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Nesse episódio do Papo Lendário, viaje pelo mundo com Leonardo Mitocôndria, Nilda Alcarinquë e Juliano Yamada para conhecer os cães nas mitologias.
Conheça semelhanças entre diversos cachorros em diferentes mitologias e culturas.
Entenda o que é um cinocéfalo
Ouça o mito e Anúbis, Pan-hu, Raiju, Fenriz, Cérbero, Ortros, Xolotl, e muitos outros.
E veja que a imagem do cachorro pode ir desde um monstro até um ajudante, ou mesmo um psicopompo.
– Esse episódio possui transcrição, veja mais abaixo.
— LINKS —
Manual dos Monstros #09 – Cérbero
— EQUIPE —
Pauta, edição: Leonardo Mitôcondria
Locução da abertura: Ira Croft
Host: Leonardo Mitôcondria
Participante: Juliano Yamada
Participante: Nilda Alcarinquë
— APOIE o Mitografias —
— Agradecimentos aos Apoiadores —
Adriano Gomes Carreira
Alan Franco
Alexandre Iombriller Chagas
Aline Aparecida Matias
Ana Lúcia Merege Correia
André Santos
Antunes Thiago
Bruno Gouvea Santos
Clecius Alexandre Duran
Déborah Santos
Domenica Mendes
Eder Cardoso Santana
Edmilson Zeferino da Silva
Everson
Everton Gouveia
Gabriele Tschá
Jonathan Souza de Oliveira
José Eduardo de Oliveira Silva
Leila Pereira Minetto
Leonardo Rocha da Silva
Leticia Passos Affini
Lindonil Rodrigues dos Reis
Mateus Seenem Tavares
Mayra
Nilda Alcarinquë
Petronio de Tilio Neto
Rafael Resca
Rafa Mello
Talita Kelly Martinez
— Transcrição realizada por Amanda Barreiro (@manda_barreiro) —
[00:00:00]
[Vinheta de abertura]: Você está ouvindo Papo Lendário, podcast de mitologias do projeto Mitografias. Quer conhece.
[Trilha sonora]
Leonardo: Muito bem, ouvintes. No episódio de hoje, vamos falar de um tema que… eu quis fazer algo simples, algo tranquilo, mas, conforme eu fui fazendo, o tema foi crescendo. E hoje, então, a gente vai falar sobre os cães nas mitologias, algo meio estranho até, não é? Algo que parece meio banal, mas, quando você vai analisando, você vê que tem muito exemplo disso, tanto que até eu comecei a fazer isso, a ideia inicial era fazer uma pauta simples, tranquila, algo rápido e fácil de fazer ali, e aí eu pensei que seria interessante pesquisar como os cachorros são representados nas diversas mitologias, já que tem em vários locais. Então vamos ver. Mas, novamente, conforme eu pesquisava, parecia que a pauta não ia ter fim.
Juliano Yamada: Leonardo só queria criar uma pauta para falar que cachorro é melhor que gato.
Leonardo: Ah, mas isso nem precisa falar, isso já todo mundo sabe. Todos sabem, com certeza. Gatos são do mal. Nesse episódio de hoje, vocês vão ver como cachorro é muito mais legal. Será que eu consegui o ódio de algum ouvinte aí? Vamos ver.
Juliano Yamada: Provavelmente, metade dos ouvintes são gateiros, então…
Leonardo: É, tem o gatolicismo, esses ouvintes todos que são praticantes do gatolicismo.
Nilda: Eu já aviso que nisso eu sou neutra, não tenho cachorro nem gato.
Leonardo: É, nada contra os gatos, mas… é sempre assim, não é? Sempre tem que terminar com mas. Quem sabe futuramente teremos um episódio sobre gatos. Isso também acho que renderia bastante, mas hoje é sobre os cães. Tem muito exemplo de narrativas. O simbolismo do cão e do lobo é bem rico. Eu falei do cão e do lobo, porque, para começar, a gente precisa ter noção dessa linha tênue entre cachorro e lobo. Na verdade, tem gente até que diz que essa linha não existe e que, na verdade, até cachorros não existem.
Juliano Yamada: Como espécie, o cachorro e o lobo são muito próximos, tanto que eles ainda conseguem se reproduzir entre si. O sistema social, o sistema de matilha tanto dos cães como dos lobos é muito parecido, e isso é um detalhe: foi essa característica que fez a aproximação com o ser humano, porque o ser humano também tem um sistema social muito próximo. Você vai ter um líder do grupo, você vai ter uma divisão de tarefas, você vai ter uma divisão de recompensas, e isso acontece entre os humanos e os lobos. Então a adaptação do lobo ou do cachorro em si para a sociedade humana foi muito fácil, e sem falar que ela é muito antiga. Ela remonta acho que à Idade da Pedra Lascada, quando os humanos ainda nem eram homo sapiens – se não me engano.
Nilda: Há uma tese, uma hipótese de um antropólogo de que, na verdade, não é que os sistemas são parecidos, é que os humanos acabaram convivendo com os cachorros e copiando alguns dos sistemas de vida deles, de ficar mais em matilha, forma de caçar. Houve uma interação, uma simbiose. Não foi o humano que criou o cachorro, mas os lobos que se aproximaram dos humanos acabaram entrando tipo em uma simbiose, então os humanos imitaram alguma coisa dos lobos, porque eles perceberam que isso poderia mantê-los vivos melhor, e os lobos perceberam que, estando junto com humanos, também seria mais fácil para eles obterem comida e serem protegidos. Então uma simbiose das espécies.
Leonardo: O cachorro que adestrou o ser humano aí também, olha só.
Nilda: Porque essa ideia de ficar só o humano adestrou o cachorro, e aí às vezes tem algumas teses que falam de outras espécies que isso aconteceu também, que, na verdade, isso é um pensamento muito antropocêntrico, sabe? Aquela coisa muito do século 19, que o ser humano é o ápice da criação e ele que fez, domesticou todos os outros, sendo que pode ter sido assim: o ser humano ter copiado muitos comportamentos de outros animais e, com isso, ter melhorado a vida dos humanos e ter essa simbiose.
Leonardo: Então, ouvinte, foi o seu cachorro que te treinou para dar biscoito para ele quando ele senta.
Juliano Yamada: Tem um outro ponto interessante também que a gente falou anteriormente como surgem deuses, divindades, em culturas mais antigas para o ser humano, que várias vezes essas divindades, deuses, semideuses, heróis surgem de ou que se sacrificaram ou que morreram e começaram a ser cultuados por causa dos seus atos ou suas histórias, e isso acabou virando uma lenda, que acaba uma mitologia, acaba-se criando uma divindade. A mesma coisa pode ter acontecido com os cachorros. Cachorros mais fiéis, ou que se sacrificaram, ou que foram importantes em batalhas ou para grupamentos humanos, um cachorro específico até mesmo uma figura de um cachorro, aquele cachorro daquela raça, daquela etnia, também pode ter sido o mesmo significado e, por consequência, acabou sendo cultuado, virando uma divindade e entrando em um possível panteão mitológico. Isso pode ter acontecido várias vezes na nossa sociedade.
