Papo Lendário 209 - Trilogia de Antologias Mitografias

Papo Lendário #209 – Trilogia de Antologias Mitografias

Nesse episódio do Papo Lendário, Leonardo Mitocôndria, Nilda Aclarinquë e Andriolli Costa conversam sobre as três Antologias Mitografias.

Conheça um pouco sobre cada conto e edição.

Esse episódio foi realizado em respeito a todos os autores das três obras. Agradecemos demais a todos os revisores, autores, e capista que participaram das três antologias. E também aos leitores e todos os que publicaram algum review ou critica.

Esse Papo Lendário possui SPOILER das três antologias

– Esse episódio possui transcrição, veja mais abaixo.

— LINKS —

Compre o Volume 1: Mitos Modernos

Baixe o Volume 2: Mitos de Origem

Baixe o Volume 3: Mitos de Trindade

Colecionador de Sacis

— EQUIPE —

Pauta, edição: Leonardo Mitôcondria
Locução da abertura: Ira Croft
Host: Leonardo Mitôcondria
Participante: Nilda Alcarinquë
Convidado: Andriolli Costa

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— Agradecimentos aos Apoiadores —

Adriano Gomes Carreira
Alan Franco
Alexandre Iombriller Chagas
Aline Aparecida Matias
Ana Lúcia Merege Correia
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Clecius Alexandre Duran
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Edmilson Zeferino da Silva
Everson
Gabriele Tschá
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José Eduardo de Oliveira Silva
Leila Pereira Minetto
Leonardo Rocha da Silva
Leticia Passos Affini
Lindonil Rodrigues dos Reis
Mateus Seenem Tavares
Mayra
Nilda Alcarinquë
Rafa Mello
Talita Kelly Martinez

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— Transcrição realizada por Amanda Barreiro (@manda_barreiro)

[00:00:00]

[Vinheta de abertura]:

Você está ouvindo Papo Lendário, o podcast de mitologias do projeto Mitografias. Quer conhecer sobre mitos, lendas, folclore e muito mais? Acesse: mitografias.com.br.

[Trilha sonora]

Leonardo: Muito bem, ouvintes. No ano passado, a gente fechou a trilogia de antologias do Mitografias sobre mitologia. Como era o terceiro aí para fechar, então a gente fez com o tema de Trindades, e, como fechou esse ciclo aí de antologias, e foi legal para caramba fazer isso aí – deu um puta trabalho, mas foi legal, valeu muito a pena -, e eu acho legal agora, para o ouvinte, a gente conversar sobre essas três antologias. Estamos aqui hoje eu e o Andriolli, que a gente dirigiu todas as antologias, fez a revisão, fez toda ali a parte de organização, e estamos também com a Nilda, da equipe, que leu as antologias. Então é legal ter uma visão de alguém como leitora.

Nilda: Olá, povo.

Andriolli: E aí, pessoal, prazer estar aqui de novo, e encerrando, que nem o Leo falou. Não significa que não possa ter alguma coisa no futuro, mas, pelo menos nesse formato, a gente chegou em um ponto bem bacana e é legal fazer esse fechamento, não é, Leo?

Leonardo: Eu pensei nisso fazendo como respeito tanto aos autores como também com os leitores. Obviamente, esse episódio vai estar com spoilers aí dos três números, então já fica avisado aí. O volume um, Mitos Modernos, tem na editora Penumbra, você pode comprar lá pelo site, vai ter o link no post. Os outros números, o dois, de Mitos de Origem, e o três, Mitos de Trindade, têm o link aí para você baixar de forma gratuita, por enquanto, porque quem sabe aí no futuro…

Andriolli: Deixa eu fazer uma puxada aqui antes de a gente seguir. Me diga aí, olha, eu sei que para o pai é difícil, mas qual é o seu filho favorito aí entre os três?

Nilda: Nossa, é aquela pergunta difícil, hein?

Leonardo: Olha, não querendo deixar os outros dois de lado, não vou falar que tenho um favorito, mas gosto muito do primeiro, por ter sido o primeiro, então é o primogênito. E ele é o que dá para pegar no colo, por enquanto.

Andriolli: Sim. Uma pena o pessoal aí que não aproveitou de fazer o download na época, agora só comprando. Para mim também, cara. O primeiro é o mais aberto, se você for pensar, da temática. Ele não tem uma temporalidade certa, o pessoal mandou ali contos que se passam em vários momentos muito distintos, então ele é talvez o mais plural, e, por isso, muita gente pode ter achado até que era o menos focado. Mas, para mim, foi o meu favorito, porque a gente conseguiu mostrar que dava para fazer, emplacou aí um prêmio, depois a editora. Pô, foi demais, cara.

Leonardo: E eu vi como pegou o pessoal de surpresa quando a gente começou a anunciar, tanto que a gente deu continuidade por causa desse sucesso aí que teve. A gente conseguiu prêmio, lançou pela Penumbra e tudo, então a gente viu que valia a pena ter continuações. Mas, realmente, então esse boom que teve do Mitos Modernos, acho que foi legal. Me surpreendeu, isso comparando com os outros, mas acho que isso é uma coisa muito pessoal minha, por eu já estar inserido muito nessa temática de mitologia, que eu, ao ver a opinião das pessoas, mesmo antes de a gente lançar o terceiro, mas quando a gente já tinha lançado o tema em si, muita gente achou um pouco complicado. Parece que a dificuldade foi aumentando com o dois, aí aumentou mais com o três.

Andriolli: Foi.

Leonardo: E, de certa forma, é legal ir aumentando o nível, mas eu não esperava tanto o pessoal achar o de Mitos Modernos talvez o mais fácil de pensar em alguma narrativa. Mas legal ver dessa forma, que, para mim… não sei.

Andriolli: No Mitos Modernos, como ele tinha essa proposta, só: “Mande um conte trazendo um mito para um outro tempo que não o tempo mítico, um tempo mais contemporâneo”, então muita gente até tinha a sua história já pronta, mandaram ali nos primeiros dias até para a gente. E nos outros puxou mais, então aí veio o Mitos de Origem, que estava contando sobre a origem do mundo, a origem das coisas, a origem da técnica, a origem de povos. O pessoal teve que dar uma puxada. E, no Mitos de Trindade, como escapar dos clássicos? Foi até difícil.

Leonardo: Sim, sim.

Andriolli: Não vou nem dizer que a trindade cristã foi o grande empecilho, mas para a gente, até na seleção, foi: será que a gente precisa de tantos contos assim sobre parcas, sobre nornas? O pessoal foi muito nisso também, então acabou sendo essa a dificuldade. Mas duas experiências para mim que me marcaram muito: eu levei uma tiragem minúscula de exemplares – minúscula mesmo, eram cinco – para a FLIP, lá em Paraty, para a Feira Literária Internacional de Paraty, cinco exemplares da Antologia Mitografias Volume Um antes de sair pela Penumbra, e eu só deixei ali para marcar a minha presença. E, quando eu terminei a minha apresentação lá na Casa Fantástica, eu vi gente saindo correndo para comprar o livro, e vendeu tudo. E eu fiquei pensando: “Caramba, se tivesse aqui mais, como é que teria sido isso?”, e aí eu já tive aquele gostinho superbacana de quando a gente foi fazer realmente o lançamento no fim do ano, lá em São Paulo. A gente ficou umas cinco horas lá conversando com o pessoal, autografando, e toda hora vinha gente. Nossa, aquilo foi muito especial.

Leonardo: Sim, sim, é verdade. Não pode esquecer a data aí do lançamento, foi muito legal, porque a gente ainda conseguiu fazer o lançamento… foi no dia oito de dezembro, o lançamento físico, e, ao mesmo tempo, a gente estava lançando, no mesmo dia, o volume dois…

Andriolli: Sim.

Leonardo: … em versão virtual.

Nilda: Nós estamos muito sem referências ou estamos com referências muito dispersas e estamos precisando reconstruir essas referências, então a gente está tendo muitos filmes, muitas séries e tudo mais falando de mitos ou criando mitos novos, e eu acho que nisso que a antologia pegou, sabe? Quando chegou a primeira, ainda foi mais surpresa, porque são pequenos contos falando disso, desses mundos que muita gente está criando por aí também, mas através de livros enormes, videogames enormes, séries de três, cinco, dez temporadas, que seja. Então é uma coisa que está acontecendo. Aí de repente você pega um livro – como a gente fez – de contos, um livro brasileiro, um livro que o primeiro foi um pouco mais aberto, mas agora mesmo os outros dois, que você contaram um pouco, dificuldades um pouco maiores para conseguir ter esses contos, porque você já delimita um pouco mais: origem, trindade, e o que seja. Mas eu acho que mesmo assim eles são interessantes por isso, porque já estão direcionando uma coisa que estamos no espírito dessa época, a gente está precisando de novas referências ou reviver as referências antigas. Tanto que o fantasismo, a criação fantástica brasileira e mundial estão ficando em alta, porque a gente está precisando disso, e eu acho que os livros vieram bem em uma época que todo mundo estava querendo ler sobre isso. E aí a gente tem contos maravilhosos, contos razoáveis e contos que eu gosto e outras pessoas não. E aí a gente tem toda essa troca, mas porque tem vários estilos aqui dentro também de todos esses contos. E isso achei uma coisa interessante quando vocês fizeram, que vocês tentaram colocar não só mitos diferentes, mas estilos diferentes de escrita, e eu acho isso um cuidado muito bom que vocês tiveram ao fazer isso, porque isso agrada inclusive, porque senão fica todo mundo escrevendo no estilo épico. É interessante ter essas narrações diferentes, que foram colocadas, narrativas, mitos, nesse da trindade, tem um que faz uma mistura de tempos entre passado, presente e futuro e vários tempos diferentes. Você tem que ficar tentando entender o que está acontecendo ali. Isso é bom, eu achei muito bom como vocês tiveram esse cuidado. Eu acho que isso enriquece, e eu tenho certeza que muita gente vai partir desses livros para criar outras coisas. Vai virar uma referência no tipo de escrita, no tipo de coisa que pode ser feita.

Andriolli: Eu e o Leo fomos os organizadores das três; nas duas primeiras, tivemos o Lucas também; no terceiro, entrou a Isa na organização. Mas no segundo nós também acrescentamos a Jana Bianchi como mais um olhar na seleção de contos, e isso foi bem interessante, porque tem contos, por exemplo, que entraram e eu não gostava tanto, mas a gente trabalhou junto ali e tal, fazia parte ali do corpo do livro. E eu vi muita gente falando que aqueles eram contos favoritos delas. Selecionava assim: ah, qual é o conto que você mais gostou? Aí tal, tal e tal, e daqui a pouco vinha aquele lá. Eu falei: “Poxa vida”, então que bom que esteve ali, que bom que não é só o meu olhar, porque não é suficiente uma pessoa só. Não é o meu gosto, não é o meu padrão, é esse conjunto que a gente acabou formando, não é, Leo?

Leonardo: Isso eu achei muito legal. Quando eu ouço as críticas… até vamos ver se, quando esse episódio sair, já vai ter críticas aí do terceiro, estou curioso para ver; mas, do primeiro e do segundo, que saíram, já fizeram podcasts falando, foi interessante ver isso aí, de as pessoas gostarem muito de uns e outros gostarem muito de outros, sabe? Está bem variado. Eu falei: “Nossa, que legal”. Não teve nenhum que todo mundo odiou, todo mundo achou ruim. Não, sempre tem alguém ali que gostou bastante de tal conto. Foi muito legal. Antes de entrar aqui nos contos em si, até isso vale para as três antologias, o que eu vou falar, que uma coisa que foi uma das coisas que eu mais gostei foi de ter me aproximado de alguns autores que tem. Alguns eu já conhecia por ouvir em alguns podcasts ou seguir nas redes sociais, mas era uma coisa um tanto quanto distante. Depois que a pessoa escreveu, que a gente entrou em contato e aí acabou indo ao evento, ou então em outros eventos, eu acabava encontrando, me aproximei muito desses autores. Então isso para mim foi muito legal, uma coisa pessoal.

Andriolli: E isso é legal, a gente foi agregando gente, então. No nosso lançamento mesmo lá vieram vários autores de outros estados também: o Bruno Leandro veio do Rio de Janeiro, Paulo Teixeira veio da Bahia, eu acho. Muito legal. E todo mundo ficou feliz ali, todo mundo compartilhando aquele momento. Foi demais. E uma coisa que eu acho bem bacana também foi, da seleção, vendo gente que os nomes se repetiam, a pessoa tentava mandar de novo o conto. No primeiro ela mandou ali, não entrou; no segundo mandou, não entrou; no terceiro, de repente, pá, emplaca. Não é questão de o nosso livro é o padrão, não é isso, é que as pessoas estão continuando escrevendo suas histórias, elas estão melhorando como escritoras, e de repente elas chegam com uma puta história ali que tem tudo a ver com o nosso tema. Um exemplo, que eu até já falei para ele, é o Auryo Jotha. O Auryo chegou com um conto superlegal para o volume três e ele tinha tentado entrar nas outras duas e não deu. E, de repente, casou ali perfeitamente com uma história superdiferente.

