão que isso vai depender muito mais da pessoa que está comendo do que de uma coisa mais ampla. Justamente, se você come, por exemplo, um doce de leite e lembra de Oyá, produz um efeito em você, algo aconteceu ali, algo está se passando ali.
Leonardo: Não precisa ser no festejo ali, no momento, pode ser em qualquer outro momento; se eu lembrar e tudo, vai estar acontecendo.
Orlando: É, porque tem uma coisa que é fundamental, que, por exemplo – isso é uma coisa que o Luiz Antônio Simas fala -, o próprio terreiro não é um espaço fixo; o terreiro é um espaço praticado, o terreiro de candomblé, o terreiro de umbanda. Você pode virtualmente produzir um terreiro em qualquer lugar. Inclusive, o Simas tem uma teoria que eu concordo, por exemplo, e você tem casos muito clássicos disso acontecendo: a Passarela do Samba se tornar um terreiro. Você tem alguns determinados desfiles de escolas de samba onde as pessoas começaram a incorporar no meio do desfile. Então aquilo tudo se tornou um terreiro. Então o que era ou não um artefato da arte do candomblé ou da arte da umbanda, ou do terecô ou da mina, enfim, de uma arte dessas religiões de matriz africana, isso não é exatamente a priori, isso é a posteriori, até porque, por exemplo, quando você vai ver o uso das imagens, a forma como as imagens são consagradas, não é toda imagem, por exemplo, que é um exu. Você pode ter uma imagem de um exu que não é nada, é só uma coisa de cera. Mas, se você vai lá e consagra a imagem, aquilo se torna um exu, você assenta um exu ali. É daí que surge a palavra fetiche, e desse problema que as artes das religiões de matriz africana causavam nos portugueses, que vem de feito, feitiço, de uma coisa fabricada, que para eles não fazia sentido que os povos ali da costa africana fabricassem os seus próprios deuses, e tudo bem, sabe? Fez essa imagem aqui e tal, fez esse assentamento com aço aqui – “Esse aqui é o seu deus?”, “É”, “Mas você acabou de fazer”, “É, mas está aí dentro”. Esse processo de produção do ser, o artefato, nunca é dado a priori, ele é sempre a posteriori.
Leonardo: Isso que você falou da estátua em si, eu me lembrei que esses dias eu estava vendo, em questão do hinduísmo, que, ao meu ver, tem algo meio semelhante de eles fazerem. Eles fazem a estátua e, antes… está ok, acabou de fazer a estátua, é só uma estátua; aí tem todo um ritual, faz algo ali, e, quando faz isso, o deus é a estátua. Ele não só está ali, ele é a estátua. Aí, depois que se utiliza… que se utiliza não, mas que passa o ritual em si, vai embora, volta muitas vezes a ser só uma estátua. Aí, se quebra enquanto a divindade é aquilo lá, tem alguns problemas, mas antes você pode quebrar, que é só uma estátua em si, depois que se torna a divindade. Me lembrou disso conforme você foi falando.
Orlando: É, e só uma coisa: quando se produz, por exemplo, quando se assenta, como se fala, uma entidade em uma estátua, em um padé, enfim, você tem que dar de comer a ela, e você, por consequência, também come. Os católicos também fazem isso, tipo aquelas pessoas botando aquela cervejinha para o São Jorge, aquele cafezinho para o… esqueci o nome do santo.
Nilda: Você citou o hinduísmo, Leonardo, mas em boa parte de outras religiões você tem a oferenda de alimento para o deus, e no catolicismo às vezes você não tem exatamente oferenda do alimento, mas, por exemplo, dia 29 você come um nhoque se você estiver fazendo uma promessa para São Judas, sabe? Tem umas coisas assim que você faz que são ligadas, aquele alimento ligado àquele santo ou a alguma coisa, e normalmente é ligado à alguma promessa que você fez. Isso só para fazer essa comparação, porque (pelo que) [00:39:51] o Orlando falou não é exatamente a mesma coisa, mas, no final, a gente acaba sempre tendo muita coisa em comum.
Leonardo: A gente tem uma listinha de qual – pelo menos aqui da festa de Cosme e Damião – doce é referente a qual orixá, tudo assim, mas isso é uma coisa que tem variações? Até porque umbanda e candomblé têm suas variações em si. Ou é algo mais fixo?