Leonardo: É, aí muitas vezes não precisa ser nem um cachorro que fez isso; muitas vezes pode até ser a forma como o animal age ali e eles incorporam no mito. Isso a gente vai ver. Um exemplo é quando a gente chegar nos egípcios. Mas isso aqui foi só para mostrar para o ouvinte que essa confusão de lobo e cachorro realmente tem mesmo e principalmente nos mitos. A gente vai ver que em alguns mitos é explicitamente dito que é um lobo, outros que é um cachorro, e outros que variam. Então às vezes você pega alguma narrativa falando, citando como cachorro, às vezes como lobo, porque não faria diferença ali naquela narrativa em si. Então seria difícil falar de cachorro em mitologia sem citar lobo e até sem citar alguns animais semelhantes, porque a gente fala de cachorro e lobo, mas a gente não pode esquecer de chacais, de coiotes, de outros animais que também estão próximos. Eu não sei agora dizer biologicamente o quão próximo é, mas pelo menos na questão de interação com o ser humano e forma também de viver ali. Aqui na América a gente tem muito a questão do coiote, que é uma imagem forte também, que tem um aspecto canino, digamos assim. Pelo menos uma certa semelhança.
Nilda: Porque vários desses animais têm uma função semelhante à do lobo, porque você na natureza, normalmente, no ecossistema, o predador assim, o predador daquele jeito, o herbívoro daquele jeito, e você sempre vê que tem animais com funções parecidas. Não é exatamente o mesmo animal, mas a função é predar, a função do outro é cavar, então sempre tem coisas assim.
Leonardo: E aí, quando a gente vai para esses outros animais próximos, o número de mitos aumenta mais ainda, como eu falei, principalmente o lobo, por causa de toda a simbologia que ele tem, principalmente na Europa. Esse episódio, ouvinte, vai ser muito de exemplo; a gente vai viajar pelo mundo todo citando exemplos de cachorros e lobos. Não vai ter como fugir dos lobos. Mas aí você vai ver como principalmente na Europa tem muita coisa e tem alguns detalhes interessantes para ver disso. Tanto que, pesquisando para essa pauta, eu percebi que… eu ouso dizer que a imagem do lobo – e com isso a do cachorro junto – em específico é praticamente tão complexa quanto a da serpente. Sem querer me aprofundar aqui na da serpente, mas, querendo ou não, você pega inúmeras religiões, e mitologias e narrativas com a serpente, seja ela como um inimigo, como um obstáculo, como algo para cura até, o que seja, tem muita coisa. E o lobo, pesquisando aqui, eu falei: “Isso aqui está tão complexo quanto”, e isso tem a ver com isso que a gente falou aí da relação que tem com o homem. Tem muita coisa, é bem complexo e, por isso que, como eu falei, esse episódio vai ser mais voltado a esses exemplos de narrativas com cachorros e lobos. A gente não vai se aprofundar tanto até no lobo em si para deixar até para outros episódios. Daria para fazer algo, a gente vai deixar para outro episódio algo mais aprofundado no símbolo em si do lobo, pegar alguns aspectos mais específicos que vão valer a pena, então, pesquisar mais a fundo. Mas, para ter esse episódio e esse episódio não se tornar dois, três, quatro, e tudo, então vamos focar só algo mais tranquilo, que mesmo assim ainda vai render, que são algumas narrativas específicas. Como eu falei, a gente vai viajar o mundo todo, então vai ter grego, egípcio, japonês, chinês, asteca, vai ter tudo quanto é continente.
[Trilha sonora]
Leonardo: E agora a gente começa a viajar pelo mundo. Vamos para a África, e aí a gente começa a falar dos egípcios, que talvez seja um dos exemplos mais famosos, mas teria também uns poréns. Porque é o Anúbis, e aí por que o porém? Porque ele é dito como um deus com cabeça de cachorro, mas às vezes também dito como um chacal. Você o encontra no formato humano com cabeça de animal ou apenas o animal, e aí fica aquela coisa: às vezes trata como um chacal, às vezes trata como um cachorro. Mas é aquele negócio que eu falei anteriormente, a imagem do lobo e cachorro vai estar espalhada para esses animais também semelhantes. E o Anúbis não é um cachorro em si ou chacal, que seja, mas ele não é um animal em si. Ele é uma divindade com a cabeça de um animal, com a aparência de um animal, porque ele se comporta como uma divindade, ele teria uma consciência divina, humano-divina, ele é ciente mesmo, ele não é um animal. Você não vai jogar um osso para ele ir buscar, ele não é que nem o Cérbero ou coisa assim. Então ele é uma divindade em si, mas tem essa aparência, e é um dos mais famosos. Mas mesmo ele tendo essa questão de ter uma mentalidade mesmo divina ali – não vou falar humana, mas divina -, esse aspecto de ser humano com cabeça de cachorro e o próprio trabalho dele, de ele ser o deus do embalsamamento, de ter criado a primeira múmia, que é o Osíris, isso tem uma simbologia bem importante, que a gente vai ver em alguns casos aqui e, no final, a gente conclui. Então, ouvinte, marque aí essas características – no final a gente conclui isso aí. Mas ele é um dos mais famosos e ele é, como eu falei, o deus do embalsamamento. Ele e a mulher do Osíris foram os primeiros que criaram a primeira múmia, que foi o próprio Osíris.
Nilda: E o chacal é uma espécie de canídeo, que eles consideram como um misto de cachorro com raposa. Então ele não é um cão, mas está ali, é parente, é o primo.
Juliano Yamada: Tem uma coisa interessante sobre chacais, que é de onde surgiu essa protomitologia, que depois foi englobada no Anúbis, que os egípcios observavam que os chacais pegavam os mortos do deserto e levavam para longe. Eles associavam: “Então os chacais estão levando para alguma divindade, provavelmente o mestre deles”, então eles começaram a desenvolver essa entidade, que virou o Anúbis, que seria o deus que guiava os mortos para o além-vida. Isso foi englobado bem… tanto que ele é uma mitologia muito antiga no Egito, muito antiga mesmo. Os proto-egípcios já tinham uma divindade muito próxima do Anúbis.
Leonardo: E o interessante é que a gente fala: mitologia egípcia, cachorro, você lembra do Anúbis – é o mais famoso aí, por isso que a gente começou com ele -, mas tem outros, e que talvez, ouvinte, você já tenha os visto e achou que eram o Anúbis. Não se sinta mal por isso, porque eu também fiz isso e todo mundo, sempre quando olha, acha que é o Anúbis. Mas a gente tem o Duamutef. Ele é considerado um dos quatro filhos de Hórus, e você vai encontrá-lo – agora você vai saber diferenciar quando é ou não ele – quando você o vir em um formato de um vaso, ou seja, um vaso e a tampa do vaso for a cabeça dele: não é o Anúbis, é esse Duamutef. Esse é um dos quatro tipos de vasos canópicos, que, no caso, os vasos canópicos são os vasos que, quando você mumificava alguém, você tirava alguns órgãos – não eram todos – e separava nesses vasos. O do Duamutef é onde colocavam o estômago. Ele que zelava pelo seu estômago. Então, quando você vir um vaso assim, não é o Anúbis, é esse Duamutef, mas é bem parecido mesmo: orelha, focinho e tudo, é bem parecido com o Anúbis.