Leonardo: Um que eu acho que também se encaixa nisso aí é o próprio Bruno Leandro. Ele participou da primeira e da terceira. Nos dois está legal, mas você vê a evolução dele do primeiro volume para o terceiro ali.

Andriolli: Muito.

Leonardo: Bom, então a gente já pode aí começar a falar dos contos em si, dos mitos que são tratados neles. No Mitos Modernos, então, a gente tem o primeiro conto, que é da Isa Próspero, que é Calada. No caso, se trata da sereia, e eu acho muito legal que ela trouxe a sereia grega, porque eu tenho uma… sei lá, algo pessoal nisso aí de que, quando fala de sereia, todo mundo imagina a mulher-peixe, mas nos gregos mais antigões mesmo elas eram mulheres-pássaro, com o corpo de pássaro e a cabeça humana, e é algo mais monstruoso, é algo mais nocivo. Eu achei bem legal o jeito que ela tratou, e essa é a sereia que todo mundo aí já conhece, o mito em si, e ela trata muito da questão também do canto da sereia. Ela pegou bem o estilão grego mesmo, bem o que é marcado na mitologia.

Andriolli: E esse conto também marcou uma estrutura para a gente, que foi: os melhores contos abrem e fecham a antologia. Aqueles que eram mais unanimidade entre nós, a gente acabava pensando: qual vai abrir e qual vai fechar? Que era para já dar uma expectativa para o público de como vai seguir o livro. Eu acho que isso é bem importante, por isso que eu gosto muito desse conto da Isa.

Nilda: É um conto sobre sereias, só que não é aquela coisa do navegante, uma coisa que talvez tente emular um Odisseu, que é onde todo mundo lembra que ela aparece, apesar de não aparecer só nisso. É uma investigação policial.

Andriolli: É um assassinato para ser desvendado, e isso prende você.

Nilda: É uma história policial ali, você não está esperando mitologia com história… mas por que não?

Andriolli: E foi o primeiro conto da Isa publicado, hein, gente? A Isa agora é essa potência aí da ficção brasileira.

Leonardo: Inclusive, foi o que a gente considerou um dos melhores, então a gente a colocou em primeiro, como a gente falou, nesse esquema que a gente faz, de o primeiro e o último serem os da unanimidade. No segundo volume, ela foi o que a gente considerou o melhor, que aí é o que se torna a capa e fica no final do livro. E, no terceiro, a gente a chamou para participar da equipe. Bom, vamos já para o próximo, que vamos ter vários aqui. O próximo é o do Bruno Leandro, que a gente tinha citado, que é o Mãe de Fogo. É uma personagem nacional que é baseada na Mãe de Ouro.

Andriolli: É, e, na verdade, existem as mães. Todas as coisas têm mãe, então a mãe do fogo é a Tatá-manha, que é um mito também que já foi trabalhado no século 20, no começo do século 20 ali pelos modernistas. Mas, além da Mãe do Fogo, temos um outro mito ali que a combate. Não era o Boitatá? Se não é o Boitatá, é um mito semelhante. Os dois mitos de fogo que estavam disputando ali, e aí por isso que o personagem ali do Bruno Leandro era um aprendiz de uma feiticeira, e essa feiticeira, na verdade, era um ser folclórico. Ele tenta resgatá-la, porque ela foi presa pela sua inimiga, e aí esse é o mote da história. Por isso que é uma história de muita aventura, tem os asseclas ali que tentam impedi-lo, ele luta, os derruba com os seus poderes mágicos e lâminas. É um classicão, uma coisa bacana. A gente pegou pelo clima da aventura mesmo.

Andriolli: São mais de 30, são 37, eu acho.

Leonardo: Caraca, são quase 40. Mas a gente vai lembrando aos poucos aí.

Andriolli: Próximo conto é o Coração Dedo-duro, do Romeu Martins. É um conto muito curtinho, que foi um dos primeiros que a gente recebeu e acabou ficando, porque a gente queria também trazer uma coisa do humor.

Nilda: Não é a primeira vez que eu vejo o mundo pós-morte ser tratado como uma burocracia, e nesse caso ficou muito legal, porque a burocracia também pegou a questão geográfica, tipo, essa aqui é minha jurisdição. Engraçado isso, tipo, porque eu já vi burocracias de outros tipos, tipo, chega no céu, tem que preencher papel, se vai passar ou não, sabe?

strong>Leonardo: O principal elemento mítico é o Anúbis, que ele que vai guiando o personagem principal. O Anúbis – a gente já falou bastante em vários episódios – é o deus que tem cabeça de chacal. Ele que é o que enfaixa, faz a múmia, prepara tudo, e ele que guia realmente as pessoas quando a pessoa morre, que aí até no conto é isso, ele vai explicando para o protagonista como que funciona isso aí, a questão de pesar o coração dele. Então ele que vai guiando.

Andriolli: E esse próximo aqui, gente, o Sinfonia da Saudade? Também foi um conto que fez muito sucesso, não é?

Nilda: Ai, chorei muito lendo. Gente, que escrita maravilhosa da Jana Bianchi nessa história, porque ela é muito sensível. Eu achei, pelo menos, muito sensível a construção. Muita gente pode achar que são estranhos esses elementos do Oriente Médio na nossa cultura, mas eles não são, porque o Brasil tem um contingente de libaneses, sírios, turcos aqui muito grande. Aquilo que acontece na história, de ele se encontrar, de o ser mítico se encontrar com um nordestino que está morando em um cortiço no centro de São Paulo, gente, isso é extremamente possível. Quem conhece São Paulo…

Andriolli: Muito metropolitano, não é?

Nilda:É, não, e no centro de São Paulo podem não estar morando todas as famílias, mas boa parte dos negócios dessa população, desses imigrantes turcos, libaneses e sírios está no centro de São Paulo. A 25 de Março, que é aquela rua que todo mundo vai fazer compra, aquilo ali surgiu por causa desses mercadores, por causa dessa população. E a história é muito legal. Aí ele vai, vai parar em uma outra região do país com outra cultura, com outro hábito. E escrito de uma maneira tão linda.

Andriolli: O que acontece nesse conto, para quem não leu, é que temos um marid, que é como se fosse um gênio. Cada vez que ele usa o seu poder para conceder o desejo para alguém, ele tem que abrir mão de parte das suas lembranças, então ele acabou vindo para o Brasil, é uma migração. Cada vez que ele vai usando o seu poder, então, ele vai esquecendo da sua terra natal, da sua família, das pessoas com quem ele convivia, que ele gostava. Então já tem um dilema ali muito forte, muito bonito, que são essas coisas de, quando a gente não quer perder aquilo que se passou, mas também tem uma coisa ali na sua frente que você precisa fazer. Então é uma história muito tocante mesmo. Eu não gosto tanto quando ele vai para o Nordeste, de verdade, quando ele vai realizar o desejo e muda de região e vai lá para o sertão para levar o cara de volta para a sua terra. Ali o conto me perde um pouco, mas toda aquela relação quando está em São Paulo mesmo eu acho impecável.

Leonardo: Sim. Eu, que moro aqui em São Paulo, fui ficando muito assim… sabe? Você percebe o local mesmo em si. Eu achei muito legal ali. Como também outro conto que a gente vai falar aí mais para a frente, é bem emocionante. Você vê que o foco dela é ter aquela coisa… fazer o leitor chorar. E, em sequência, a gente tem o conto Sem Cabeça, que é do Andriolli. E aí, Andriolli?

Andriolli: Muito bacana para eu fazer, porque as pessoas lembram dele até hoje, elas falam do Sem Cabeça, falam do Inácio, que foi o meu protagonista. E, por mais que tenha tido uma crítica que é uma crítica curiosa, falando assim: “Ah, o personagem sabe tudo, não sei o que, que saco isso”, gente, é a história que eu contei. O que eu posso fazer? Os elementos para mim funcionavam daquele jeito, então ali foi o melhor que eu pude oferecer ali e eu curti demais. Foi o meu primeiro conto publicado em um livro, e depois virou físico, e é um dos que eu mais gosto até hoje, com certeza. Sem Cabeça também é uma história de investigação, mas, no caso, uma investigação rural. Aconteceu a morte de um padre e de algumas outras pessoas em uma cidade do interior a ver com fogo, a ver com incêndio, então um jesuíta acaba indo lá para investigar, e esse cara ali não é só aquilo que todo mundo acha. Eu gostei demais de ter feito.

Nilda: Eu achei que você conseguiu trabalhar bem aquilo que você já falou em outros podcasts e tudo mais, que é a questão da mula sem cabeça, a questão da opressão, como esse é um personagem que uma maldição recai só sobre a mulher. Tem isso. Ah, o seu personagem é meio que um sabe-tudo? Mas deu a entender, pelo menos eu entendi meio que… sabe quando um Sherlock Holmes ou um Poirot, sabe?

Andriolli: Sim.

Nilda: Aqueles personagens detetives que vão, que olham um pouco, vão olhando e vão sacando as coisas que os outros não sacam? Eu o entendi meio como isso.

Andriolli: É a ideia sim.

Nilda: E não é a primeira vez que isso acontece. Por exemplo, no Nome da Rosa também aparece um monge lá que parece um Sherlock Holmes e realmente meio que destoa de tudo que está acontecendo lá. Sempre destoa, mas é um tipo de personagem que é um personagem que sempre destoa, é um personagem que muita gente não gosta, justamente por ser desse tipo, ser muito sabichão. É um personagem que, na vida real, provavelmente muita gente não ia gostar da pessoa.

Andriolli: E detalhe: inspirado em um chefe meu, que realmente acontece isso, tem muita gente que não gosta.

Leonardo: Eu vi que é para vender essa imagem mesmo. Então, comprando essa ideia de ele ser um cara sabe-tudo ali, eu acho que vale muito a pena essa ideia.

Andriolli: A gente não sabe muito sobre folclore, o público em geral. Então quem sabe, vai percebendo coisas que os outros não percebem. Então também foi um pouco dessa ideia.

Leonardo: Dos três contos seus, esse é o que eu gosto mais.

Andriolli: Esse eu gostei demais também.

Leonardo: E eu gosto principalmente por causa do personagem. Você vê que o conto gira em torno do personagem ali. Bom, e o próximo que a gente tem é do Paulo Teixeira, que é o Ponte para Acreditar. Tem muitos elementos ali míticos e místicos em si e ele se passa no futuro – isso eu achei interessante, que todos esses aí eram mitos modernos, então era para tirar do tempo mítico em si, e, mesmo que não seja o foco tanto do conto, você percebe que ele é um futuro, ele é no nosso futuro. Foi interessante ali, mas o foco é a questão dos personagens serem bruxas e trolls, que são os principais elementos. E aí você vê, quando você percebe que, na história, está se tratando de um troll…

Andriolli: Um troll bebê, criança.

Leonardo: … você entende muito ali também o título, que é a ideia do troll que fica na ponte. Isso é legal, a brincadeira que tem também aí com o título.

Nilda: Engraçado isso, porque muita gente tem a imagem do troll do Senhor dos Anéis, o ser grande, lutador, que vira pedra quando está em contato com sol, mas muita gente não sabe essa ligação dos trolls com as pontes, que é um elemento muito comum na Europa, de que você tem que pagar para o troll para passar a ponte. Quando eu olhei assim, eu falei: “Ponte…” e tal, mas a hora que eu vi troll… ah, troll tem tudo a ver com ponte, a gente é que não está acostumado com isso.

Andriolli: É, e é o que é mais rico do mito do troll: proteger algum lugar, tentar defender ali o seu território, cobrar o pedágio de quem passa.

Leonardo: Bom, e o próximo é o do Rahmati. Ele também participou nas antologias também ajudando na parte da revisão. E no conto dele, que é o E Tudo Vai Ficar Pior, é uma salada de personagens de divindades. Não dá para ficar citando o que ele usou em si, porque tem muita coisa. Se não me engano, esse aí, na verdade, é de um mundo já criado por ele. Acho que, se não me engano, ele tem outras histórias que se passam nesse mesmo mundo com as divindades em si, então faz uma ligação. Apesar de que é fechada essa história.