Orlando: Então, uma coisa que eu gosto sempre de falar… inclusive, sempre que eu vou falar de macumbas para os ouvintes – é bom lembrar uma coisa: eu posso falar macumba, é aquela palavra assim… não é o uso pejorativo, é o uso corrente -, para as macumbas vale uma regra clássica: cada casa é um caso. Então, por exemplo, o que se faz, o que se pratica na minha casa é diferente da casa dos outros. Inclusive, essa é uma coisa que o macumbeiro tem sempre que lembrar: toda vez que eu vou ao terreiro de outra pessoa, eu sempre sei: na minha casa eu faço assim, mas aqui você faz diferente, tudo bem. Funciona para eles? Funciona. Está certo, os orixás estão aqui, as entidades estão aqui, está funcionando, tudo certo. Então, para muita gente, para muitas casas, isso não faz qualquer sentido. Isso foi uma coisa que eu aprendi ao longo da minha vida: ele não se remete a uma verdade universal. Para muitas pessoas, pode ser qualquer doce; isso não pode ser nada – e as pessoas da religião mesmo, sabe? Pode não ser nada. Outras pessoas concordam. Então isso vai de casa para casa. Quando eu vou falar de religiões nesse caso, eu gosto do termo religiões de matriz africana, porque a ideia de matriz me remete quase à matriz matemática, está sempre produzindo uma coisa diferente. Então, por exemplo, quando você vai pensar o terreiro, se eu não me engano, no sul do país até a mina marajoara, que tem lá no Marajó, aí você vai vendo a quantidade de diferenças, como essas religiões vão se transformando conforme o lugar onde elas estão. E não só quando estão dispersas na geografia, mas também em espaços muito curtos. Então, por exemplo, o meu terreiro é diferente do terreiro daqui do lado, enfim, mas a gente reconhece alguns traços em comum e é assim que tem que ser, essa dispersão anarquista da coisa. Não tem um Estado regulador da religião. Eu acho extremamente positivo que, para algumas casas, isso que eu escrevi sobre, por exemplo, a cocada branca ser de Ogum, não fazer qualquer sentido para essas pessoas. Isso para mim que é o rico do candomblé, da umbanda, do terecô, da mina marajoara, enfim, do tambor de mina. Isso que é interessante. Para algumas pessoas é, para outras já não é, e é assim que tem que ser.
Leonardo: Legal essa forma de ver, porque, eu estando de fora e gostando de pesquisar, é fantástico ter todas essas variações, mas ao mesmo tempo eu fico tenso de tanta coisa que eu tenho para ir atrás assim, que é o legal, mas ao mesmo tempo o trabalho que dá, e parece que nunca tem fim realmente, nunca teria fim. Por mais que pesquise, sempre vai ter mais, porque você vai ter essas variações. Aí uma coisa que eu sempre fico com certo receio é de ver que, muitas vezes – isso eu já citei em alguns episódios -, eu sempre vejo o pessoal que é praticante da religião falar: “Não, tem essas variações, é normal isso, isso é legal”, que nem você falou. Mas aí eu fico com um certo receio de, de repente, ter pessoas que “Não, não, tem que ser desse jeito”, é meio que querer universalizar. Eu tenho um certo receio disso ocorrer, por isso também eu quis saber essa parte da comida, como é, se também é volátil como muitas outras características das religiões.
Orlando: Isso é bem comum, as pessoas tentarem normatizar o que é candomblé, umbanda, terecô, mina marajoara, enfim. Inclusive, isso é um fenômeno bastante… sempre teve, mas acho que agora, com essa ascensão do Youtube, se tornou uma coisa muito difundida. Por exemplo, há pouco tempo teve um sujeito no Twitter falando: “Mulheres podem como devem ser ogãs, sim”, sabe? Na casa dele, mulheres podem ser ogãs, ótimo, funciona para eles; mas você tem que saber, quando diz isso, que, quando você diz tal coisa – “Mulheres podem e devem ser” -, você está ignorando, por exemplo, 90% das casas de candomblé na Bahia. Você vai falar que o terreiro da Menininha do Gantois estava errado? Você vai falar que, enfim, o Ilê Opô Afonjá está errado por não permitir mulher ogã? Então esse que é um ponto: eu acho que é fundamental você ter sempre isso em mente, de “Olha, tem casas onde mulheres podem ser ogãs; tem outras casas, a grande maioria delas, inclusive, onde mulheres não podem ser ogãs”, porque tem toda uma explicação para isso. Antes que se acuse… todas aquelas acusações habituais, tipo, é sempre bom lembrar que a gente está falando de religiões que, no Brasil, se atualizam como matriarcais, então, uma parcela significativa dos terreiros onde mulheres não podem ser ogãs, o papel de Ialorixá, que é a figura máxima, é só feminina. Toda a linha sucessória da dona da casa é só mulheres, não pode ter homens na linha sucessória. Então é sempre bom lembrar desse aspecto para não reduzir isso a uma questão normativa de gênero.