Nilda: Ser divindade é uma maravilha, não é? Você pode ter cabeça de falcão, mas o seu filho é um cachorro. É uma coisa assim…
Leonardo: E um outro também com cabeça de cachorro – esse, se não me engano, você vai diferenciar pela cor dos cabelos, e normalmente ele é posto com o cabelo azul, mas eu também não vou dizer que seriam todas as representações, mas é uma forma de diferenciar do Anúbis, que é o Wepwawet. Ele é um deus da guerra e, com isso, puxa-se também a ideia de ser um deus da morte, e aí por isso também acaba se relacionando com o Anúbis, que o Anúbis tem uma ligação com a morte, ele está muito voltado a isso. Então são aquelas divindades que acabam sincronizando em certo momento, então, de repente, em algum momento, você vê representações dele sendo ditas como Anúbis e vice e versa – não seria de se estranhar. Isso até para os egípcios antigos. São aquelas divindades que sincronizam, então é natural de também confundir. E mais uma que a gente tem a gente tem aqui, que essa é mais até para dar um parecer sobre ela, que é o Seth. Isso é interessante, porque nem sempre a pessoa vai ligar o Seth com isso, com uma imagem canina, mas porque realmente é algo confuso nesse ponto. Que animal seria o Seth? Não dá para se dizer. É bem confuso mesmo. Muitas vezes o pessoal o liga com cobra, mas ele também é ligado a inúmeros outros animais. Aí tem-se a ideia de que ele seria uma junção de animais, e aí formaria um animal imaginário, que não tem, ou então ele é um animal que já não tem mais. Porque você vê várias representações dele, então, diferentemente do Hórus, do Anúbis, que normalmente fica sempre aquele animal em específico, ou você vê na versão humana ou versão puramente animal, mas é um animal específico, o Seth já não tem essa, o Seth já tem variações. Então às vezes parece uma cabeça de um asno, já vi gente pondo que teria umas misturas de girafa ou de cachorro, então tem bastante tipo. Um que eu acho interessante é um animal chamado aardvark. Ele aqui é porco alguma coisa, em português, mas às vezes você encontra com esse nome. Se vocês procurarem, é A-A-R-D-V-A-R-K, tem dois A no começo. A cara dele é bem parecida com uma das representações do Seth, ele é bem feião mesmo. Esse eu achei bem interessante, é o que eu vejo mais próximo com as representações dele, mas, como eu falei, tem representações do Seth que o colocam com uma cabeça de asno. Então varia muito. O cachorro é uma das versões que se tem e que é dito que seria uma das formas da divindade. Então não é errado você falar que ele seria um deus cachorro, um deus com cabeça de cachorro, mas ele não fica só nisso.
Nilda: É, tem umas representações que parecem muito um cachorro mesmo.
Leonardo: Bom, esses aqui foram da África. A gente ficou só no Egito mesmo, porque eu não cheguei a encontrar outros cachorros de outras religiões africanas. Ouvinte, se você souber – ou religiões de origem africana – fique à vontade de falar. Como a gente não vai conseguir abordar tudo, então fique à vontade para citar algum. O representante da África hoje foi o Egito, que tem esses que são os mais óbvios.
[Trilha sonora]
[Bloco de recados]
Leonardo: Então, saindo da África, a gente vai para a Ásia, e aí a gente já vai lá para o outro lado, que vai a Coréia. Na Ásia a gente tem bastantes exemplos, e aí na Coréia a gente tem um aqui, que é o Bul-Gae. Na mitologia coreana, tem diversos reinos do céu e um desses reinos era o reino das trevas. Era um reino do céu, mas era reino das trevas, então era tudo escuro. E aí o rei desse local ficou cansado dessa escuridão e enviou um dos cães de fogo – que são esses que são chamados de Bul-Gae – para trazer o sol. Só que aí, quando o cão mordeu o sol, ele se queimou e voltou correndo lá para o reino. Então o rei enviou outro Bul-Gae para trazer a lua, só que, dessa vez, estava muito fria e congelou a boca dele. Ele também voltou ali para o reino. Ele mandou dois cachorros ali e não conseguiu pegar o sol nem a lua. Isso de ele tentar capturar o sol e a lua é o que explica os eclipses, e, mais uma vez, ouvinte, marca esse detalhe, que no final a gente vai se aprofundar nisso. Então são dois cachorros que causaram os eclipses, um tentando pegar o sol e outro tentando pegar a lua. Um barato é que era escuridão, ele quis pegar o sol; se ele tivesse ficado com o cão de fogo, já não ficava tão escuro assim, não é? Cão de fogo, mas não, quis pegar o sol. Juliano Yamada: Tem até uma curiosidade, que acho que – se não me engano – Bul-Gae baseou um pokémon.
Leonardo: Tem um outro exemplo aqui, que eu acho que – lendo hoje, relendo a pauta – também tem a ver com pokémon, mas, quando chegar lá, a gente fala.
Nilda: Ah, quase certeza que tem muita coisa das mitologias orientais, chinesas aí. E a mitologia coreana é muito próxima da mitologia chinesa em várias coisas. Às vezes acaba se confundindo um pouco, só que eu já reparei que, apesar de ter várias influências, não é a mesma coisa.
Leonardo: Eu ainda tenho uma ideia de que a mitologia coreana é a transição da chinesa para a japonesa, porque eu sei que os dragões têm esse negócio. Mudando agora um pouco de animal, mas o dragão chinês, se não me engano, tem cinco dedos; aí, quando ele foi para a Coréia, ele andou muito, ele perdeu, ficou com quatro; e, quando chegou ao Japão, perdeu mais um, ficou com três. Tem essa explicação aí, que eles têm diferença de dedos por causa disso, porque eles foram vagando, então você vê que é uma transição.
Nilda: No Oriente – e não estou falando só extremo oriente, não -, ali na região da Polinésia também tinha isso e até um pouco em outras áreas da Ásia, o Império Chinês era muito forte. O Império Chinês sempre foi muito influente em relação a tudo, então muita gente se mirava na China para várias coisas, até para obter alguma validação para os seus negócios ou para os seus reinos.
Leonardo: Até hoje.
Nilda: Até hoje. Mas é que, como a China ficou um período de quase 200 anos, que houve a dominação inglesa e o país todo (inint) [00:21:56], a gente acha que não é nada, mas a China ali era muito… tanto que eu já li relatos quando europeus chegaram, na época que as navegações chegaram lá, que os europeus se espantaram e tudo, anotaram tudo que tinha. Quando se tentou, depois, recuperar, se percebeu que lá nesses países ninguém anotou nada da chegada desses primeiros europeus, porque para eles era mais um estrangeiro chegando. Enquanto para os europeus era: “Chegamos a um mundo novo”, eles falavam assim: “Ah, chegou um cara aqui que disse que veio lá da tal da Europa”. Ponto, acabou. Era uma anotação ali do capitão do porto e nada mais.