Andriolli: Teve até mais ou menos meia página inteira que era pura referência do romance dele, e aí eu até, enquanto editor, sugeri: “Cara, corta isso aqui, que isso aqui não faz sentido”. Ele falou: “Não, mas é importante por causa dos leitores do meu livro, não sei o que”, acabou ficando. Paciência. Mas é uma história de aventura. Quem consegue embarcar ali, vai se divertir. Tem tiro, tem feitiço, é uma piração total.

Leonardo: Sim, sim. É, boa definição.

Nilda: É um pouco daquilo que muita gente tem trabalhado, que é desses mitos, lendas e tudo existirem, estarem aí e, dependendo de onde você está, de com quem você conversa, você interage com um ou com outro, ou, dependendo, todos eles começam a interagir entre si. É uma linha de trabalhar com mitos que Neil Gaiman já começou… trabalha, pelo menos, acho que o dele é dos mais famosos, mas essa mistura de seres.

Leonardo: O próximo aqui, o Rodka, ele escreveu No Olho do Furacão, e é sobre o saci.

Andriolli: Mais um continho curto, bem curtinho, acho que tem uma página e meia no máximo.

Leonardo: Esse, se bobear, se não o mais curto, deve ser um dos mais. Saci vocês já conhecem também, não é? A gente já falou várias vezes aí, e aí a gente está aí com um especialista de saci.

Andriolli: Eu acho legal esse conto, porque ele é um Bladerunner folk. O investigador parece muito, inclusive, o personagem do Harrison Ford, que ele está lá no seu bar com cores neons piscando, investigando o assassinato de Tupã, e a história toda vai se desenrolando ele conversando com o Saci e tentando fazer com que ele confessasse. E é curtinho, é divertido, acho que tinha que entrar para mostrar essa diversidade de histórias que a gente tem para contar sobre folclore.

Leonardo: E foi legal o conto, mais um conto que tratasse de elementos nacionais, além do seu, Andriolli, porque você a gente já sabia que ia mandar, você estava ali, organizador, então a gente já sabia que ia ter algo daqui do folclore, mas foi legal ter outra pessoa mandando também conto com esses elementos.

Andriolli: Sim. Nesse fui eu, Bruno e ele, e o Cassiano. E aí a gente acabou até aumentando, nas outras antologias tem ali quatro contos com folclore. Acabei sendo um puxador ali das pessoas que queriam escrever histórias assim.

Leonardo: É, com os outros eu já estava tranquilo quanto a isso, mas eu admito, no primeiro eu estava com um certo receio de virem pouquíssimas coisas, de, de repente, ficar só o seu.

Nilda: O elemento principal dessa história é o saci, mas ele mistura outros elementos. Estava relembrando aqui, tem Tupã, tem Jaci, ele pega animais nacionais meio que como referência. São esses elementos vivendo aqui e não é necessariamente uma convivência pacífica. O saci não é exatamente flor que se cheire, os outros também não, estão convivendo no mundo urbano, que não é mais o mundo original, mas estão aqui. Eu achei bem interessante isso, se adaptando à vida na cidade e aí esses mitos se adaptando, todos.

Andriolli: E aí vamos para o conto do nosso Leonardo Tremeschin. E aí, Leo? Foi seu primeiro conto também, não é? Como é que foi?

Leonardo: Sim, sim. Esse aí, o Esculturas Perfeitas, foi o primeiro conto que eu fiz, então foi muito legal de fazer como exercício mesmo de escrever, aí vocês revisavam, eu: “Ah, beleza, então é assim”. Acho que todo autor aí que estiver ouvindo, que já escreveu algumas coisas, deve lembrar: nos primeiros contos ou a primeira obra que vocês fizer, você vai errar em coisas que você nem imaginava que aquilo lá seria um erro mesmo, sabe? Que você achava realmente que estaria acertando. Aí, se alguém de fora vem e aponta, aí você: “Ah, verdade”, aí cai a ficha. E esse conto serviu muito para isso, para ir escrevendo e reescrevendo. E, no final, eu lembro que nesse conto eu não estava nem aí mais para a questão mítica dele em si; estava mais me chamando a atenção essa questão de eu ter escrito e reescrito pelas revisões que você e o Lucas, e até o Rahmati, me ajudaram, e aí de ele ir melhorando. Então foi bem legal.

Andriolli: E eu fiquei superfeliz quando uma menina comentou falando que gostou muito do seu conto porque ele tinha um clima gótico que ela curtia, e acho que não era nem a sua ideia.

Leonardo: Isso também acho que é uma coisa que talvez algumas pessoas possam passar, assim, tipo: não era minha ideia; quando eu vi aquilo lá, “Nossa, não pensei nisso”. Mas, comparado com muitas coisas que eu já li, eu acho que faz sentido eu ter posto um pouco disso mesmo que sem querer, porque minha ideia é assim: tipo, beleza, vou escrever. Vou escrever sobre o quê? Fiquei pensando. Aí, na época, eu acho que por causa do outro podcast que eu fiz lá, estava muito com o mito da Medusa na cabeça. Então vou falar dela. Como mito, como narrativa, eu gosto bastante que ele tem bastantes elementos ali e tudo, então estava me chamando a atenção, então vou falar sobre ela. Mas, sei lá, só isso, muito pouco, mas Medusa se relaciona com estátua. Vamos pegar um mito mais desconhecido. Porque, pô, eu fiquei (mal) [00:30:10], assim, vou pegar a Medusa? Legal, mas é muito famosão, então vou querer juntar também com outro mito mais desconhecido, e aí eu juntei com o do Pigmaleão. Então a ideia desse conto é isso: traz para o mundo atual, então não é uma recontagem dos mitos em si, mas ele pega elementos e personagens antigos e traz para cá, fica moderno, mas aí eu misturo. A ideia é muito isso, é misturar o mito da Medusa, que, na verdade, até você descobre no começo pelos nomes dos personagens, mas ela aparece mesmo no final, e o mito do Pigmaleão, que é a estátua que ganha vida.

Andriolli: Aí acontece uma coisa que é o nosso mal nas antologias, que é saber até que ponto a gente está entregando muito obviamente uma referência ou não. Lembra quando você colocou a personagem da velha, que eu falei: “O que é isso aqui?”, você falou: “É Afrodite”, eu acho, não é?

Leonardo: Sim, sim, sim. Ao mesmo tempo que os personagens principais têm o nome original, então fica na cara, o dela eu fui para o extremo oposto.

Andriolli: É para quem pega mesmo, não é?

Nilda: Eu vou dizer que essa história me pegou. Eu identifiquei: “Ah, Pigmaleão”, “Ah, Perseu”, “Ah, deve ter Medusa, deve ter alguma coisa grega aqui”, mas a história foi para um… o rumo da história me surpreendeu, sabe? O que eles estavam fazendo, quem estava fazendo o que, foi me surpreendendo o rumo que ela tomou. A primeira vez que eu li, eu falei: “Mas o que está acontecendo? Mas espera aí, o que o Pigmaleão está vendo com a Medusa? O que essa pessoa aqui está falando?”, então demorou um pouco para eu… quando foi chegando o final, eu falei: “Ah, é isso que está acontecendo?”, sabe? Porque eu não peguei logo de cara qual era a interação, qual era a relação dessas pessoas aí.

Leonardo: E aí a gente tem o próximo aí, que é o da Ana Lúcia Merege, que esse também é um conto para chorar, também emociona.

Andriolli: Esse eu gostei demais. Até falei para a Ana na minha edição, eu falei: “Ana, o seu conto é todo emocionante, não sei o que, mas você termina com uma piadinha”. É a história de um casal que quer muito engravidar e o médico fala que não tem jeito, nem por fertilização in vitro, e eles acabam recorrendo às deusas-pássaro, que são as (kotirat) [00:32:25]. No final, a mulher realmente engravida e aí termina com uma piadinha, tipo, “Ah, e o médico, doutor fulano, não vai acreditar, hein?”, aí eu: “Porra…”. Aí a Ana insistiu, falou: “Não, faz parte da história, o humor”, beleza.

Leonardo: Mas o conto em geral é muito legal e, como eu falei, é bem emocionante, e eu gostei de ela ter ido em uma coisa que… quando ela mandou, eu: “O que é isso?”, a gente teve que ir pesquisar o que eram as (kotirats) [00:32:53], que nem a gente sabia direito. No caso, falar aí para o ouvinte, como ele falou, estão relacionadas, são deusas-pássaro relacionadas a casamento e a parto, chamadas de filhas da Estrela da Manhã. Elas têm toda uma história em si delas, mas são bem desconhecidas, você encontra pouquíssimas coisas. E eu lembro uma vez que eu encontrei a Ana, eu fui conversando com ela, falei: “Nossa, mas você foi longe”, ela falou: “É, realmente, não se encontra quase nada disso aí”.

Andriolli:E a Ana é uma grande pesquisadora desses mitos persas assim, então, quem gostou, ela tem muito material disso na própria literatura, nos romances que ela lança. E esse aqui, gente, A Proclamadora, da Alessandra Barcelar. Esse conto é demais, porque ele é inspirado na musa Clio, então como é uma musa da linguagem, ele é um conto verborrágico escrito em um parágrafo só e superconfuso, trazendo um monte de bagunça de linguagem ali propositalmente, até por isso que a gente resolveu trazer. Muita gente não gosta.

Leonardo: Para a gente, passou no nosso crivo, então… eu lembro que o Lucas adorou isso aí. Ele passou pelo nosso crivo, então ok, mas, dos leitores que eu conversei, eu vejo que ele foi oito ou 80. Eu encontrei muita gente que falou: “Meu, é confuso de ler”, mas eu já vi muita gente que gostou desse estilo diferente que ele tem.

Andriolli: Sim.

Leonardo: Então eu acho que ele deu certo nesse sentido, porque ele é proposital para ser assim.

Andriolli: É, e se a gente é uma editora, entre aspas, independente, não é aqui que a gente vai barrar um texto por questão de estrutura.

Leonardo: Exato.

Andriolli: O lugar de experimentar é aqui mesmo, então acho que tinha tudo a ver ali com o que a gente estava fazendo.

Nilda: Eu estranhei muito para ler esse texto, mas eu não vou dizer que eu não gostei. Ele é instigante, sabe? Você tem que sair do que você está acostumado, tem que sair da estrutura começo, meio e fim, você tem que parar e: “Ok, o que está acontecendo? Vamos parar, vamos ler de novo”. Tem que ter brio para ler, você tem que parar e ler para ir entendendo o que está acontecendo. E isso recai naquilo que eu falei logo no começo, que eu gostei disso nas antologias: vocês procuraram estilos diferentes, e isso é um estilo diferente. E a gente tem que incentivar também as pessoas a lerem coisas diferentes, porque senão fica todo mundo fazendo as mesmas coisas sempre. Não dá.

Andriolli: Agora é todo mundo fazer a sua versão de Martin – aí não dá, gente.

Leonardo: E o seguinte conto foi O Gerente de Sinistros, que é o conto do Lucas, e esse também é uma mistura de personagens e divindades, então, igual ao do Rahmati, não dá para ficar citando tudo que tem. É meio que de investigação também, e eu gosto muito do título do conto.

Andriolli:É bom.

Leonardo: E o Lucas criou esse conto a partir desse título. Eu lembro a história, que ele estava no trampo dele, e aí ele viu essa função, gerente de sinistro, que é relacionado eu acho que a seguro de carro.

Andriolli: Isso.

Leonardo: Alguma coisa assim.

Nilda: Seguros.

Leonardo: E aí ele pegou essa palavra, esse termo e quis fazer o conto em cima disso.

Andriolli: E é um conto com deuses e seres mitológicos tricksters. A grande moral é que são todos enganadores, e aí o que vai acontecer quando você junta todos os enganadores?

Nilda: Porque o sinistro é: você faz um seguro e sinistro é quando acontece um problema e você tem que pagar o seguro. E, normalmente, tem pessoas que gerenciam isso, é em cima disso que você faz o cálculo se um carro paga mais ou menos seguro, então em cima desses sinistros, das coisas que aconteceram. E a maior parte das seguradoras têm alguém para investigar casos que parecem muito estranhos; agora, você imagina investigar trickster. Vamos investigar trickster com algum tipo de seguro sobrenatural aqui.

Andriolli: É, e uma curiosidade da nossa edição: eu lembro que tinha um trecho desse conto do Lucas que ele coloca que o personagem olha para uma deusa e aí ele fala assim: “Ah, pelo rosto e pela roupa é a deusa tal”, eu falei: “Não, porra, isso não”, aí eu coloquei na sugestão assim: “(Inint) [00:37:08], você não consegue reconhecer um deus pela cara”. Principalmente pelas descrições ali, era uma deusa mulher meio que genérica, cabelo comprido e roupa branca, sei lá, e aí eu falei: “Se ela é uma deusa, a presença dela comunica direto com o ser, então ele olha para ela e ela sabe (inint) [00:37:29]”. E eu acho que isso é uma das coisas legais, porque a gente tem esse background de mitologia mesmo, e levar isso para a literatura, para a literatura entender como é essa presença do deus. A gente muda o nosso conto para poder se encaixar nisso. Foi uma preocupação bem bacana.