Nilda: Agora que a gente está falando de todas essas variantes que tem, que eu acho fascinante isso, tem – mesmo no Cosme e Damião – uma variante que é muito ligada à Bahia. Eu sei que em outros estados também têm, mas na Bahia é muito forte, que é uma tradição baiana do caruru no Cosme e Damião. Pelo que eu escuto, pelo que eu li, não é apenas durante os festejos de Cosme e Damião, que é no final de setembro, mas é praticamente todo um mês em que os baianos se esmeram fazer caruru e chamar pessoas para a sua família para comer o caruru. Para quem não sabe – eu não sabia há pouco tempo, é um prato que eu não comi ainda…
Orlando: É maravilhoso.
Nilda: … caruru é um prato feito com camarão seco, castanha, amendoim, azeite de dendê e quiabo, basicamente. Na Bahia, em Salvador, em outras cidades, se tem o costume de realmente fazer isso. E, se é um festejo às vezes ligado ao terreiro, você não faz apenas o caruru, você também serve outros alimentos, você serve canjica, acarajé, pipoca, que seriam alimentos consagrados a outros orixás também, porque você vai alimentar todas as crianças. E o que você faz? A tradição é você distribuir isso para crianças. Você tem que abrir a casa para qualquer criança – ou a tradição era antigamente, porque hoje em dia muito disso foi reprimido. Você abria a casa e, se uma criança aparecesse, você tinha que dar caruru para essa criança, não interessa quem é. Então era um tal de você mandar criança ir comer na casa dos outros o dia todo, mas você tinha muito essa tradição, e não é… assim, vem dos terreiros, mas ela foi incorporada por toda a comunidade baiana, então virou um evento social, virou um evento de família, então mesmo que você não seja de terreiro, que você seja de uma família tradicional católica, existiam também esses almoços de setembro fazendo caruru. Esse prato é o prato que você serve tipicamente nesse mês, então você tem que no mínimo fazer um dia servindo caruru para a família, porque é o mês que você produz caruru, é o mês de maior produção de quiabo, então você tem que fazer isso, porque todo mundo está fazendo esse almoço e distribuindo e dando para crianças. E, em algumas casas, você tem o costume de dar o caruru de sete meninos: você tem que arrumar sete crianças, que você serve primeiro a essas sete crianças o caruru. Ou seja, é uma festa muito ligada à infância, muito ligada à alimentação, e é essa mistura que é o Brasil, você mistura tudo ali e transforma. É claro que hoje em dia você tem algumas dificuldades de realizar essa festa por causa da intolerância religiosa que está se instalando, mas mesmo assim, na Bahia, pelo menos que eu saiba, as últimas pessoas com quem eu conversei, ainda é muito forte você fazer isso. Você tem que fazer caruru em setembro para todo mundo, é uma festa de generosidade, você tem que servir esses alimentos. O Orlando falou que é muito bom; eu não comi, eu não sei dizer.
Leonardo: Eu fiquei curioso.
Orlando: E olha que quiabo não é a minha… eu, como filho de Ogum, o quiabo não é a minha área, mas, enfim… é porque inclusive é uma comida de erê, é comida que você serve para erê, quando tem erê no terreiro.
Nilda: Erê é criança?