Leonardo: Bom, falando da China, então, vamos para lá, e aí a gente vai falar do exemplo de cachorro lá na China, que tem o Panhu. É um cão, mas às vezes é dito como um cão-dragão. Foi isso que eu achei interessante, eu não vi muito falando como um dragão, mas sim como um cão-dragão. Aí toda vez que fala cão-dragão eu imagino o da História Sem Fim, que era um dragão com cabeça de cachorro.
Nilda: Realmente você vê umas representações de cabeça de cachorro muito parecidas com aquela lá. Talvez seja esse cão-dragão, que, quando cai no popular, a gente traduz apenas como dragão, mas, quando você vai estudar um pouco mais, você vê que não, que é um tipo específico de dragão. Não sei.
Leonardo: É, ele tem um nome, mas eu nunca lembro. Para mim, é sempre o dragão da História Sem Fim. Eu o chamo assim. E aí, no caso, o Panhu tinha ajudado um líder chinês a vencer a guerra. Ele que matou um general inimigo, e aí, em retribuição, ele pôde casar com a filha desse líder chinês, tanto que o pessoal dessa região que tem essa lenda, essa narrativa, o adorava e se dizia descendente dessa união do Panhu com a princesa. Eu vou chamar de princesa, porque era filha do líder. Aquela narrativa básica de validar a sua origem, isso é clássico em todo canto do mundo. Só que aí vocês devem achar estranho, cachorro e a mulher… bom, sei lá, mas ele se tornou humano para poder casar com ela. É mitologia, mas já fica menos estranho citando que ele se transformou em humano.
Nilda: Comparado com a mitologia grega, isso aí é fichinha.
Leonardo: Porém tem variações que mostram que ele não ficou 100% humano, porque fez a magia para ele se tornar humano e essa magia teria que durar 280 dias, mas ela foi interrompida um dia antes. Se não me engano, ele fica debaixo de um sino enquanto faz essa magia, e aí levantaram o sino um dia antes, então não completou. Então ele tem o corpo humano, mas tem a cabeça de cachorro. Mas quem vai dizer algo contra o amor? A mulher casou com ele numa boa. Vamos considerar que foi amor, e não coisa arranjada, porque foi o pai dela que a pôs, então não vamos piorar a história. Aí eles se casaram e tiveram esse povo. Não é a China em si, mas essas pessoas que seguem essa narrativa se põem como descendentes desse cão, do Panhu. Mais um exemplo de um cão com um corpo humano e cabeça de cachorro. O Tiangou também na China, lembra um pouco do Bul-Gae, porque ele está muito relacionado a essa questão do eclipse, de ele ter um espírito de um cachorro preto que tentou comer a lua. Então lembra um pouco do Bul-Gae, que a gente citou, e mais uma vez é algo para explicar o eclipse. Por isso que eu falei, isso é interessante, a gente vai ver em outras mitologias. E às vezes também é dito que ele é uma raposa, então mais uma vez algo mudando o animal, mas algo próximo.
Nilda: E é aquela coisa de mitologia de locais próximos, às vezes, tipo, a eclipse é causada pelo cão. Qual cão? Aí, dependendo do seu país, da sua etnia, é um cão diferente, por um motivo diferente.
Juliano Yamada: Interessante que a China também coloca a figura do cão como algo muito importante para eles. Lembra que o significado do cão para o chinês para o horóscopo, na astrologia, tem muito a ver com a personalidade do cachorro: é a fidelidade, a inteligência, aquela capacidade de perceber situações não estando próximo dela, que é quase como uma intuição, uma premonição que eles têm, que é basicamente associada aos sentidos, que eles têm mais aguçados que os nossos, então eles percebem coisas antes da gente.
Leonardo: Bom, e aí ainda aqui na Ásia, vamos para o Japão. E agora a gente chega àquele que eu falei que não duvido de ter relação com os pokémons, porque o nome dele é Raiju. Ele é um companheiro do deus xintoísta – que é do Japão – do trovão, Raijin, e esse Raiju é muitas vezes visto como um lobo branco ou azul, mas ele é feito de raios.
Nilda: É, mas eu gostei que ele acorda as pessoas, não é?
Leonardo: Porque, ouvinte, para você visualizar, ele é, como eu falei, no formato de um lobo branco feito de raios ou cercado de raios. Acontece que até aí ok, e ele costuma dormir no umbigo das pessoas, em cima do umbigo das pessoas. Então você está dormindo, você pode acordar com ele ali em cima da sua barriga. Se você acordar com ele ali, beleza, sorte sua, você conseguiu acordar, porque o problema é que, para acordá-lo, muitas vezes, o Raijin, o deus do qual ele é companheiro, joga raios nele, aí ele acorda o Raiju, mas a questão é o que sobra da pessoa. Então muitas vezes você foi acertado por um raio, a pessoa foi acertada por um raio – muitas vezes é isso. E aí outro que a gente tem ainda no Japão é o chamado Inugami. Ele é um youkai – a gente ainda vai fazer um episódio sobre youkais – que a aparência dele lembra a de um cachorro, só que é dito que ele pode possuir humanos. O que eu achei meio bizarro dele são algumas versões mostrando como faz para surgir, que você acaba enterrando um cachorro, e às vezes você enterra o cachorro e deixa só a cabeça de fora, e é de aí que surge. Aí algumas coisas variam um pouco, mas muitas vezes é isso. Às vezes você acaba tendo que cortar a cabeça do cão, é meio bizarro, bem pesado. Mas é um exemplo de entidade, e não é uma divindade, nada, é um youkai. Está mais para um espírito em si no formato de um cachorro.
Nilda: E tem muitos dele ou pelo menos tem muitas referências a esse cachorro sobrenatural na mitologia japonesa, e eles acabam utilizando muito em animes e coisas assim, porque é uma coisa muito presente. E tem algumas famílias que ligam – algumas famílias importantes -, digamos, sua história ou pelo menos seus símbolos heráldicos ao cachorro, por ser um animal importante.
Juliano Yamada: É legal falar sobre youkais em si, que, quando o termo youkai chegou ao Ocidente, ele foi quase que englobado junto com demônios, e youkais são, na verdade, criaturas só sobrenaturais. Elas podem ser tanto boas como más e neutras. Então elas não são sincréticas. Uma criatura boa para um povo pode ser má para o outro, mesmo ela não tendo mudança de personalidade, e isso acontecia com vários youkais.
Leonardo: Curiosamente, foi comparado com demônio, mas, a grosso modo, não se aprofundando nos youkais em si, mas eles estariam mais perto talvez dos daemons gregos – espíritos independentes de serem bons ou ruins, e tudo -, mas não dos demônios.