Leonardo: Bom, o próximo e penúltimo conto foi do Saulo Moraes, que é Como Vencer um Minotauro. Esse conto é interessante que é bem diferente, meio ousado até, e é de comédia.

Andriolli: Essa é a antologia que mais tem conto de humor, não é, Leo?

Leonardo: Sim. As outras, se tiverem, é um ou outro. Essa tem pelo menos dois ali que são bem focados nisso aí, de humor, e um deles é esse do Minotauro. O personagem principal é o Minotauro, mas é muito voltado na narrativa mesmo do Minotauro com os demais personagens, o Teseu e tudo, estão lá. E é legal que… eu gostei bastante, mas é uma ideia ridícula, mas não de forma ruim, mas, por ser comédia, eu acho que encaixa perfeitamente.

Andriolli: É uma disputa. Já que eles cansaram de se perseguir no labirinto, aí o que acontece é que Teseu e o Minotauro têm que disputar um concurso de stand-up. E aí quem contar as melhores piadas ganha, basicamente isso.

Nilda: É uma ideia ridícula, mas, se você pensar bem – não vou dizer em termos de stand-up, porque stand-up é essa coisa de contar piada -, existem várias histórias na mitologia que são quando os personagens têm que fazer tipo esses desafios: desafio de melhor canção, desafio de repente, atualmente, desafio de rap. Tem muito isso na nossa cultura, ou no mito ou que a gente tenha cultura popular nisso, de você ficar fazendo esses desafios. Então um desafio de stand-up é só mais uma variante desses desafios para você vencer o deus, o seu, o que quer que seja. Eu acho de desafio, porque, quando eu era criança, a gente aprendia que uma forma de música muito popular no Brasil, caipira, era o desafio, que era o cantor falando uma coisa desafiando para o outro, e normalmente ele tinha que rebaixar o outro, mas não podia xingar. Tinha toda uma regra. Então o cara estava falando, ficava falando da canção do cara, da roupa do cara, do jeito que ele se apresentou, da história dele, e, se vocês procurarem por aí desafios de cantores sertanejos, é bem isso, eles dão um toque na viola e falam uma coisa. Aí o outro dá outro toque na viola e fala outra coisa, e vão indo. Ou um vence e o outro não vence ou, no final, todo mundo aperta as mãos e chega a um acordo.

Leonardo: E aí, para finalizar, que aí foi o que deu elemento para a capa dessa antologia, o Intermitências, do Michel Peres.

Andriolli: Esse conto é demais. Eu adorei. Quando eu li, eu fiquei imerso naquilo tentando saber para onde ia, que a história é uma história supermoderna. Acho que é uma menina, não é? Ela é a única player de um rpg antigo online, de um mmo abandonado que ninguém mais joga, tipo um Ultima Online da vida. Então ela fica perambulando pelo mundo. No tempo livre dela, ela fica lá jogando sozinha, porque é assim que ela curte. E aí, em algum momento, ela encontra um outro jogador, e esse outro jogador faz coisas que ela não consegue fazer, e esse outro jogador é uma divindade personificada dentro do jogo. Isso é demais.

Leonardo: Por isso que eu acho que esse aí pegou bem o conceito que a gente queria, da questão moderna. Todos encaixaram bem assim e tudo, mas esse é o que mostra bem, por isso que a gente fez questão também de deixar no final para ter a capa e tudo, para representar bem essa ideia. No caso, a deusa que é personificada é a Ixtab e é a deusa maia dos enforcados. Então, ouvinte, se você tiver aí o livro, quando você olhar a capa, você vai a representar dessa deusa bem no centro aqui, tem a árvore e ela, que está no centro entre os elementos.

Nilda: E esse foi o conto que eu tive o maior choque de geração, porque eu não jogo videogames, então eu não conseguia entender o que estava acontecendo. Eu precisei pedir explicação: “Ah, isso é videogame referente a isso”, eu: “Gente, mas eu não jogo videogame, o que está acontecendo nessa porcaria?”, sabe? Quando eu vi que era, alguém me explicou, eu li de novo, aí eu fui começar a entender a estrutura, porque eu não jogo isso. Então o que está acontecendo? Sabe? Não fazia sentido a ordem das coisas para mim, mas aí é aquela coisa, é um choque de geração, um choque de pessoa que não costuma jogar, que não tem essa coisa – pega e não faz sentido. Para quem joga, provavelmente isso aqui é maravilhoso.

Andriolli: E uma coisa bem interessante é que os leitores de hoje estão acostumados com contos que são muito audiovisuais. Você olha assim e pensa: “Nossa, isso aqui é uma cena de cinema”, e o final desse conto não é um… ele é uma coisa que só pode acontecer na literatura, porque o que acontece ali, o fim daquela personagem, você fala assim… eu não consegui visualizar isso. Mas é demais, é meio parecido com Aniquilação, aquele livro lá…

Leonardo: Do Jeff VanderMeer. Nossa, foi muito legal você ter citado isso aí, porque eu assisti ao filme – e olha que eu imagino que do filme deve ter se perdido muito ali do livro; no livro, você conseguiria descrever de uma forma mais impactante -, eu fui lembrando um pouco dos elementos aí desse conto quando eu assisti. Foi legal você ter falado. Então a minha comparação não estava tão longe, não.

Andriolli: Sim, sim. É bem isso, com certeza. Tem muito a ver. E recomendo, gente, esse conto é um primor.

[Trilha sonora]

Leonardo: Bom, e aí a gente chega à segunda antologia, na qual a gente resolveu falar de mitos de origem, e aí, no caso, a gente estava com um certo receio… eu pelo menos ali estava com receio de “Agora a gente ficou com mitos de origem, legal, um tema… acho interessante, mas e se o pessoal só mandar, tipo, cosmogonia, só mandar mitos da origem do universo?”. Eu fiquei com um certo receio disso aí na época. Teve alguns baseados nisso aí, que entram na temática, mas não teve só isso, então valeu a pena, porque deu certo. Porque a ideia era mandar mitos de origem de qualquer coisa, e o pessoal conseguiu mandar, então valeu muito a pena.

Andriolli: E muitas mitologias diferentes, não é, Leo? Isso é que deu uma enriquecida boa, porque, querendo ou não, a gente espera que vai receber muitos mitos já conhecidos, então, quando você lança, você fala assim: “Vão mandar isso, vão mandar, sei lá, Jardim do Éden”, e não, vieram mitos japoneses, vieram mitos indianos, isso foi muito bacana.

Leonardo: Dessa questão de serem alguns um pouco mais desconhecidos, até a gente tem o próprio primeiro conto aí, que é da Lua que Mingua, da H. Pueyo. Esse, no caso, também é um conto para se emocionar.

Andriolli: E é muito visual, no sentido que você consegue visualizar esse mito existindo, que é do Homem Lua e a Estrela d’Alva. Um homem era apaixonado por uma mulher, e esse homem era a Lua. E, para ficar sempre junto com ele, a mulher se torna a Estrela d’Alva, que é a primeira estrela que vai surgir no céu quando a lua está despontando, então eles vão estar sempre juntos. Então ela parte disso para escrever uma história de amor e despedida muito bonita.

Leonardo: É, esse, agora de cabeça, eu não lembro de qual cultura que é. Ele é bem mítico. Não sei se dá para explicar isso, mas ele… não sei, é difícil de explicar, tem que ler esse conto, sabe?

Nilda: Não é do povo sul-americano?

Andriolli: Não duvido que seja, porque a Hache Pueyo é uma escritora que é argentino-brasileira. Ela mora um pouco lá e um pouco aqui no Rio Grande do Sul. A produção dela é muito internacional, ela lançou muita coisa em inglês já. Eu fiquei muito feliz de ela ter mandado o seu conto para a gente, engrandeceu muito o nosso livro.

Nilda: É porque eu lembro que eu vi na época isso, não é exatamente da Patagônia, mas é dos povos indígenas aqui dessa região entre Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul, que não são apenas os Guaranis que tem por ali, tem outros povos também meio que esquecidos, não são tão falados, e seus mitos, menos conhecidos ainda. Eu lembro que era um desses povos ali, mas eu não lembro qual exatamente, realmente meu cérebro agora não ajuda.

Leonardo: Bom, e no seguinte a gente tem Folhas de Outono, do Rafael Faiani. No caso, ele foi para a cultura oriental.

Andriolli: Essa história é de um cara que tinha pedido para se casar com uma mulher e essa mulher vai lá e se mata, e ela não responde o pedido dele, porque ela já tinha se programado para se matar, porque ela fazia parte de um culto a essa deusa japonesa, que é a Konohana, deusa das sakuras, das flores de cerejeira. Não, perdão, ela não é deusa disso, ela é deusa do amor efêmero e o símbolo dela são as sakuras. E aí, depois que ele descobre o suicídio, ele parte para tentar entender o que aconteceu, e essa é uma história bem bacana, eu gostei muito dela. A primeira versão tinha aquilo que a gente comentou um pouco, que é o autor não saber até que ponto entregar ou não a referência mitológica, então a gente terminou de ler e falou: “Não entendi qual é o mito”, e aí ele botou nominalmente: fala que é Konohana, fala que é a deusa disso, porque senão tem que estar muito dentro da cultura japonesa ali para poder pegar, porque a primeira leitura não tinha dado. Depois ficou mais redondo.

Leonardo: É, esse é um que eu realmente não conhecia mesmo e tal, é bem sutil ali para mim.

Nilda: Se passa em um tempo que não é o hoje, mas poderia ser hoje.

Andriolli: É, ele tem algumas coisinhas futuristas, tipo, tem um dronezinho ali dos policiais e tal.

Nilda: Uns aplicativos, uns programas.

Andriolli: Sim.

Nilda: Não é hoje, mas poderia ser. Se for futuro, não é um futuro tão distante assim.

Leonardo: Bom, e o conto seguinte, o Hidromel da Sinfonia, do Caio Henrique Amaro. No caso, ele focou na mitologia nórdica, então não tem uma divindade nórdica específica ali, única; há vários personagens nórdicos: aparece o Loki, aparece o gigante Mímir. Mas ele é voltado em um conceito nórdico, que é no mito do hidromel, que é uma bebida está relacionada à inspiração. O conto gira em torno disso, porque não fica só aí nos nórdicos. Ele também… é o Beethoven? É o Beethoven.

Andriolli: É o Beethoven, eu acho.

Leonardo: Que fica transitando entre ali o Beethoven na casa dele, ali e tudo, ou ele no mundo dos deuses nórdicos.

Andriolli: Que ele vai, toma uns tragos, porque não consegue compor, aí ele dorme. Quando dorme, ele vai para esse outro mundo, e aí lá tem toda uma aventura ali gigante. Ele encontra um gigante de gelo e ele faz isso e faz aquilo, não sei o que, e, no final, ele consegue tomar o seu hidromel e se inspirar para escrever a grande sinfonia de Beethoven, no caso.

Nilda: É interessante, porque eu imaginaria Wagner nessa história.

Andriolli: Totalmente.

Nilda: Só que aí fica interessante ser o Beethoven, porque aí tem uma outra coisa, que às vezes a gente conversa, a gente nunca gravou exatamente sobre isso – um dia talvez a gente tenha que gravar -, são figuras reais que viram míticas, por exemplo, porque Beethoven é o grande compositor, sabe?

Andriolli: É, eu não gosto muito disso. Até falaram isso em uma resenha ali, falaram assim: “Ah, porque o mito é Beethoven”, eu falei: “Não, gente, pelo amor de deus, tem um monte de mito ali”. Mas acontece. Quando a gente lança o livro, não tem muito (inint) [00:50:07].

Leonardo: É, porque, isso no geral, desde o primeiro ao último, eu acho que alguns contos ficaram bem mais óbvios do que outros, tanto no elemento mítico quanto no elemento daquele volume. No caso aqui, nesse dois, seria da origem de algo em si. Mas não precisam estar todos ali obviamente na cara, mas muitas vezes é legal até deixar meio sutil, só que aí corre esse risco de o leitor achar que é de outra coisa. Por isso que eu até estou falando da questão de mostrar: esse aí é relacionado ao hidromel, que é relacionado à inspiração. Não é o Beethoven ser o mito, porque até tem diversas outras divindades e tem muito também personagem mítico ali.