Orlando: É porque o erê é uma criança, mas ele não é exatamente o espírito de uma criança, é outra coisa. Ele é um intermediário da pessoa, do orixá, filho de santo com o seu orixá. Ele, digamos, é o aprendizado dessa pessoa, porque, quando a gente aprende, nós somos crianças. Então o erê é a condensação dessa função aprendiz do filho de santo. A gente não pode confundir às vezes os erês exatamente com crianças, mas eles são, para todos os efeitos, se comportam, se vestem e agem como crianças. E uma questão fundamental do caruru é justamente essa, porque ele é uma comida que produz alegria. A função dele é produzir alegria e produzir potência. Comer caruru, para a gente que é do terreiro, que é do barracão, é de muitos desses episódios onde a gente se enche de vida. O caruru para mim está junto com a feijoada. Eu sou carioca, então a feijoada para mim tem uma função, digamos, mais visível, mas a feijoada, que é o prato brasileiro, nos terreiros tem toda uma função religiosa. Festa de preto velho, festa de Ogum, dia de São Jorge, são festas comemoradas com feijoadas, e a feijoada que está sendo produzida ali tem uma função de propagar o axé. Inclusive, a festa de Ogum tem um quê a mais, que é a cerveja, então é chato beber cerveja nesse sentido, não é? Beber cerveja e comer feijoada de uma maneira religiosa, para usar esse termo.
Nilda: Ou seja, você que fala: “Eu gosto de tomar cerveja, então eu tenho que ter uma religião nórdica”, não, você não precisa ter uma religião nórdica para beber cerveja ritualmente. Não, eu vou só falar uma coisa que a gente (inint) [00:50:21] “É um prato que vai quiabo”, aí alguém pode falar “Nossa, mas é um prato ligado a criança e vai quiabo?”. Como tia de vários sobrinhos, crianças gostam de quiabo. Pelo menos na primeira infância, eles gostam muito. Se não gostarem depois, é porque colocaram na cabeça deles que não é bom. Mas eu tenho sobrinhos pequenos que avançam em pratos de quiabo, se você deixar o prato perto, na altura da mão. Então as crianças gostam muito disso.
Leonardo: Fiquei curioso por esse prato. Quiabo, eu não lembro se eu gosto ou não, mas eu não tenho muita frescura com comida, mas camarão, cebola e castanha aí me chamaram muito a atenção.
Orlando: Ele fica como se fosse uma papinha. Recomendo muito.
Leonardo: No geral, questão dessas religiões assim, me chama muito a atenção a questão da comida. Tudo isso eu acho muito interessante. Dá vontade.
Orlando: Mas a gente vive brincando disso no barracão, que a gente virou macumbeiro para comer bem, porque, se tem uma coisa que é difícil manter, por exemplo, dentro do barracão, é o peso. É difícil. É feijoada direto; quando a gente vai fazer uma gira, vira, então depois vêm uns pratões de comida para a gente, uma galinhada, sabe? Toda a comida que a gente vai comer depois… inclusive, tem isso, toda gira, quando tem comida no terreiro, quando são giras mais longas, a comida tem uma relação fundamental com as entidades da festa. Então, de certa maneira, a gente está também consumindo o axé, está distribuindo, fazendo o axé circulando. Então não é qualquer comida. Acabou a gira, a gente não vai pedir um Burger King. Então a gente vai comer uma galinhada, vai comer um feijão com um monte de coisa dentro ou uma feijoada, sabe?
Nilda: Estou vendo você quase revendo suas crenças por causa de comida, ou suas não crenças, não é? Aí, Orlando, você vai converter um ateu aí só na base da comida.
Orlando: Rapaz, pode ser até macumbeiro, não tem problema nenhum, é só participar.
[Trilha sonora]
Nilda: E outro alimento que eu já vi, mas nunca comi, na verdade, é o acarajé, e o acarajé tem uma ligação muito grande.
Orlando: De todas as comidas de macumba, para mim, o acarajé, a feijoada e a canjica são as três principais, eu não consigo viver sem. O acarajé consegue me fazer… eu posso estar na maior crise depressiva, eu me coloco o objetivo: eu vou sair para comer um acarajé. Eu consigo ter energia para sair de casa, comer o acarajé. Comendo o acarajé, aquela coisa dos afetos que ele evoca, aquilo muda minha vida, aquele momento. O acarajé é uma… nossa. Não gosto nem de lembrar.