Juliano Yamada: É engraçado sobre Inugami até, tem certas mitologias que o englobam como um shinigami, não como um youkai. Ele seria um tipo de shinigami. São variações. Existe variação de cada um e o Inugami acho que é o que mais tem variações.
Nilda: Shinigami, para quem não sabe, seria um psicopompo, uma pessoa que conduz as almas ao outro mundo.
Leonardo: Mais um exemplo aí relacionado a psicopompo. Isso a gente vai ver mais vezes. No final, a gente conclui isso.
Nilda: É interessante isso em (inint) [00:30:43] (shinigamis) [00:30:44], porque tem muita história sobre os youkais, que o Yamada está falando, porque não são demônios, são espíritos, e a maioria das histórias deles, eles agem bem ou mal em relação a você – qualquer youkai -, dependendo de como você o trata também. Os inugamis eram ligados a algumas famílias. Algumas famílias, digamos assim, colocam-se sob a proteção de inugamis e, se alguém ali, se essa família faltasse ao respeito ou parasse de, digamos assim, dar as oferendas, o que fosse necessário, aquela família decaía – parou de progredir, porque parou de cultuar devidamente ou de tratar devidamente o inugami. Então o youkai – isso acho que com todos os youkais – tem isso, de como você o trata, ele te trata.
Leonardo: É, isso é interessante. O próximo exemplo que a gente tem também é um youkai e tem algo relacionado a isso, que é o okuri-inu, dito que caminha perto das pessoas, quando as pessoas estão indo em trilhas da montanha à noite. Ele fica ali próximo, porque, se ela cair, ele já a devora. Então é meio perigoso, você tem que tomar cuidado para não cair e tudo, você tem que tomar cuidado quando você vai descansar. Se vir que está muito cansada também, ele vai para cima da pessoa. E aí tem outras variações também de como fazer para ele não te seguir, tem vários relatos assim, narrativas de como fazê-lo não seguir, ficar protegido disso. Mas é um cachorro que estaria ali te seguindo – ou lobo, é dito às vezes que pode ser lobo ou cachorro – vai te devorar se você cair. Mostra muito essa questão do perigo ali do local onde a pessoa está indo.
Juliano Yamada: É interessante que essa lenda é forte até hoje lá no Japão, tanto que – não sei se alguém aqui já caminhou dentro de uma floresta ou algo do gênero -, quando você caminha dentro de uma mata fechada, não dá a impressão de que tem alguém andando perto?
Nilda: Às vezes dá.
Juliano Yamada: Quando você está mesmo com gente perto, mas você está caminhando sozinho, dá impressão que tem alguém andando ao longe. Essa sensação é associada a essa lenda no Japão até hoje.
Leonardo: Se você está lá no Japão, é isso aí; se você estiver em outros locais do mundo, podem ser outros seres, que cada local vai ter uma…
Juliano Yamada: Aqui no Brasil ou é o Curupira ou é um assassino.
Leonardo: Bom, ainda na Ásia, agora a gente vai para a Índia. Na mitologia hindu, a gente tem a Sarama e os Sarameyas. A Sarama é uma cachorra celestial, é dito dessa forma, e, no começo, ela não era retratada – no começo, tipo, há muito tempo. Se é coisa hindu, é bem antiga – como uma cadela, mas depois foi, e aí é dito que ela é mãe de todos os cachorros. A gente já deu um exemplo que seria assim, mas daqui a pouco vai ter mais, mas ela é mais um desses que é associado de ser cão de alguma divindade, meio cão de guarda ali, ajuda. No caso dela, é o deus Indra, porque ela ajudou a recuperar o gado do deus Indra, que tinha sido roubado. Aí ficou ali, foi companheira. Esses Sarameyas, na verdade, são os filhos dessa Sarama, por isso que o nome até significa isso, e são dois cães que possuem quatro olhos cada um – (inint) [00:34:09] falar dois, tem quatro, mas não, são quatro olhos cada um – e eles são cães de guarda do deus da morte, do Yama. Um exemplo ali, uma imagem que a gente vai ver repetida em algumas outras culturas.
Nilda: Ou seja, ao invés de várias cabeças, tem vários olhos.
Leonardo: Acaba passando ainda aquela ideia de algo vigilante. Outra mitologia que a gente vai aqui, outra cultura, é na Armênia. São parentes aqui, a Armênia – eu quero também fazer um episódio mais voltado para a Armênia, porque o que eu pesquisei, eu gostei, achei bem interessante, porque é pouco conhecida, mas ela é daquelas que se relacionam com as outras culturas próximas da região, que aí você vai encontrar deuses análogos aos gregos, aos babilônios, aos persas. Então é daquelas que são legais de pesquisar e ao mesmo tempo a pesquisa não acaba, porque fica confuso, porque não tem algo específico em si, mas vale a pena pesquisar. Então eu fiquei empolgado aí. Logo, logo, um episódio.
Nilda: Pela localização da Armênia – porque é na Ásia, mas já é na divisa com a Europa, bem pertinho da África – deve ter muita influência de tudo quanto é coisa ali mesmo.
Leonardo:> E aí na Armênia a gente tem o Aralez. São criaturas em forma de cachorro alado, e esses cachorros acabam ressuscitando os mortos em batalhas ou então acabam pelo menos curando quem está ali ferido, só que eles fazem isso com as lambidas, então eles lambem o ferimento e curam. Então, ouvinte, quando um cachorro te lamber… assim, lambeu? Ele tem asa? Está curado. Se não tem asa, está infeccionado.
Nilda: Cães alados… não tem muitas culturas com essas representações, que eu me lembre, viu?
Leonardo: É interessante, achei interessante. Agora, esse negócio da lambida já não é algo tão incomum assim. Pesquisando para a pauta também, eu vi que tem aquelas coisas populares que a própria lambida do cachorro em si cura. Eu acho mais fácil acontecer o contrário, mas tudo bem. É mais fácil infeccionar. Mas que quem começou isso, na verdade, estava falando de um Aralez, e não de um cachorro? Pode ter vindo daí.
Nilda: É, você tem que ver que tipo de cachorro é.
Leonardo: Um ressuscita; o outro termina de matar. Porque, como eu falei, se não tiver asa, vai infeccionar, e aí já vai de uma vez.
[Trilha sonora]
Leonardo: Bom, e aí a gente vai para outro continente. A gente vai para a Oceania, a gente vai falar dos maoris. Um exemplo que a gente tem dos maoris é o Irawaru. Ele é um cão, mas ele era marido da irmã do Maui. O Maui, quem não se lembra, é o, entre muitas aspas, Hércules dos maoris. É aquele semideus famosão, um dos personagens mais famosos lá da cultura deles. Digo Hércules entre aspas, porque, normalmente, é feita essa analogia por ser um herói, muitas vezes dito como um semideus, tem as aventuras dele. Então esse Irawaru era cunhado dele, ele era marido da Hinauri. Ele era humano, formato de pessoa, normal, mas aí o Maui ficou irritado com ele e o transformou em cachorro. Então ele originalmente não era assim. O que é interessante, que eu achei interessante dos maoris é que eu vi que cães lá são bem-vistos, eles recebem os melhores cortes das carnes, são considerados meio que sagrados. Lá têm uma vida boa, os cães.