Andriolli: E o próximo conto, eu o acho muito gentil, do Thiago Rech, que esteve também presente no outro livro, no nosso último do Mitos de Trindade. Chama Omelete Galáctico e, basicamente, um cara sai para comprar ovo para fazer omelete e ele acaba trombando com uma figura mítica que troca os ovos, então aí, quando ele chega em casa, ele vai quebrar um ovo e nasce um planeta, e cada ovo é um planeta diferente, e, dentro desse planeta que passa a existir no apartamento dele, ele consegue controlar a vida. Então, de repente, ele vira um deus.

Leonardo: Eu gostei desse conto por essa parte surreal: isso está acontecendo e ok. É meio estranho, tem um universo aqui no meu quarto, mas fazer o quê? Agora está, então eu vou cuidar disso.

Andriolli: Vou botar um ventilador aqui para eles não passarem calor. Ele começa a fazer umas coisas assim para o planeta, parece um pet.

Leonardo: E o legal que esse aí – o que eu estava falando anteriormente de ser sutil ou não – é e não é, porque tem uma parte que mostra o nome do que é baseado, que é no caso o Pan Ku, que é um gigante que nasceu de um ovo e, com isso, ele foi criando o universo. Na narrativa ali ele tem… acho que a marca do ovo é Pan Ku, tem um negócio meio assim, tem alguma parte que ele cita. Então foi óbvio por ele colocar ali o nome em si, mas morre nisso, depois só fica a questão da construção do universo dele. Então, se você não conhece, nunca ouviu Pan Ku, você nem vai imaginar muito isso aí. Então ficou sutil e não ao mesmo tempo.

Leonardo: E é uma origem clássica ali, é uma cosmogonia, a origem do universo, só que de uma perspectiva totalmente surreal ali dentro do apartamento do cara. O que acontece é o seguinte, ele estava em dúvida se ele chamava ou não uma menina para sair e, de repente, ele é um deus e está controlando planetas. E o que a gente colocou de sugestão na edição, no final, foi fazer essa narração, porque, na primeira versão do texto, o cara continuava sem chamar a menina para sair. Eu falei: “Não, porra, ele é um deus agora. Esse é um problema muito menor, acho que ele devia sim sair com ela”, e aí o Thiago vai lá e muda o final, e aí, assim, fica redondinho.

Leonardo: É legal que, como é só ele como personagem em si, não fica mostrando tanto os outros, então é daqueles contos que são voltados para o personagem em si, então esse problema de ele não… essa dificuldade que ele tem de sair, de chamar a menina… eu lembro que acho que quando chega a mensagem dela, ele fica meio tenso e tudo, é legal, constrói bem o personagem. Eu achei muito legal isso aí, não ficou só a coisa surreal. Você o vê como uma pessoa comum, até com uma dificuldade real, só que, ao mesmo tempo, veio a dificuldade de cuidar de todo um universo. E o seguinte a gente tem o Mitomania, do Andriolli. E aí?

Andriolli: Meu objetivo é mostrar que consigo escrever história de saci de qualquer gênero, em qualquer tempo. E aí Mitomania eu fui para um futuro pós-apocalíptico Mad Max da vida onde o meu protagonista é o último sobrevivente do Esquadrão Saci, então era um esquadrão de saltadores de infiltração. Esse mundo foi dominado por um mito, sem ou com referências ao Brasil atual – fica a critério do leitor – e a grande moral da história, da Mitomania – no caso, mitomania é mentira -, então, esse mito, esse personagem que se tornou um mito é um grande mentiroso, então, com as mentiras, ele transformou o mundo. E aí a moral da história é: para matar um mito, você precisa de outro, e aí o meu personagem tinha que se assumir enquanto esse saci para poder, assim, vencer o inimigo. Então é toda uma história de ele buscando se encontrar de novo. E eu faço um paralelo que eu gostei demais, que era (inint) [00:55:11] as inteligências artificiais desse mundo. Elas são chamadas de Avós, e aí, quando você entra em contato com a sua inteligência artificial, você está falando com como se fosse um avô seu, e aí ele te dá conselhos, e esses conselhos às vezes são ditos populares, às vezes são coisas que você não quer ouvir. Então eu estava jogando com esse passado e futuro ali o tempo inteiro.

Nilda: Na verdade, eu senti um clima mais de Robocop, sabe? Uma coisa assim. Porque tem muito isso, muita tecnologia ali e um Estado meio policial que você tem que vencer. E é complicado isso, porque é um tipo de distopia muito difícil de lidar também, e muito de não fazer mais do mesmo também.

Andriolli: Não tem muita solução, não é?

Nilda: E aí você colocar os elementos… é, você colocar esses elementos de lendas e mitos ali dá uma diferenciada total na história, porque não fica aquela coisa só tecnológica, porque o Robocop é puramente tecnológico. Você não mexe com o imaginário das pessoas, e a gente está vendo um mundo em que você tem que mexer com o imaginário das pessoas, porque é isso que está mexendo, não é a tecnologia só. Nós temos a tecnologia, mas, se você não mexe com o imaginário das pessoas, a tecnologia não resolve, a tecnologia não movimenta e a tecnologia não faz o que você quer, e não manipula também, porque toda manipulação depende também de você pegar o imaginário das pessoas. Para o bem ou para o mal, é assim que a gente acaba pegando. Criando mitos ou não, a gente tem que pegar o imaginário das pessoas, e isso está nessa história, você tem que mexer com o imaginário de todo mundo. Aí, de repente, lembrar do saci é mexer com outro imaginário das pessoas, mudar a chave do imaginário ali para mudar as coisas.

Leonardo: No caso, qual é o mito de origem aí?

Andriolli: Ah, essa é a grande moral para mim: era uma origem do saci que eu estava usando de inspiração para fazer o personagem se reconhecer, então eu conto de novo como foi o mito do saci, quando ele encontra – não sei se você lembra, Leo, mas tem um momento que ele começa a beber, e aí da garrafa ele vê um saci, e aí ele vai lembrando como era a história da origem do saci e ele fala: “Eu preciso me assumir, então. Não sou só um membro do Esquadrão Saci, eu sou o saci”. Então eu fui por aí. Ficou muito mais subjetivo do que eu queria, nem todo mundo pegou.

Leonardo: É, por isso que eu perguntei, porque eu vi muitos leitores falando que gostaram até do conto, “Mas é origem do quê? Não entendi muito bem”, a pessoa falando assim.

Andriolli: Sim, realmente, eu acho que ele funciona melhor sozinho do que no contexto. O contexto tem outros pontos que falam de origem de um jeito mais consistente.

Leonardo: Ah, sim, mas eu acho que está dentro mesmo. Eu acho que não tem problema ter alguns mais sutis, outros mais óbvios. Eu acho que é legal ter essa variação mesmo. É como, por exemplo, o próximo, que é bem na cara, porque também está relacionado a uma cosmogonia em si, que é o Dona das Cores, do Rafael Marx. No caso, trata da serpente arco-íris, que é um mito lá da Austrália. Mas, ouvinte, se você for pesquisar, mesmo no da Austrália, você vai encontrar inúmeras versões de serpente arco-íris e com outros nomes, então, tipo, por isso que eu não lembrava se tinha o nome. É mais fácil até você encontrar como serpente arco-íris, esse conceito em si que é bem famoso dentro do contexto de mitologia australiana. Mas você também encontra em outras culturas. Tem as variações e, o que me chamou muito a atenção nesse conto, que é o que eu fiz questão de mantê-lo no volume, é porque o jeito que ele vai contando, conforme a serpente vai passando e aí vai criando as coisas, aí tem o vento que sopra nela, o nome e tudo assim, ele tem um quê muito de descrição de mitos mesmo em si. Quando você procurar, não só fez que nem os outros de pegar um elemento ali, criar uma história com uma narrativa bem no estilo atual, ao mesmo tempo não ficou uma recontagem, nada, mas ele tem o estilo da contagem dele, daquela coisa bem mágica que tem: a divindade vai andando e aí vai criando as coisas. Como ele vai contando essa história, ele tem esse quê mágico.

Andriolli: E ela vai se descobrindo, ela é meio que no Douglas (inint) [00:59:37], quando a baleia aparece e fala: “Olha só, eu tenho um negócio aqui, será que é uma asa?” e tal. Aí, no caso, a serpente vai voando e fala: “Ok, legal, eu tenho uma asa, eu sou diferente. Qual é meu nome?”, ela vai se descobrindo. É bem interessante.

Leonardo: O seguinte é o Argaz e Lucia ou o Evangelho dos Pássaros, é da Ana Fagundes Martino. Esse é voltado para a mitologia grega, porém ele foi um pouquinho longe, pegou uma coisa um tanto quanto desconhecida, tanto é que eu não lembrava de qual era o mito em si, baseado, porque ela pegou aquilo lá e construiu uma história totalmente nova, realmente, sabe? A história dela se baseia em um elemento mítico que tem, é o personagem Mêmnon. Ele morreu na guerra de Tróia – se não me engano foi o Aquiles que o matou – e os companheiros dele acabam chorando ali pela morte dele e tudo e os deuses ficam comovidos, e aí Zeus resolve transformá-los em pássaros, tanto acho que na tumba dele ficam os pássaros ao redor ali, sempre junto ao túmulo do personagem. Você encontra até, se você for pesquisar pelo nome, mas não é um mito tão famosão assim, tanto que eu não lembrava. Eu vou ser sincero, eu tive que ir até a autora…

Andriolli: É, também não lembro.

Leonardo: … e perguntar: “Você lembra que você escreveu o conto aí? Qual era o nome do personagem que você escreveu?”, porque eu não lembrava, eu não encontrava. Isso eu gostei, de ter pego um elemento minúsculo, digamos assim, comparado com toda a mitologia. É um elemento extremamente minúsculo. E fez toda uma história referente a isso. Ela mesma, a autora me falou: “É baseado nesse e no conceito aí das sereias, de serem pessoas-pássaro também e tudo, então eu juntei um pouco dos dois ali, mas criei uma coisa totalmente nova”. É algo bem único, porque é voltado para um povo pássaro. É um marinheiro, se eu não me engano, que chega, acaba acho que caindo ali na ilha, em Córsega. Isso eu achei legal, ela situou bem uma localização. E aí tem esse povo pássaro, que, se eu não me engano, eles se transformam em pássaros, eles não são meio pássaros. Eles vão acho que se transformando. Mas é um conto meio grandinho, acho que é um dos maiores.

Nilda: É, ele é bem longo, mas ele é interessante, porque, por exemplo, Córsega é uma ilha, tem uma boa importância no Mediterrâneo, mas você não tem muitos mitos relacionados à Córsega. Quer dizer, várias personagens mitológicas passam por lá, mas não estão lá, então eu achei interessante pegar uma pessoa de Tróia e meio que criar um mito dali. E aí eu acho que aí nisso que encaixa uma origem, tipo, é a origem de um mito dessa região, é uma origem grega e tudo mais. Porque a Córsega é uma região inclusive complicada, que uma parte fica para a Itália, depois, em outra época, ficou para a França, e teve colonização grega. Então dá para você colocar tudo isso que ela colocou na história e fazer sentido.

Leonardo: Bom, o conto seguinte que a gente tem é o Kalpa, do Rodrigo Ortiz. No caso, o título dele já é o principal elemento relacionado já com a mitologia, que é indiano, que Kalpa é a medição de tempo na cosmologia hindu, seria um dia de Brahma, é um Kalpa, que, na verdade, é muito, muito, muito tempo. É um dia de Brahma. E é um barato, falando da mitologia hindu, que não é só, tipo, um milhão de anos, não, é um número certinho, fracionado, tipo 1.340.000, eu não lembro agora de cabeça, também não vou procurar, mas é um número certinho, sabe? Não é só um número para falar que é grande, que são os conceitos hindus que tem, a parte cíclica.

Andriolli: E é um conto de ficção científica. Os personagens estão em uma nave observando o fim do universo.

Leonardo: Trabalha com essa ideia cíclica que a mitologia hindu traz bastante, então, que o próprio Kalpa é muito baseado nisso aí. E é legal ter um conto aí mais de ficção científica mesmo, se destaca.

Nilda: Eu já vi algumas pessoas dizendo que é interessante você usar as histórias, os mitos hindus em obras de ficção, porque eles falam de carruagens de fogo que atravessam o céu, que você pode transformar em nave espacial, e a unidade de tempo e a quantidade de guerras e povos te permite povoar um universo inteiro mesmo com aquela mitologia. Então dá para você usá-la de base para todo um mundo de ficção científica a la Asimov, a la qualquer coisa que seja, você só usar referências de lá.

Leonardo: É, e ênfase no usar como base. Ouvinte, não vai começar a achar que eram os deuses astronautas. Não vai nessa, não.

Nilda: Ah, sim.