Leonardo: Acarajé é algo que eu sempre tive também muita curiosidade. Teoricamente, eu comi uma vez só na minha vida, mas eu nunca saí de São Paulo e aqui acarajé eu sempre fiquei com receio de, tipo, eu nunca fui a local de umbanda e candomblé em si mesmo, porque aí lá eu vou ter a confiança de que estão fazendo certinho ali. Então o que eu comi foi em coisa de venda ali. Então eu não sei… isso independentemente de qualquer questão religiosa, mas eu fico com aquele receio: “Será que eles fizeram do jeito certo mesmo? Será que são esses ingredientes mesmo?”. Eu sempre fico com aquele receio. Então eu também não sei se o que eu comi realmente era. Gostei, mas eu tenho muita curiosidade de realmente comer um o qual eu tenha certeza que foi feito como é o mais tradicional.
Orlando: A receita do acarajé tem um padrão. Talvez a coisa mais importante é saber quem pode vender, esse que é um ponto que eu vivo brigando com as pessoas, de que o acarajé tem uma função, inclusive ele é um dádiva do orixá para a pessoa. Ele dá um sustento para a pessoa. Para muitas mulheres negras, pobres, do santo, o acarajé – a venda de quitutes, mas o acarajé sendo o prato-chefe – é a única fonte de renda. Se eu não me engano, no último censo que fizeram sobre as baianas do acarajé lá de Salvador, 70% delas eram o único sustento da família. Então é importante que a gente pense, quando a gente vai comer um acarajé em outros lugares, sei lá, barzinho da moda, em uma feira vegana ou, sei lá, em uma barraquinha religiosa cristão – os famigerados bolinhos de Jesus -, a gente tem que ter a noção de que aquele ato, a gente acredite ou não no orixá, está prejudicando a vida de várias pessoas. Então esse que é meu ponto. Sempre quando eu fico falando disso no Twitter, que as pessoas ficavam: “Ah, isso é besteira”, eu falei: “Cara, então por uma besteira você acha ok prejudicar a vida de várias pessoas?”, e as pessoas sempre reivindicavam o seu direito de consumir: “Não, mas eu não posso comer acarajé?”, sabe? Cara, custa você procurar um lugar onde você vai comer na mão de alguém que tenha pelo menos algum compromisso com a religião? É isso que é o meu ponto. Realmente as pessoas são tão necessitadas assim de comer acarajé ao ponto de que elas podem deliberadamente fazer isso sabendo que estão prejudicando a vida de outros? Para mim, esse é um ponto fundamental. E a vida desse pessoal de santo que vende coisas na rua, que tem que ir para a rua paramentado, não é fácil. A gente está falando de um país que persegue ativamente integrantes, pessoas de religiões de matriz africana. E eu digo isso por que eu sinto isso na pele, e olha que eu sou branco. As poucas vezes que eu saio de casa, sobretudo, por exemplo, quando eu estava por conta de uma feitura ou de alguma coisa que eu tenha que estar usando o meu eketé e estar todo de branco – o eketé é um chapeuzinho, as pessoas devem… quando pensar no chapéu das pessoas do santo, tipo, é um chapeuzinho geralmente branco, mas pode ter uma outra cor, que se coloca na cabeça, tipo, quadradinho e tal -, eu escuto as pessoas me xingando. As pessoas jogam coisas em você. Agora, imagina o que essas mulheres – no geral, mulheres – têm que passar, que elas têm que sair de casa paramentadas. O que elas não escutam quando elas estão ali? Então é todo esse sofrimento, toda essa experiência racista, que é uma consequência do racismo estrutural – eu não gosto muito dessa palavra racismo estrutural, porque, enfim, mas do racismo efetivo da sociedade brasileira, que se imagina branca – que a gente está jogando no lixo, que a gente está ignorando. Quando você fala assim: “Não, eu vou comer o acarajé nesse bar hypado aqui, porque é o acarajé que tem perto da minha casa”, é um ponto complicado, acredito ou não no santo. E aí você vê algumas coisas, por exemplo: recentemente, teve um restaurante em Minas Gerais que começou a servir acarajé com abóbora. Abóbora, para algumas casas, é uma quizila de Iansã. Precisa de um pequeno preâmbulo, porque, assim, o acarajé vem de uma palavra em yorubá que é àkàrà, que é bola de fogo, e je, comer, que é comer uma bola de fogo, por isso que o acarajé tem que ser quente. A origem dele está em uma relação de Oyá – Iansã – com Xangô, que é seu marido. A Oyá vai no Ifá e o Ifá dá para ela uma receita de uma comida que ela tem que dar para Xangô, que vai ajudar Xangô a vencer as guerras. Por meio do consumo do acarajé, Xangô… começa a sair fogo da boca dele. Tem uma frase que fala assim: (inint) [00:58:17] – o grande rei de Oyó, rei do pai de fogo. Xangô é o pai do fogo, o fogo é dele. O acarajé está na origem disso, então o acarajé é uma comida que Iansã/Oyá oferece para seu marido e ela é fundamental na estrutura da cosmologia. Então acarajé e Iansã são coisas que caminham juntas, e aí você pega a comida de Iansã, a comida que você oferece para Xangô, e você coloca o elemento que justamente é a quizila, ou seja, o elemento que machuca, que afeta negativamente os filhos de Oyá. É como se você fizesse, perdão uma expressão, vibrador com a imagem de Nossa Senhora.