Nilda: E que no Havaí eles também eram comida.
Leonardo: Uma coisa também não impede a outra, de repente.
Nilda: Não, não impede a outra. Aliás, é uma coisa que pouca gente sabe, mas, entre os polinésios, eles costumavam realmente comer carne de cachorro, porque, quando eles viajavam – eles viajavam nos barcos deles, que são a origem do nosso catamarã -, viajavam distâncias enormes sem saber direito o que tinha lá na frente. Isso pelo menos no início; depois eles passaram a conhecer toda aquela região da Oceania, eram os melhores marinheiros que existiam. Mas nisso eles levavam para as ilhas normalmente três animais: cachorro, porco e galinha. Eram as fontes de alimento, então eles foram espalhando esses três animais, e, tirando os peixes, quando eles não tinham outra fonte de alimentação, eram galinha, porco e cachorro. Mas todos esses animais também muito bem considerados entre eles também, porque ajudaram na sobrevivência deles por muito tempo.
Leonardo: Só hoje que a gente não dá valor para o animal que é a comida em si, só hoje que é coisa desprezada, feito às pressas, mas é natural que você vá reverenciar o que você vai comer também, porque é o seu sustento ali, tem a importância.
Nilda: É uma coisa que muitos antropólogos falam, às vezes, que a gente fica escandalizado, sei lá, que os esquimós, o povo inuíte matou as foquinhas, só que, na origem, aquilo era para alimentação deles e eles respeitavam, eles não matavam a foca para, por exemplo, retirar a pele e deixavam a foca, como muita gente fez no final do século 19, que só matava, tirava a pele para vender e deixava a carne lá do lado. Eles aproveitavam tudo que tinha ali e eles respeitavam, eles sabiam qual era a época de procriação, para não caçar. Quase todos os povos têm isso, porque é a sua fonte de alimentação e você respeita. Você tem histórias de indígenas da América do Norte que, depois de uma morte de um animal, você presta toda uma reverência. Entre vários indígenas brasileiros, você tem rituais de purificação para o espírito do animal não incorporar em você e se vingar de você. Tem tudo isso, então é respeito sobre a alimentação. Agora, a gente, não. A gente vai e comprar no supermercado e acha que galinha dá em bandeja de plástico. Fazer o quê?
Leonardo: E aí a gente vai para a Europa, e aí agora a gente vai ter bastantes exemplos, uma porque é o que a gente acaba tendo mais fontes, mas vamos lá para as diversas culturas dali. A gente começa pela cultura nórdica, que a gente tem quatro exemplos que se relacionam, que são: o Fenris ou às vezes chamado de Fenrir, que é o lobo mais conhecido na mitologia nórdica. Ele é filho do Loki e da giganta Angerboda. Ele, como eu falei, é o mais famoso, porque a gente tem o Garm, o Skoll e o Hati, mas às vezes é dito que tem a possibilidade de serem só desdobramentos do Fenrir – Fenrir ou Fenris. Esses outros três serem só desdobramentos. Porém, mesmo com o desdobramento, mesmo dessa forma, eles ainda têm papéis mais específicos. O Fenris é aquele que vai se soltar das correntes no Ragnarök e vai lutar contra o Odin, vai morrer e vai matar o Odin na luta, e é o que come a mão do Týr. Se eu não me engano, ele já comeu a mão do Týr, isso é antes do Ragnarök, aí por isso que até ele está preso. O Týr está sem mão, ele é preso, mas, quando soltar, aí vai ser no Ragnarök. Muitas vezes é dito ele sendo um lobo gigante, e o Fenris é dito como um lobo. Esse não varia muito. Os outros que eu falei já variam um pouco. O Garm também, se não me engano, é dito só como lobo, acho que não tem versão dele como cachorro. Ele você não encontra já tanto, mas ele tem muito papel de guardião no submundo. O Skoll e o Hati já têm um papel meio relacionado, que um vai caçar o sol, que é o Skoll, e o outro vai caçar a lua, que é o Hati. Eles são irmãos e esses aí às vezes você vê como cachorros. Às vezes é dito como lobos, mas às vezes é dito como cachorros. E é dito também que, quando o Skoll alcançar o sol que vai começar o Ragnarök. É um dos pontos iniciais ali do Ragnarök, quando ele consegue pegar. Falei de eles serem desdobramentos do Fenris, mas, quando não é ele mesmo, eles são ditos como filhos do Fenris. Aí fica aquela coisa: às vezes põe como cachorro, mas também põe como filhos dele – ele é lobo -, mas também pode ser o mesmo. Então, na verdade, é aquela coisa que a gente sempre fala: cultura nórdica não tem uma coisa única ali, uma linha para você seguir, então tem essas variações, é normal, mas é bom sempre lembrar dessas imagens desses quatro caninos – sejam lobos ou cães, não sei -, desses quatro seres ali, cada um com papéis específicos. E você vê que são seres monstruosos, mesmo que não fique pondo… no máximo, põem que eles são gigantes, nada muito além disso, mas já põem essa coisa como fera, são algo destrutivo, vão estar no Ragnarök, vão estar enfrentando os deuses. E a gente tem o Skoll e o Hati com a questão do eclipse. Esse negócio de eles pegarem o sol e a lua também, eles fazem relação com os eclipses solar e lunar. Mais uma vez isso.
Nilda: Muito interessante você ligar lobos e cães a eclipses.
Leonardo: E agora a gente vai para os gregos. Ouvinte, você já deve até saber qual é o primeiro que a gente vai falar, que é o mais famoso. Eu acho que deve ser o cão mais famoso das mitologias em geral, e é o da mitologia grega, é o mais famoso, que é o Cérbero. Ele é um cão mesmo, esse eu nunca vi em nenhuma versão pondo-o como lobo. Ele é um cão, porque até o cão dele é de cão de guarda. Ele é o que protege o reino de Hades. A versão clássica é de ele ser um cachorro com três cabeças, mas a gente encontra no Hesíodo, que é uma das fontes mais antigas, a gente o vê com 50 cabeças. Mas a mais famosa é a com três.
Nilda: Ufa.