Andriolli: Por favor.

Nilda: Sim, sim.

Leonardo: E aí o próximo conto é As Trevas no Coração da Tucumã, da Simone Saueressig. No caso, o conto de origem é a origem da noite.

Andriolli: Essa é uma história muito clássica, que já foi trabalhada bastante ali também no século 20, e a Simone faz de um jeito muito bacana, que ela meio que faz uma homenagem emulando o estilo do Mário de Andrade no Macunaíma, e ficou muito divertido, primeiro pela linguagem, o jeito que ela vai narrando esses acontecimentos, e segundo porque é uma história muito conhecida já, que ela conseguiu dar a cara dela. Então o rapaz quer se deitar com a mulher, mas ela fala que não vai se deitar com ele se não tiver noite. Aí ele fala: “Mas o que é noite?”, não existia noite ainda. Ela falou assim: “Ah, noite é um negócio. Você vai ter que ir lá pegar essa noite com o meu pai, que é a cobra grande”, e aí ele manda os servos dele, que a Simone chama de Bobo, Bocó e Bocoió, para ir buscar o tucumã onde está a noite guardada lá com a cobra grande, e ele vai, só que os rapazes são muito curiosos e acabam abrindo o tucumã no meio do caminho, e aí soltam a noite, e não só a noite, mas os horrores da noite: os insetos, os medos e não sei o quê. Então, ao invés de a gente ter só uma noite ali gostosa e tranquila, a gente passa a ter uma noite com seres desagradáveis graças ao Bobo, Bocó e Bocoió.

Leonardo: O que me marca mais nesse conto é o estilo da escrita dela. Tem esses elementos de comédia também, eu acho muito legal isso aí.

Andriolli: Eu adorei demais. Mas você tem que estar disposto a entrar na onda, é tipo Mário de Andrade, se você não curtir o estilo, você não vai gostar do conto. E aí o próximo, Leo, é o seu de novo, agora A Nova Arma do Rei, escrevendo sobre ciclopes e a origem do raio – são ciclopes que fizeram o raio para Zeus.

Leonardo: Esse aí eu quis… com a ideia, assim… eu vejo muitos mitos, muitos elementos míticos que muitas vezes não geram nem uma narrativa em si, falarem: “Tal coisa surgiu disso” ou “Aconteceu aquilo” e você não tem uma narrativa em si daquilo, você não encontra, que nem dos ciclopes. Falaram que eles que criaram o raio; quando vai falar sobre Zeus, na verdade, fala: “Zeus e os raios que foram feitos pelos ciclopes”, e fica nisso. Aí já parte para contar a Titanomaquia ou as coisas que Zeus foi fazer com os raios, que já está ali com a arma. Então eu pensei: “Pô, eu não vou estar recontando nada, eu vou estar contando algo que você não encontra ali”. Você sabe que tem essa origem, mas não sabe como é, e aí eu quis fazer essa questão dos três ciclopes, então são os três irmãos que criaram, e até três porque os nomes deles estão relacionados: um é o relâmpago, o outro é o trovão, o outro é o raio. Os nomes deles estão relacionados a isso, isso eu ponho, está no conto, então é isso aí, de eles estarem criando uma arma, como ferreiros em si, mas para mostrar como é essa narrativa, como é esse mito dessa arma, que a gente não encontra por aí. A gente só sabe que eles criaram.

Nilda: Escreveu uma história para contar um mito que a gente sabe que existe. Porque tem uma coisa que a gente às vezes pensa que a mitologia, sei lá, está bem escritinha – eu estou falando mitologia grega, mitologia romana -, então que já está tudo certinho ali, bonitinho. Não, a gente perdeu muita coisa. Então tem coisa que está ali mencionada que muitas das histórias que a gente tem são peças de teatro, que, naquela peça de teatro, é mencionada tal coisa, e é uma história que aquela população daquela região já conhecia.

Andriolli: O que eu acho divertido do conto do Leo é todo o processo de pegar a matéria-prima. Ele vai lá na nuvenzinha, aí ele puxa um novelo como se fosse um novelo de lá da nuvem, ele vai colhendo o material assim, é bem criativo.

Leonardo: Bom, o próximo aqui foi do AJ Oliveira, ele tem podcasts, é escritor aí também, já tem outros contos aí, e ele fez o GOD Talks.

Andriolli: Esse conto, me surpreendeu muito a recepção das pessoas, porque ele é um conto legal, mas ele virou o favorito da antologia, e eu não esperava por isso.

Leonardo: Sim, muita gente adorou. Ele é meio inusitado, é interessante que ele tem um quê cômico, e acho que casa com o personagem. No caso, ele usou o Loki, e aí é o Loki – como você vê o nome do conto, GOD Talks, é uma referência ao TED Talks – que está ali apresentando.

Andriolli: E tem toda uma linguagem que é de empreendedor de palco, ele vai fazendo umas brincadeiras assim, então até por isso o texto fica… você lê e você fala: “Meu deus, que merda”, mas é porque eles falam desse jeito mesmo.

Nilda: Nesse conto, o AJ dá uma jogada para todos os lados aqui: é o Loki, mas ele não deixa um deus em pé aqui, como Loki não faria se ele tivesse acesso a essa tecnologia.

Leonardo: O próximo conto é o Tudo que se Planta Dá, da Jana Bianchi, retornando. E, nessa segunda antologia, ela já estava auxiliando a gente. Esse também é um conto para chorar.

Andriolli: Tudo que se Planta Dá, ela conta a lenda bem famosa também, assim como da noite no coração do tucumã, daquelas ali que foram muito trabalhadas durante o Modernismo, que é a origem da mandioca, que era uma menina que nasce branca, uma indígena que nasce branca e acaba morrendo, e aí ela é plantada dentro de uma oca, então o nome dela era Maní; dentro de uma oca, ela se torna a manioca, que vai ser a planta que vai alimentar ali toda a tribo.

Leonardo: Esse é como eu falei, bem emocionante. Eu conhecia esse conceito aí da origem da mandioca por ouvir falar que tinha essa narrativa, mas não conhecia muitos detalhes.

Nilda: Para nós ocidentais não indígenas, passa uma boa ideia do que seria esse drama da Maní, dá uma atualizada razoável nisso. Eu acho bom quando você faz isso com uma história indígena, porque às vezes a gente escuta e não consegue entender alguns elementos, porque não são da nossa cultura, a gente não consegue pegar o drama daquilo. Aí, quando você dá uma contextualizada para a nossa cultura, para a cultura branca, você consegue entender o significado disso para a outra cultura. Eu não saberia dizer se é a melhor ou pior maneira, mas às vezes você tem que fazer isso para que se consiga entender o que está acontecendo, o significado daquilo para a outra cultura. Porque às vezes eu pego uns contos indígenas e eu falo: “Mas isso aqui não está pegando…”, assim, eu estou entendendo o significado, mas não está pegando para a minha pessoa, porque tem alguma coisa ali da cultura que para eles faz muito sentido, para aquele povo faz muito sentido, e para mim não está fazendo sentido. E do jeito que ela escreveu aqui ficou maravilhoso. Bom, a Jana escreve muito bem, eu sou fã dela.

Leonardo: E no seguinte a gente tem mais um conto do Lucas, que escreve o Carpe Corporem. No caso, esse aí também tem conceitos de ficção científica, está relacionado com inteligência artificial. Ele tem até um quê meio claustrofóbico, um pouco ali, em algumas partes desse conto, interessante. E ele é voltado para conceitos do hinduismo e budismo, porque se trata do Mara. O Mara muitas vezes é posto como um demônio – não vamos entrar aqui nos detalhes da questão da palavra demônio ou não -, mas ele é assim por ser oposto ao Buda. O mais classicão que você vai ver quando você pesquisa é isso, de o Mara ser oposto ao Buda, e ele está muito relacionado à questão do Maiá, que aí sim é a ilusão do mundo.

Andriolli: E eu lembro desse conto que ele tinha até um personagem que era não binário.

Leonardo: O Lucas, eu lembro disso aí, quis fazer questão – que agora eu não lembro, acho que é Micah o nome do personagem, ou a personagem -, porque ele não cita se é homem ou mulher, o leitor que vai definir se é homem, se é mulher ou qualquer outro gênero. Não cita. É algo bem interessante e, como eu falei, é meio tenso. No começo está ok, mas você percebe que ele vai progressivamente dando merda, nesse conto. E isso é bem legal, chega uma parte… por isso que eu falei que é meio claustrofóbico.

Andriolli: E aí o último conto dessa antologia, que é As Três Mães de Roma, da Isa Próspero, nossa queria Isa Próspero, que transforma os mitos de origem de Rômulo e Remo em uma história de lobisomens.

Leonardo: Eu achei muito legal essa ideia ali, que pegou um mito bem já conhecido, bem… eu gosto do mito de origem de Roma, mas está ok, não tem nada demais, é usado só realmente para mostrar a questão de Roma, mas já é bem famoso por causa até da estátua ali da Loba Capitolina. É algo já bem batida, mas aí ela consegue ir além disso aí, faz a ideia do lobisomem, a personagem principal tem isso. Então eu achei bem legal, foi uma coisa assim, tipo um: “E se essa história tivesse um elemento aqui diferente, que aí gerasse tudo isso aí?”, então ela mantém todo esse conceito aí do Rômulo e Remo, da origem mesmo de Roma e tudo, mas aí ela põe que a personagem principal, no caso, a Loba Capitolina, se transforma em um lobisomem. A moça acaba se transformando em um lobisomem.

Andriolli: E uma coisa bacana também é que a gente trabalhou essa ideia na capa junto com o Mikael Quites – que faltou dizer, foi o nosso capista das três antologias -, e a gente foi tentando de tudo ali, falou assim: “Ah, faz a loba padrão, só que com olho vermelho. Faz agora ela mais lobisomem. Não, menos”

Leonardo: O resultado eu achei interessante, mas eu vou dizer, foi sofrido, porque na primeira acertou de cara, foi na primeira praticamente, assim; agora, essa não. Essa foi: “Não, muda isso, muda aquilo” e “O que a gente vai querer representar?”, “Vamos, então, fazer estilo um vaso, já que é o estilo greco-romano ali, então põe as rachaduras, põe os elementos dos outros contos”, a gente pôs ali os ícones para referenciar os contos. Foi meio sofrido, mas no final deu tudo certo.

Nilda: Como a antologia são contos, você não precisa ler na ordem, eu peguei essa antologia e já fui direito aqui para ler o conto da Isa, porque eu estava vendo aquela capa da loba romana, eu falei: “Gente, o que ela colocou nessa história?”, e realmente, você não tem histórias focadas na loba, você tem focadas nos rapazes, no Rômulo e no Remo. E a loba? O que é essa loba? Por que ela gostou dessas crianças? Eu achei isso de ela colocar uma lobisomem – porque você dificilmente faz histórias sobre lobisomem mulher… nossa, que ótimo ficou isso, porque ficou realmente muito bom isso.

[Trilha sonora]

Leonardo: Bom, e aí a gente chega na última antologia, Mitos de Trindade, por você fazer o conceito de trindade, já que era a terceira, mas ao mesmo tempo a gente falou: “Chega, vamos dar um tempo, porque não dá para ficar todo ano, toda vez”, “Então vamos parar por essa?” Aí todo mundo concordou. Vamos dar uma pausa. Desde o começo a gente falou: “É uma pausa”, porque quem sabe aí no futuro vamos retornar. Mas aí, já que era a terceira, então vamos pôr o conceito aí de trindade. E aí que entra a questão que eu tinha falado no início, que, nossa, eu, por estar dentro da mitologia, não conseguia imaginar que alguns conceitos pudessem ser tão estranhos para as pessoas, e aí eu vejo como muita gente teve dificuldade de assimilar o conceito para esse volume. Não os participantes, não os autores, tanto que passaram aí para serem publicados, acertaram numa boa, mas, ao mesmo tempo, eu via gente que falava: “Não, beleza, entendi o conceito, trindade ali e tudo”, tinha gente que falava: “Espera aí, como assim? Eu tenho que criar algo ali? É trindade o quê? Tem que ser três deuses? Não sei o que”, a pessoa ficava confusa, e eu pensando: “Nossa, é qualquer trindade”. Você pegar três deuses que se relacionam entre si já está ok.

Andriolli: É, pode ser.

Leonardo: Sabe? No máximo o que o pessoal falava era: “Ah, é tipo as moiras?”, eu: “Ok, mas não precisa ficar só nisso”, que foi o grande receio que a gente teve, e, realmente, vieram muitos contos sobre as moiras, as parcas – na versão romana -, teve muitos focados nisso. E esse era um receio que a gente tinha, porque, puta, muito a gente vai ter que cortar e, realmente, não dava para ficar pondo só isso. Mas tem muito exemplo, e eu sempre ficava: “Nossa, por que a pessoa não está entendendo? Será que estou explicando mal? Não sei”, e às vezes eu ficava meio assim: “Pô, de repente eu estou muito imerso na mitologia, então para mim é extremamente comum e para as pessoas não”, não sei, até hoje eu não sei.