Nilda: Pensando em comida, eu pensei assim: é você fazer um Pessach com carne de porco, ao invés de fazer cordeiro.
Orlando: Exatamente isso.
Leonardo: É interessante ver dessa forma. Eu já pensei por um tempo assim: “Por que teria…” – me questionando – “… esses problemas em si?”, mas, se o negócio se prende à origem ali, ao nome em si, também já se prende à questão religiosa e tem toda a questão da crença ali, tem todo também esse problema social de quem realmente produz, de sofrer os ataques em si, então é algo realmente que acho que compensa de parar para pensar de que, quando você está fazendo qualquer coisa, mudando ingrediente e chamando de acarajé, você está realmente desrespeitando em si. Eu acho que o problema é você fazer e ainda ficar ligando à religião, e, no momento em que você está pondo como acarajé, você vai estar ligando, você vai estar dizendo que é…
Orlando: Chama de outra coisa pelo menos. Também cai no ponto, por exemplo, teve um problema com o bolinho de Jesus, porque na Bahia teve casos de evangélicos que começaram a vender acarajé e eles não queriam ser associados à comida do demônio – para eles -, e eles começaram a chamar o acarajé de bolinho de Jesus. Mas lembrando que o acarajé é patrimonializado pelo IFAN, então, se você faz a receita daquele jeito, você é obrigado a vender como acarajé, em termos, tipo, chamar um bolinho de feijão ou coisa do tipo. E aí pressupõe toda a vocação desse aparato religioso. Então isso que é outro ponto, o Brasil odeia as religiões – vamos adotar o termo da convenção para ajudar -, as artes religiosas de matriz africana. O Brasil odeia. O Brasil, como nação, odeia o seu substrato negro, seja ele o efetivo, os corpos negros, seja ele o substrato ontofilosófico, sabe? Aquilo que nós herdamos da África. E o Brasil tenta apagar isso o tempo inteiro. E aí chega um momento que fala assim: “Não, mas isso aqui a gente quer, mas a gente não quer desse jeito”, sabe? Pensar o que se tentou fazer com o samba, por exemplo. O Brasil gosta… ele odeia o negro e todos os seus desdobramentos, mas ele gosta de alguns produtos que são produzidos ali, e aí eles querem tomar para si. Isso é uma máquina muito violenta.
Nilda: Fazendo mais uma comparação, você não tem grandes problemas de respeitar um alimento com kosher, judeu, você exalta que você está fazendo nesse local um alimento conforme os preceitos judaicos tradicionais e todo mundo elogia isso, só que não dá para você respeitar como faz um acarajé? Eu conheço supermercado em São Paulo que separou seção de frios para que você não coloque o queijo que a comunidade judaica come junto com presunto, então um é de um lado do supermercado, o outro é do outro lado do supermercado, justamente para respeitar. Então isso você pode; agora, respeitar o acarajé, que nem é uma coisa que você… não sei, eu acho que, a não ser que você more em Salvador, não é uma coisa que você come direto, não é um alimento que faz parte do nosso dia a dia. Pelo menos para mim; para mim, o alimento do meu dia a dia é o cachorro-quente da esquina. Tudo bem, eu moro na Grande Osasco, esse é o alimento típico daqui, mas acho que na maior parte do Brasil.
Leonardo: É até sagrado.
Nilda: É sagrado.
Orlando: Aqui no Rio de Janeiro é bastante comum, inclusive até por conta da influência de um monte de terreiros, e depois se tornou uma comida hypada, e vem se tornando cada vez mais uma comida hypada, no sentido de que se tornou uma comida meio in, meio cult comer acarajé.