Leonardo: Eu acho que a mais famosa é a de três porque é a mais fácil de representar, quer dizer, colocar 50 cabeças não é fácil. É muito famoso na narrativa do Hércules, é uma narrativa acho que das mais conhecidas que o mostra, que é a que o herói, em um dos 12 trabalhos dele, vai até o submundo para pegar, vencer o Cérbero e levá-lo para o rei Euristeu, que é o que tinha pedido todos esses trabalhos para ele, para mostrar que conseguia fazer, porque o rei estava querendo se livrar do Hércules, então: “É, a isso ele não vai sobreviver”. Mas ele vai lá, vai para o submundo, pede permissão para o Hades, o Hades deixa, fala: “Beleza, você quer enfrentá-lo? Enfrente, azar é seu, mas não o mate. Para isso, não use arma nenhuma, vai ter que ser no mano a mano, e, se você ganhar…”, ele já estava achando também que não ia, mas “Se você ganhar, você o traz de volta”. O Hércules falou: “Não, beleza, eu só quero ir lá, levá-lo, mostrar para o rei que eu posso”, e pôde. Enfrentou o Cérbero, venceu e aí levou o Cérbero desacordado lá para a frente do Euristeu, e o rei ficou assustado: “Caramba, o cara conseguiu mesmo” e aí pediu para ele devolver. Aí o Hércules o levou de volta.
Nilda: Só um comentário que me ocorreu agora: que desafio de pescador esportivo é esse, não é? Você vai, pega o bicho, mostra: “Peguei”, tira a foto e joga de volta.
Leonardo: É bem assim.
Nilda: É bem isso.
Juliano Yamada: E não só isso, que esse é o exemplo de como a gente acalma um cachorro brabo: acalma com agradinho. O Hércules acalmou com aqueles pães de mel, não é?
Leonardo: Não, não, esse aí foi na luta.
Juliano Yamada: Foi na luta?
Leonardo: Foi na luta. Isso que é interessante.
Juliano Yamada: Quem que acalmou o Cérbero?
Leonardo: O pão de mel foi a Psiquê.
Juliano Yamada: É verdade, foi a Psiquê, está certo.
Leonardo: É, a gente tem quatro relatos de como você… então, ouvinte, se um dia você for para o submundo e quiser voltar, já vê aí como você pode fazer. O Hércules foi no mano a mano, ele foi na porrada ali. Então, se você não tiver força suficiente para enfrentar, você pode… se você for um músico, você pode fazer que nem o Orfeu, tocar uma música lá e deixar o cão calminho. Foi como Orfeu fez quando ele foi atrás da Eurídice. O Enéias drogou o cachorro. O Enéias, de Troia, quando morreu… quando morreu, não, mas quando ele foi para o submundo, ele drogou o cachorro e passou por ele. Ou fazer que nem a Psiquê, que deu um pão para o cachorro. Pão, bolo, pão de mel, varia, mas deu comida para o cachorro. Eu aconselho talvez seguir a forma da Psiquê, talvez seja a mais fácil, porque as outras vão depender muito da sua habilidade ali. E as drogas, sei lá, coitado do cachorro. Mas segue a da Psiquê.
Juliano Yamada: E outra coisa: você dá comida para um cachorro, o cachorro já muda até de cara, ele já começa a abrir aquele sorrisão, já abana o rabo, já fica feliz da vida. Você quer agradar um cachorro? É só dar comida.
Leonardo: É, eu que o diga. O meu botijão aqui está mais do que… está gordo. Mas cuidado – até eu falei de ele começar a abanar o rabo – com o Cérbero abanando o rabo, porque tem versões que mostram que o rabo dele era uma serpente. Então cuidado. Mas o interessante dessa narrativa do Cérbero, da imagem do Cérbero em si… aliás, a gente tem o Manual dos Monstros, um episódio específico do Cérbero para se aprofundar mais. Mas na narrativa do Enéias e a da Psiquê, ele é mais um detalhe mais específico ali, é mais o obstáculo dos personagens, e aí eles já voltam. Não se aprofunda tanto. Na do Orfeu e do Hércules, é um pouco mais aprofundado, e, nessas duas, a gente vê que tem até um simbolismo nisso aí, que é: querendo ou não, você ir para o submundo e, com isso, você passar pelo Cérbero, é você enfrentar a morte. Você está indo ali, você está indo ao encontro da morte, e a forma como a gente enfrenta a morte é simplesmente com nós mesmos. A gente não tem nada ali para enfrentar, então o Hércules foi no mano a mano, não teve mais nada para ajudá-lo. O Orfeu mesmo que tenha tocado a lira, mas é a habilidade dele, então é algo intrínseco do personagem em si. Então você vê, as duas narrativas que mais se aprofundam nisso passam essa imagem: você enfrenta a morte por si mesmo, com o que você tem, com o que você é. Porque o Cérbero é bem um cão de guarda, então, se você não era para estar lá, ele não vai deixá-lo entrar. Apesar que ele vai devorá-lo e você vai morrer, aí você vai poder ir, mas, enfim. Mas ele também não deixa sair, então muitas vezes é dito que você pode até entrar, mas sair, ele não vai deixar, e as almas que já estão lá também não poderiam sair. Um outro cachorro que a gente tem – e é interessante, a gente falou do Cérbero – é o Ortros. Ele é irmão do Cérbero, só que, no caso, ele só tem duas cabeças. Às vezes põem ele com o corpo de serpente também. Ele era o cão de guarda do gado do Gerião. Aí tem a narrativa também do Hércules ter roubado os bois de Gerião – quem guardava os bois era esse cachorro, então mais uma vez um cão de guarda fazendo esse papel. No caso, ele é o irmão esquecido do Cérbero: só tem duas cabeças, não se fala muito dele. É sempre um irmão só que se destaca, e, no caso, o Ortros é meio esquecido. Não tem muito sobre ele.
Nilda: Mas é um cão trabalhador.
Leonardo: Sim, e tem duas cabeças. Aí eu estava pensando: dificilmente nascem só dois cachorros, mas aí, no caso, é um cachorro com três cabeças e outro com duas, então aí até que forma… a quantidade de cabeças está em uma quantidade até que ideal para uma ninhada, só que é um corpo só para cada. Um outro que a gente tem aí – cada vez mais desconhecido, o Cérbero é o mais famosão -, um outro grego que a gente tem é o Laelaps. Ele é um cão que o Zeus deu de presente – agora a gente vê o simbolismo do cão como item: dá de presente. Eu acho muito estranho isso, dar cachorro de presente para os outros, mas ok. Ele deu de presente para a Europa, que ela tinha tido os filhos com ele, três filhos, e aí deu o cão Laelaps de presente. Algumas narrativas mostram que ele é o Cão Maior. A constelação de Cão Maior é ele, porque ele é um cão que sempre captura a presa, só que aí ele estava caçando uma raposa que era a raposa que nunca era pega, então cria-se esse paradoxo, e aí ele é o Cão Maior e ela é o Cão Menor. E aí, se não me engano, Zeus, por causa disso, de ficar essa perseguição eterna, os colocou no céu e viraram as constelações.
Nilda: Um bom lugar para mandar quem serviu bem aos deuses, não é?