Andriolli: E a gente sempre deixa o mais amplo possível, que nem a gente estava comentando sobre os outros livros. Você pode ser mais sutil na sua história, o que a gente precisa é só que tenha algum aspecto daquilo. Então podia ser uma trindade de deuses, podia ser um conceito trino – no caso, eu trabalhei ali com três desejos, que é um negócio supermítico, usei um mito para falar sobre três desejos, que, no caso, foi o saci. Tem outras possibilidades: três etapas de uma missão, dá para fazer muita coisa.

Nilda: Uma dúvida para vocês, que foram editores: ninguém mandou nenhum conto com Iemanjá, Oxum e Iansã?

Andriolli: Não.

Nilda: Ou então Oxum, Nanã e Iemanjá?

Andriolli: Nenhum conto de religião afro, se eu não me engano.

Nilda: Na verdade, são quatro, mas tem algumas histórias que você usa três delas, e são divindades femininas, as funções dela nada a ver com as das moiras, e por isso poderia talvez dar outros elementos, levar a história para outro lado. Eu falei: “Nossa, mas ninguém usou as divindades africanas, yorubás?”. Tem a mãe, tem a guerreira, tem a da beleza, mas não é só isso que elas são. Eu achei estranho. Vou dizer, senti falta. Essa é a minha crítica para os autores e para quem enviou contos. E trabalhar de uma maneira que tenha a ver com as culturas yorubás, afro-brasileiras. Também não vai transformar as três, pegar três orixás e transformar em três moiras, gente, pelo amor de deus.

Leonardo: É, até fica aqui um aviso para o leitor. Às vezes você fala: “Pô, mas não teve, faltou de tal cultura, faltou isso, não teve isso”. Tipo, a gente estava limitado também ao que nos passavam, não dava para também a gente colocar algum conto que a gente achou que não ficou bom, mas colocar para: “Ah, não, vamos pôr esse, porque é o único que está falando disso”. Então a gente tinha o limite do que foi enviado.

Andriolli: Era um critério, sim, tipo, vamos manter esse aqui porque ele tem um tema que não foi trabalhado ainda, ou porque queremos um conto ainda que seja desse gênero e ainda não teve, mas, se não passa ali nos outros critérios, a gente acabava tirando.

Leonardo: É, e o primeiro que a gente tem, o Domovoi, do Victor Almeida, também é um conto aí para chorar, e isso eu tenho provas, porque já vieram leitores falando: “Olha, comecei a ler agora, estou lendo aí na ordem e já chorei”. Veio um leitor falar para mim isso aí. Que bom, que bom. No caso, o Domovoi é um – talvez as pessoas não conhecem bem, é algo um pouquinho mais desconhecido, que é da cultura eslava – espírito protetor do lar e da família. Às vezes põe como uma divindade, às vezes só como um espírito, muda isso aí, mas ele é algo voltado para o lar.

Andriolli: Eu gostei demais desse conto, porque ele é fofo. É um conto fofo, você vai lendo e vai entendendo e fala: “O que é isso? Ah, beleza, entendi”, porque ele vai mudando de tempos. Você acompanha o personagem ali no passar dos anos e, ao mesmo, vai tendo flashbacks da infância, e aí, quando você pega ali o que está acontecendo é muito bacana. Eu gosto muito desse tipo de histórias que usam o mito como um fio condutor para que o ser humano se encontre. Isso foi muito… o que eu tentei fazer também na minha história.

Leonardo: No caso até é interessante que a gente já esse volume mostrando um único ser, não é um ser trino, tudo, mas ele está em um aspecto trino, que vai indo e vindo, o tempo, e tudo, mas é um só.

Andriolli: É passado, presente e futuro, no caso, é.

Leonardo: Sim.

Nilda: A história é muito bem escrita e eu gostei disso, quer dizer, essa coisa da trindade não precisa ser três seres, podem ser três aspectos do mesmo ser ou três tempos, três entendimentos que você tem desse ser ou três participações. A questão da trindade pode ser variar muito. Então é um conto lindo, eu comecei a falar: “Mas cadê a trindade?”, daqui a pouco eu: “Ah, espera um pouquinho, tem a questão do tempo aqui, opa”. A trindade aqui não é exatamente o ser mitológico, é outra coisa.

Andriolli: E ele está ali, ele está nos três tempos.

Leonardo: E aí o seguinte é o Anarriê, Balancê, Alavantú.

Andriolli: Inclusive, o que é o Avalantú, Leo?

Leonardo: Eu acho bonito o título, mas eu não entendo.

Andriolli: Anarriê, Balancê é uma brincadeira ali com as festas juninas, porque é um conto que vai falar da trindade de santos católicos ali das festas de junho, São Pedro, Santo Antônio e São João, e também vai trazer as moiras gregas, então é muito bacana isso.

Leonardo: Eu gostei dessa mistura, ele juntou ali, que você vê as moiras gregas, mas é um estilão muito nacional.

Nilda: É uma quadrilha, aquela quadrilha junina que você dança e que tem o casamento, e que tem a coisa, e, de repente, você para e pensa: “Espera um pouquinho, elas estão contando a história de uma pessoa mesmo ou elas estão contando a história que deu origem a essas quadrilhas em que tem o casamento da moça grávida e o pai com a espingarda? Porque, quando elas terminam a história, elas começam a contar outra história brasileira, que não sei se alguém pegou, mas, no final, quando eles começam a contar a história do seu Francisco, que pegou a língua do boi.

Andriolli: Sim.

Nilda: Elas terminam começando a contar essa outra história, então qual é o contexto? Porque você pode ler sob vários aspectos ali, desde uma história, uma fofoca de cidade sobre algo que aconteceu à origem desse tipo de quadrilha que a gente tem muito por aí, que é fazer a dança e o pai obrigar a noiva a casar. Você: “Opa, que legal”.
Andriolli: Eu procurei aqui e vi que Alavantú é mais um dos termos que se usa em festa junina, só que é mais lá para o Nordeste. Isso é muito legal, é bem coisa de folclore mesmo, porque são palavras francesas que o pessoal usou, então anarriê é do arrière, que atrás, e alavantú é de en avant tout, que é antes de tudo, vou para a frente, coisa assim. Então deu uma abrasileirada. Muito bom.

Leonardo: O conto seguinte, A Última Casa, do Tiago Rech. Ele já tinha participado.

Andriolli: Sim, da omelete.

Leonardo: E aí, no caso, o dele é focado na mitologia japonesa. Ele fala dos três deuses irmãos, que são o Susanoo, que é o deus do mar, Amaterasu, que é a deusa do sol, e o Tsukuyomi, o deus da lua.

Andriolli: E esse é um conto… mais um daqueles que é um desafio, porque ele coloca esses deuses em uma cidadezinha gaúcha, e aí é uma cidade gaúcha onde uma última casa de enxaimel acabou de desabar. E aí isso foi uma grande questão, que, quando a gente foi fazer a revisão, coloquei para o Tiago, falei: “Cara, já que você vai estar trabalhando com dois povos muito distintos, a gente tem que ter o jeito de falar deles, porque eles estão falando o padrão ali. Parece que eles são de São Paulo. Bota ali o cara gaúcho com expressões gaúchas, bota os orientais ali falando e trazendo coisas diferentes” e aí acho que a gente foi chegando a algum lugar, porque foi bem desafiador.

Leonardo: O conto seguinte, O Executor, do Luiz Felipe Vasques. No caso, esse aí é voltado para a mitologia romana é em um universo paralelo. Muda ali a história de Roma, aquela coisa alternativa, alguma coisa ali que aconteceu, aconteceu de forma diferente e aí segue para esse tipo de mundo. E, no caso, ele apresenta como trindade as deuses Justitia, que seria a deusa da justiça, Nêmesis, que é a da vingança divina, e a Clementia, que seria a deusa da clemência. O que me chamou a atenção desde o início nesse conto, que me fez gostar, foi de ter usado essas três deusas, que são deusas mais alegóricas – Roma tem muito disso, é muito marcada nisso – e o próprio conceito ali de Roma em si. Apesar de ele ser um mundo alternativo, para mim, ficou bem clara a ambientação ser em Roma, uma, pelo uso dessas três deusas também, por ser essa questão alegórica. Isso me chamou bem a atenção.

Andriolli: Você toma um susto que o cara é um executor ali romano, que não sei o que, e aí daqui a pouco ele puxa uma pistola.

Leonardo: Sim. Acho que todo mundo que leu aquilo lá na hora parou assim, sabe? Eu… “Espera, eu entendi direito? Deixa eu ver”, principalmente porque esse aí eu tinha lido, não vi que era coisa alternativa. Depois que eu fui ver, que ele explicou ali nos detalhes. Bom, e o próximo conto que a gente tem é mais um conto aí do Andriolii, que é o Três Desejos, e, no caso, apesar de ser uma coisa que você ouve esse nome, você imagina gênios, não, ele trouxe o saci. Eu achei legal essa mistura, você manteve ali, trabalha com o folclore daqui, mas pegou um elemento que muita gente vai ligar para coisas de longe.

Andriolli: É, e histórias assim de pacto com saci são bem comuns, e de pedir coisas para ele e ele te enganar. E, no caso aqui, é o contrário, o cara pede uma coisa enganado, vamos dizer assim, e o saci oferece uma solução. Ele oferece três desejos como uma forma de o cara achar a resposta certa, e, para mim, esse é um dos meus pontos favoritos, porque ele tem muito do que eu queria trabalhar, que eu até comentei antes, que é o mito como sendo um espaço para o diálogo com o ser humano. Então aqui o personagem literalmente conversa com o saci, e sempre que eu leio ali, todas as vezes, cada versão que a gente recebia de revisão, de PDF, eu lia de novo o conto, e eu sempre gostava. Eu lia e falava: “Gente, que legal”, porque a cena em que o saci e o meu protagonista se sentam de costas um para o outro e ele vai tomando cachaça e o saci toma também, poxa, eu acho aquilo muito bonito, eu consigo visualizar uma amizade que se formou ali.

Leonardo: E você vê que o saci está meio que aquela coisa assim… o cara quer tal coisa, o saci só falta falar: “Meu, você tem certeza de que você quer isso? Tem certeza? Mas você já pediu…”. Passa um pouco essa ideia: você sabe que não é bom ficar pedindo isso aí, mas ok.

Nilda: Acho interessante como tem essa questão… mesmo essa coisa de você ter três desejos, isso está em muitas histórias, que é o que faz você… no final, o que vale mesmo é o último desejo, que é quando você se conhece, e como isso é muito comum em muitas histórias, não só nas histórias de djinns, tem muitas histórias de folclore que algum ser sobrenatural dá esses desejos e, na verdade, o que acaba resolvendo mesmo sempre é o último. Normalmente, o primeiro ou o segundo dão algum problema, porque não são o verdadeiro desejo, é a ilusão.

Andriolli: Sim, e o que eu achei legal é porque eu escrevi esse conto para ser um drama, e o Auryo Jotha, quando leu, falou: “Eu achei muito engraçado”, e não era para ser engraçado. Mas beleza.

Leonardo: Próximo aqui: Tesouras e Egos, da Déborah Happ. No caso, foi mais um conto sobre as moiras, então, no resultado geral eu achei legal que a gente conseguiu filtrar e aí manteve dois aí de moira, um bem diferentão; esse já vai mais para o estilão clássico mesmo ali das moiras, que eu acho que seria necessário. Moiras, a gente nem precisa explicar, são as deusas do destino, as fiandeiras.

Andriolli: Como é que era esse conto mesmo, Leo? Conta aí para a gente.

Leonardo: O cara várias vezes vai voltando até elas pedindo para consertar, ele vai reclamando do fio do destino.

Andriolli: O filho dele que morria, não era isso?

Leonardo: Então, primeiro acho que ele estava jovem, e aí eu não lembro quem que morre ou alguma coisa acontece com ele jovem e ele quer alterar isso; depois chega uma hora que é o filho dele, acontece algo com o filho dele. Ele está sempre… tipo, o foco do conto é isso, ele está sempre indignado com o destino, seria, sempre querendo alterá-lo. É um conto até meio repetitivo, mas você percebe que é por querer, ele está sempre voltando até elas.

Nilda: Que é o mote da história, o refazer a sua vida, refazer os pontos ruins da vida, ou que você considera ruins.