Leonardo: Nesse ponto, eu entraria, de certa forma, em um conflito, pessoal, porque ao mesmo tempo eu vejo a questão do respeito, mas eu sempre fiquei pensando – isso com qualquer comida -, tipo, a comida X é X porque é feita com esses ingredientes, dessa forma, ali tudo, então, se você tira, não é mais isso, aí fica a discussão. Tipo aquela ideia assim, que para paulista isso vai ser meio óbvio, “Pô, você põe ketchup na pizza? Aí deixa de ser, não pode fazer de tal jeito”, tudo assim. Mas, para mim, eu sempre pensei, qualquer comida em geral, dane-se, a pessoa come do jeito que ela gostar mais. Não teria isso aí. Só que o problema do acarajé, principalmente da forma como você colocou, eu vejo que tem toda essa problemática religiosa, social, da questão que as religiões todas – chamando de religião – de matriz africana sofrem aqui. Realmente é algo que eu fico: “Pô, não pode mudar? Eu não posso fazer do jeito que eu quiser ali e tudo? Não posso comprar ali do lado?”, mas, ao mesmo tempo, tem todo esse maltrato que acaba tendo com o praticante.
Orlando: E uma coisa que eu falo: cara, se as pessoas querem fazer um acarajé vegano em casa, faz, não tem problema nenhum, bicho, é a sua vida, a sua comida. A questão toda é quando você o coloca no mundo como um produto e passa a competir em desigualdade – porque esse é um outro ponto, você compete de forma desigual – com as pessoas que estão ali se ferrando todo dia para garantir um pouco de sustento. Porque é aí que tem outro ponto, porque, quando você monta uma barraquinha cult, hype, para a venda de acarajés, ou começa a vendê-lo dentro de restaurantes caros, você está competindo de forma desigual, porque contra você não tem o racismo. Já começa por aí, entendeu? Porque contra você não tem todo o aparato de violência que é montado contra essas mulheres e contra os praticantes de religiões de matriz africana no geral. Então é meio violento demais pensar nisso, e aí, como essa coisa de… a relação com o orixá é um elemento fundamental do acarajé. Esse é (inint) [01:05:05] para ver do lado da religião: a relação fundamental com Iansã, com Oyá e com Xangô é fundamental. Você não precisa acreditar nisso para comer, mas as pessoas que têm a mão para vender têm que participar disso, isso tem que fazer parte da vida delas, tem que ser um elemento fundador da vida delas.
Leonardo: Você acha justo, então, que pelo menos o nome mudasse? Se a pessoa quer realmente vender um bolinho de feijão ali e tudo daquele jeito, pelo menos que não chame de acarajé, e ainda mais se for fazer alguma alteração?
Orlando: É, eu acho que sim, acho que poderia ser uma alternativa. Quer vender um acarajé vegano? Chama de outra coisa, um bolo de feijão vegano, um bolinho de feijão, ponto. Porque eu já vi, por exemplo, uma dessas coisas loucas, em uma dessas feiras – porque eu… é uma coisa que as pessoas acham contraditório, durante muito tempo da minha vida tentei adotar a dieta vegana. Eu raramente, fora do contexto religioso ou quando eu estou em uma aldeia indígena, consumo carne. Enfim, e participava muito dessas feiras veganas, (inint) [01:06:13]. Cara, tinha um pessoal vendendo em uma barraca vegana, todos ali brancos, paramentados como pessoas do santo – veja só -, simulando, e vendendo acarajé. Então são várias camadas de erro.
Leonardo: Aí a gente começa a ver até que o erro vai além só de comida nessa questão com relações de cultura. Não precisa ser só comida para errar dessa forma: a vestimenta, tudo aí também.
Nilda: Porque está tudo ligado, a gente é que, como o Orlando falou no começo, tenta separar tudo: a vestimenta é uma coisa, a comida é outra, trabalho é outra, e, nesse caso bem específico do acarajé, está tudo ligado. Não tem como desligar as coisas
Orlando: É, pois é, porque, por exemplo, se você for reparar, as quituteiras, a cor da saia delas diz muito sobre o orixá do dia; a roupa delas já diz muito. A você vai ver, vai ter sempre uma guia ali, vai ter sempre um santinho, sempre tem alguma coisa ali de proteção. A maneira como o acarajé é preparado segue toda uma liturgia, que não são coisas exclusivas do candomblé e da umbanda, gente. Você mesmo falou que na cultura judaica está repleto de situações como essa. E a maneira como ela vai para a rua, o que ela tem que fazer depois que vende, sabe? Tem um monte de coisas, os agradecimentos que ela tem que fazer. Então tem um monte de coisas que é um todo: a vida dela, o sustento dela, a aparência dela, o corpo dela emergem daquilo que a gente costuma isolar como uma prática religiosa. Na verdade, aquilo é a vida das pessoas. Eu digo isso porque é a minha vida, então tudo que eu faço, eu faço enquanto… é porque, quando eu falo isso, as pessoas acham que é uma coisa meio bitolada. Não é isso. Eu compreendo todos os aspectos da minha vida como desdobrados da minha relação com os orixás, da minha relação com o meu orixá de cabeça.
Leonardo: É, foi interessante ver isso aí dos alimentos e, assim, na verdade, a gente vê que tem muito mais coisas em si, mas eu acho legal o quanto isso se prende. Porque, na verdade, se prende a isso porque, no fundo, está unida mesmo a questão da religião, da crença ali, da comida em si. Na realidade, não está separado. Foi legal ver isso aí. Espero que tenhamos mais episódios para de repente até continuar na parte aí de umbanda e candomblé ou para outras religiões também. Como eu falei no início, comida está muito relacionada em qualquer cultura, qualquer religião vai ter essa relação. Então eu acho que a gente foi falando por alto de outras para situar bem o ouvinte, mas focamos nas de origem africana. Nilda, alguma consideração final?
Nilda: Só tenho para agradecer ao Orlando por ter aceitado o convite. Deu um ponto de trabalho para a gente marcar essa gravação, já que os deuses da internet do Leonardo não ajudam muito, mas eu queria agradecer, porque uma coisa é eu ler um livro, ler 50 sites e ver 300 textos, tentar falar sobre isso ou pelo menos escrever sobre isso; e aí eu faço uma pauta e o Orlando vem aqui e destrincha isso de uma maneira que eu nunca pensaria de ter feito, fala coisas que eu não teria como apreender ou mesmo pegar, justamente por não ter essa vivência. Então muito obrigada, Orlando, por ter aceitado vir aqui falar toda a sua posição, que você aprendeu, que você sabe.
Orlando: Eu que agradeço o convite e já me deixo disponível para voltar a falar sobre, por exemplo, cosmologias ameríndias.
Leonardo: Sim, vamos, com certeza.
Orlando: Porque, para quem não me conhece, é a minha especialidade. Eu tenho doutorado nesse assunto, literalmente. E eu só queria deixar um recadinho, porque, assim, eu sei que às vezes eu pareço um pouco chato tanto no Twitter tanto no Benzina, tanto um pouco aqui, quando eu insisto contra termos como religião, crença e eu falo que são expressões do racismo. Muitas vezes as pessoas se incomodam muito com isso, e, de fato, a função é exatamente essa mesmo, gerar incômodo, pois, sei lá, eu sou do punk, então a vida é produzir incômodo. A gente em que produzir incômodo, mas são incômodos produtivos, eu acho, porque a gente parar e ver o quanto do nosso vocabulário carrega consigo toda uma violência, todo um etnocentrismo, todo um racismo, e começar a pensar em alternativas é uma forma, pelo menos da maneira como eu enxergo, de produzir um mundo mais… eu não gosto da palavra justo, mas um mundo mais adequado para que as nossas diferenças possam florir, para que as nossas diferenças possam existir de uma forma não violenta, para que elas possam coexistir, e é isso. E escutem a gente lá no Benzina.
Leonardo: Ótimo. Está o link aí no post. Muito obrigado mesmo, e quem sabe até fazer até também fazer um episódio voltado para essa questão dos termos. Isso é interessante, porque realmente é difícil largar se o termo muitas vezes que você não sabe qual outra palavra definiria ou coisa assim por falta de conhecimento mesmo e por não pensar nesse sentido do quão isso pode ser preconceito ali, o quão danoso pode ser. Então quem sabe até também um episódio falando mais nisso, aprofundando. Seria interessante.
Orlando: Só chamar.
[Trilha sonora]
[01:13:06]
(FIM)