Leonardo: Voltado para o ego do personagem. E aí em sequência a gente tem Epifania, da Isa Próspero. No caso, nesse aí ela estava nessa edição auxiliando a gente na parte de organização, de escolha dos contos, e ela trabalha com as musas, mas uma coisa que me chamou a atenção é que ela trabalha com as musas em uma versão bem antiga, em que as musas era três. Então isso que me chamou muito a atenção, porque eu acho legal isso: você vai em uma versão mais desconhecida ali. Por usar as musas, ela põe no ambiente delas, que a história se passa em um museu.

Andriolli: Referência direta à queima do Museu Nacional, tem uma pegada bem atual ali que a Isa faz. Que lugar melhor de memória que um museu, que é a casa das musas?

Nilda: Eu só vou falar que a Isa gosta de escrever, quando ela escreve sobre os mitos gregos, e pegar sempre as versões mais antigas ou as que não estão na nossa cabeça. Quer dizer, não são só os mitos gregos, é porque no primeiro livro ela pega a sereia pássaro e agora ela pega as musas na versão de três apenas. Então ela gosta de pegar isso, não ficar apenas no que ficou mais popular ou mais conhecido hoje em dia. Acho isso muito bom.

Leonardo: E aí em sequência a gente tem o Pessoa do Plural, do Bruno Leandro, no qual ele fala do Barba Ruiva, e eu vou falar, Bruno, que evolução que teve. Esse conto… gostei muito, e até depois, que eu fui pesquisar mais do Barba Ruiva, eu vi que o personagem tem também um quê disso aí, de várias idades. A própria característica do personagem trabalha nisso aí, mas é o que o Bruno trabalha nesse conto. Chama de Barba Ruiva, mas ele põe um outro nome também, ele mostra um outro nome. Agora de cabeça eu não lembro, não anotei, mas ele trabalha com isso aí, de aparecer com criança, como adulto e como idoso no período do…

Andriolli: Esse mito é como se fosse uma criança que foi adotada pela Iara, é um bebê, só que aí, quando vão passando os horários do dia, ela se transforma de bebê em homem adulta, e aí, no folclore mesmo, ele procura mulheres para abusar delas, vamos dizer assim. Ele é um grande pervertido. E aí, no caso, o Bruno joga com mais um tempo, que ele vira adulto e depois ele vira idoso também.

Leonardo: E nesse aí ele vai trabalhando com essa mudança de tempo, então é algo um tanto delicado quando você vai essas mudanças assim, mas ficou muito bom.

Andriolli: Muito legal.

Leonardo: O seguinte é o Rio ao Contrário, do Rafael Priviero D’Abruzzo. No caso, é focado na mitologia grega. O que me chamou também a atenção nesse conto, mais ou menos parecido com o que se passa em Roma, mas no caso aqui mais questão grega mesmo, mas é pelo tipo dos deuses que foram escolhidos, e, no caso, até trabalhou, de certa forma, com duas trindades em si, porque os deuses que aparecem são o Morfeu, no caso, é o deus do sonho; o Fântaso, que é o irmão dele, que também aparece nos sonhos. O Fântaso, na mitologia, se transforma em objetos. Quando você sonha com um objeto, é o Fântaso; quando você sonha com pessoas, é o Morfeu. O Fobetor é o terceiro irmão, que é quando você sonha com animais. Eles são até conhecidos como a trindade dos Oneiros, que são os deuses do sonho. Porém também tem os irmãos do Morfeu – outros -, que são o sono e a morte – tem outros nomes, são Hipnos e Tânatos, mas é isso, é o sono, a morte e o sonho. Então são três. Tanto que acho que no conto ele põe como Morfeu e os outros dois sendo o mesmo, tem um negócio meio assim, três em um. E aí aparecem os outros irmãos, o sono e a morte. Então ele trabalhou com esse conceito de personificações. Não é só a divindade Zeus que é uma pessoa praticamente. Não, ele é uma personificação de algo da nossa vida ou da morte, como no caso de Tânatos.

Andriolli: E é você entrar na pira do autor, que é… como é que vai ser, então, Fobetor? Se não me engano, é esse que é um menino vestido de leão.

Leonardo: Sim.

Andriolli: Que é o que se personifica em imagens de animais. Então tem que embarcar e ir na criação. É bem divertido.

Leonardo: Próximo conto: mais um da Simone Saueressig. Ela traz aí Triângulo das Águas e, no caso, o elemento mítico, o personagem que ela traz é o boto.

Andriolli: A Simone tem o texto que eu quero ter quando eu crescer, porque como escreve bem.

Nilda: Realmente, a escrita é maravilhosa, desse conto. Você começa a ler e a forma como ela descreve os locais, como ela descreve a cidade – quer dizer, não é nem a cidade, a pequena vila em que a história acontece. Gente, olha, é um conto que você começa a ler e enche os olhos. Enche os olhos para ler. E ela arrumou uma trindade aqui com o boto, não é?

Andriolli: Porque isso não estava no final, porque o que a gente tinha era o casal em crise e aí aparece o boto e a mulher fica com o boto, e aí, beleza. E aí a gente leu isso aí e pensou: “Poxa, podia ficar um triângulo melhor”. E se o boto passasse a participar do casal? E aí, então, fica o triângulo das águas, um título que entrega bem ali sobre o que vai se tratar essa relação. E aí, Leo, tem o seu último conto, Nataraja, bem ali se inspirando em mitos hindus, e, dessa vez, também com a pegada moderna. É uma repartição onde os deuses são operadores de TI. Como é que foi isso?

Leonardo: Uma coisa que eu percebi da minha escrita: acho que eu gosto de colocar coisas ali, tipo, sutis para ver quem vai entender a referência mítica daquilo lá. No primeiro, tem a questão da Afrodite, os nomes dos personagens já ficaram mais óbvios no primeiro; no segundo, dos ciclopes, eu não entrego de cara que eles estão criando o raio, não falo diretamente que é para Zeus – aliás, acho que de nenhum personagem eu falo, mas fica um pouquinho na cara. Esse aí, por outro lado, acho que eu fui lá: “Vou colocar um monte de easter eggs”, então muita coisa ali tem… meu, mais de 20 coisinhas ali que, quem conhecer a mitologia hindu, principalmente voltada para os elementos dos três deuses, no caso aí, que são a Trimúrti, que é Brahma, Vishnu e Shiva, vai reconhecer alguns pontos. E aí o que eu fiz? A Trimúrti é conhecida pela ideia de criar, manter e destruir a nossa existência: Brahma cria, Vishnu mantém e Shiva destrói para ser recriado. Eu quis também mexer com isso, porque já que essa é a última antologia, pelo menos por enquanto, vou fazer algo relacionado também com o fim. O conto é voltado para o Shiva, que está indo ali na empresa porque chegou a vez de ele trabalhar, que é o quê? Destruir. Então ele vai lá dar o reset no sistema que eles criaram. E por que vai dar o reset? Porque já está com muito problema o sistema, ou seja, o nosso mundo aí já está cheio de problemas, precisa de um reset. E aí ele vai analisando o sistema, ele vê muita coisa que o Vishnu fez, já que o Vishnu é o cara que tinha bastantes avatares e se relaciona com as pessoas, então ele é o que mais ficava ali no sistema. Tem muito easter eggs, digamos assim, muita referência ali que eu deixei meio que sutil. E aí chega uma parte – isso foi interessante – que eu estava escrevendo ali o conto, legal, fiz meio rapidão, e aí chegou uma parte que ele começou a conversar com Brahma mais no final, e aí, nossa, eu entrei em uma pira filosófica de existencialismo, e aí eu pus isso aí. Eu gostei dessa parte, bastante, ali que está o Shiva meio que questionando: “Meu, para quê? Para que isso aí? Para que criá-los?” e tudo. E esse é meio que o ponto alto ali, que vai indo toda a história até esse ponto do Shiva meio que questionar: por que a gente está aqui? Por que os humanos estão aí? Precisa mesmo disso? Foi uma coisa que foi do nada ali, foi meio que improviso na hora.

Andriolli: Bacana, cara. E acho que tem muito a ver com aquilo que a gente tinha falado lá sobre o conto do Kalpa, que é como essas mitologias hindus assim nos convidam a pensar em coisas tecnológicas também. Tem tudo a ver: o ciclo de destruição e início. Eu gostei bastante. E aí vamos para o nosso último conto, fechando os três livros: Imperatriz Reversa, do Guilherme Lopes. O único conto de trindade católica, mas uma trindade católica um pouco diferente.

Leonardo: No caso, ele traz, em vez do Espírito Santo, a gente tem a Maria para fechar a trindade: então é o pai, a mãe e o filho. E é interessante que isso aí é baseado em algo que existiu – eu não sei o quanto isso ainda tem ou não -, mas é uma heresia, que é o coliridianismo. Então é legal que ele baseou em algo que realmente teve, e isso até é citado no conto. É legal que, quando a gente fala trindade, a gente que conhece mitologia sabe que tem inúmeras trindades, tudo, os próprios contos que chegaram, mas a ouvidos leigos, digamos assim, trindade católica é algo já marcado por essa palavra mesmo: trindade. Então é bacana ter um conto para isso. Vale a pena tê-lo como último, para formar a capa, para ter aquele impacto, tipo, na capa ser: “Olha do que a gente está falando”, vamos colocar. Então isso ficou bem legal, que aí a gente fez a capa, um vitral, ficou bem legal. Então tem as outras trindades nos outros contos, mas esse serve muito para causar impacto também. E foi um conto também bem-feito, a qualidade também é muito boa.

Andriolli: Tem um climão de terror, eu gostei bastante.

Nilda: E eu gostei da abordagem. O conto está bem escrito e essa abordagem de colocar Maria na trindade, porque o papel de Maria na Igreja – vou falar da católica, mas em outras igrejas ortodoxas também; nas protestantes nem tanto – é muito forte. Existem muitas Marias por aí, que são as Nossas Senhoras de inúmeros rostos, vestes diferentes e culturas e costumes diferentes. Na América Latina inteira você tem várias Nossas Senhoras espalhadas, cada uma com o seu tipo de festa e o seu fervor popular, que ninguém combater. Algumas coisas você vê que estão misturadas ali com outras culturas, você vê que pega elementos de alguma deusa antiga e coloca ali, mas Maria está ali sempre. Então eu achei que esse conto faz muito sentido, essa coisa de Maria estar ali presente, porque ela está. Então não tem como negar. Isso eu como católica falando. Eu acho que a gente tem até um Papo Lendário que a gente fala que, na verdade, deveria ser não trindade, mas quatro: Pai, Filho, Espírito Santo e Maria ali no meio, porque faz muito parte do catolicismo. Por isso que essa heresia existiu e teve razão de existir, não dá para dizer que não. É uma coisa natural de existir.

Leonardo: É, e a gente fechou essa antologia e fechou a trilogia de antologias.

Andriolli: E agora, Leo? Quais são seus planos?

Leonardo: Ouvinte, a gente tem planos aí para futuras publicações, mesmo que a gente ainda não publique físico ou sei lá, mas o Mitografias está muito próximo à literatura por causa da mitologia, por causa das narrativas. Então a gente quer seguir por isso. A gente viu que, com a antologia, com a primeira mesmo, a gente viu que vale a pena o Mitografias abraçar essa parte literária. Então também fica aí uma dica para os autores: a gente está sempre aberto aí para vocês mandarem coisas, de repente fazer novos planos e mais para frente voltar com a antologia, fazer outras publicações. Então está em aberto aí, vamos pensando, porque eu acho que valeu muito a pena fazer isso aí. Cansa, dá trabalho? Dá. Estressa? Até que estressa. Mas é muito gratificante. O resultado final vale muito a pena.

Andriolli: E vocês aproveitem aí, gente, baixem logo, porque, se… a gente nunca sabe do futuro aí, vai que fechamos um contrato novo e o download não vai mais ser gratuito.

Leonardo: Bom, então é isso o episódio. Ouvinte, espero que tenha gostado aí do episódio, teve bastante conteúdo, porque a gente passou por todos os contos.

Andriolli: Valeu, valeu, gente, obrigado. Não deixem de acompanhar lá o colecionadordesacis.com.br e o meu podcast que sai toda quinta-feira, que é o Poranduba. Manda seu comentário lá.

Leonardo: Não sei, eu fiquei com um certo receio de parecer meio egocêntrico, a gente está falando da nossa obra, mas eu achava também, em parte, que é o respeito ao leitor e aos escritores que eu acho que é legal a gente citar cada um dos contos, mostrar a parte mítica que teve. Então espero que tenham gostado aí e, quem sabe, no futuro vão ter novas publicações aí no Mitografias.

[Trilha sonora]

[01:46:58]

(FIM)