Leonardo: Ah, sim. Agradou aos deuses, eles se transformam em constelação. O próximo que a gente tem aqui não é necessariamente cachorro, ou melhor, cachorra, por se assim dizer, mas são seres relacionados a isso. A gente vai falar agora de Cila, de Hécate e das Erínias. A deusa Hécate é muitas vezes relacionada com cachorro, muitas vezes é dito de ela ser acompanhada por cães e às vezes a chamam de cadela ou de loba, mas não necessariamente mostrando que ela é uma loba, mas que isso é uma imagem dela, e isso acaba se estendendo também para a Cila, que aí principalmente porque tem algumas versões que põem que Sila é aquele monstro que Ulisses enfrentou quando estava voltando para… enfrentou não, se salvou ali quando estava voltando para a terra dele na Odisseia. Em algumas versões, ela é filha da Hecate ou Hécate. É dito que o formato dela tem relações com cachorros, porque, quando se aproxima de onde ela fica, começa-se a ouvir os latidos, saem cachorros do corpo dela ou às vezes é ela latindo. Então fica essa versão. Ou então que parte do corpo dela é parte de cachorro. Então é uma coisa monstruosa mesmo, é bem bizarro, mas faz essa relação com cachorro. E as Erínias também, colocam-nas com relação com cadelas, que é dito que você ouve os latidos quando elas estão se aproximando, então, se você começar a ouvir latidos de cachorras – sempre dito no feminino -, é porque as Erínias estão indo atrás de você. Então cuidado. E aí a gente vê nesses três casos, principalmente o da Hécate quanto o das Erínias, que é muito aquela relação do cachorro também com aquele quê noturno, voltado também para a lua – a lua acaba também sendo mais um elemento disso, muito aquela coisa noturna e assustadora. As Erínias eram algo perigoso, Cila é algo perigoso e a Hécate também é algo um tanto quanto… é bem sombria, tem que ter um certo cuidado, então é aquele perigo noturno, quase um quê fantasmagórico, que a gente vai ver isso muito em uma outra cultura a seguir. O próximo exemplo aqui, ainda nos gregos, a gente tem o do Maera. Esse bem desconhecidão mesmo, mas eu quis trazer, porque ele é mais um que foi para o céu ali. É uma narrativa relacionada ao Dionísio, que aí esse Maere era um cachorro, um cão de caça, da Erígone, e, no caso, Erígone é a filha de um cara chamado Icário. Ele foi envenenado, ele morreu e aí ela, por causa disso, preocupada com o pai, quando viu isso aí, acabou se matando e o cachorro também. Ela se enforcou e o cachorro pulou de um penhasco. O Dionísio ficou puto com isso, de eles terem se matado por causa da morte do Icário e puniu a cidade lá de Atenas com uma praga. Aí depois eles conseguiram fazer ritos a esses que morreram, fazer honras aos que morreram – apaziguou. Mas eu quis trazer esse, porque o Dionísio também elevou esses três como constelações, e aí, no caso, a da moça até é a constelação de Virgem, e aí ficaram ela, o pai dela e o cachorro: estão lá no céu. Por isso que eu falo, se um deus gostou de você, quando você morrer, você vai para o céu, e para o céu espaço sideral, porque você vai virar uma constelação. Um seguinte aqui que a gente não vai precisar se aprofundar, porque mais para a frente a gente vai ter episódios mais focados nisso, apesar de que a gente já tem um episódio sobre lobisomens, então a gente o cita, que é o Licáon. A grosso modo, é o lobisomem grego, porque ele foi um cara que Zeus tinha ido visitá-lo e aí ele deu carne humana, ele ofereceu carne humana, e aí perceberam isso e aí o amaldiçoaram na hora ali, transformou-o já em cachorro. E, mais uma vez, às vezes é dito como cachorro, às vezes é dito como um homem com cabeça de cachorro. E Licáon – a palavra você vê que já está relacionada ao licantropo. E agora um exemplo indo para Roma ali, e isso, muito importante: para Roma, que é a própria loba capitolina. Essa loba é a que amamentou Rômulo e Remo, os fundadores de Roma. Fica aqui a indicação já da narrativa que a gente tem na antologia Mitografias. No volume dois, a gente tem sobre a loba capitolina – ou a lobisomem capitolina.
Nilda: É, e o pessoal pode achar estranho, mas capitolina é porque tinha a estátua dela no Capitólio, que era um local de Roma.
Leonardo: É, isso não é o nome dela em si dentro da narrativa, mas ela é conhecida agora dessa forma. Sempre quando você falar loba capitolina, é ela, mas é por causa do local onde está a estátua – estátua famosona. Se você digitar, você vai ver, é um dos símbolos ali de Roma, porque está relacionado à origem. Bom, a gente passou pelos gregos, deu um pulo ali com os romanos e agora a gente vai para a Bretanha. E aqui é bem interessante para ver um simbolismo forte que se tem, uma imagem forte. Vou até só dar um exemplo aqui, que é o Barghest – o Barghest, não é assim? Que são cães negros, são assustadores, são fantasmagóricos, e eles assombram o norte da Inglaterra e também prenunciam morte. Então, se você começa a vê-lo, é porque a morte está ali perto.
Nilda: Os britânicos têm muito isso de ver um cão e achar que é morte, um cão negro.
Leonardo: Sim. Ouvinte, você que já foi ou você que é aí da região da Inglaterra, da Bretanha ou mesmo norte da Europa, isso é muito forte aqui na cultura britânica, mas tem no norte da Europa, em outros locais ali, mas você já deve ter visto algum cão fantasma, algum cão negro – é sempre posto como um cão negro, fantasma. Se não viu e for para lá, vai ver, porque tem muito. A quantidade de cães negros fantasmagóricos ou infernais nessa região é muita, e é muita não só na ideia de ter relatos, é muita nos tipos, então tem esse Barghest, tem outros com outros nomes. Você tem muitas narrativas de cães diferentes, mas sempre com essa ideia, tanto que eu nem vou aqui citar, porque são muitos ali. Mas sempre tem e é sempre essa ideia: é um cão negro, às vezes um pouco maior e tudo, mas ele é assustador e ele tem esse quê infernal e quê fantasmagórico.
Juliano Yamada: É interessante que a história do Sherlock Holmes, O Cão dos Baskerville, é baseada em um hound, em um cão negro, que também pode ser chamado acho que de hell hound.
Leonardo: É, hell hound é esse tipo desse cão fantasmagórico e tudo, então é muito comum lá. É assustador.
Juliano Yamada: Até no terceiro filme do Harry Potter, acho que é o Prisioneiro de Azkaban, também cita o cão negro, a lenda do cão negro.
Leonardo: E você vê que é um quê folclórico, porque é aquela coisa que cada região ali tem do seu estilo, é algo que dura até hoje, não é aquele conceito mítico que é dos povos antigos. Não, você vê até hoje aí, por isso que eu falei: se você for para lá, você vai encontrar um com certeza. Ainda aqui na Europa, a gente vai para a Catalunha, e aí a gente tem – eu achei muito legal esse, eu fiz questão de colocar – o Pesanta. É um cachorro grande e preto também, mas ele tem um papel bem específico, que ele tem patas de aço e buracos nela – buracos nas patas. Bem estranho isso aí. Mas o que é marcante nele é que, quando você está dormindo, ele entra na sua casa, sobe no seu peito e faz você ter pesadelo. Ou seja, é mais uma versão da paralisia do sono. A paralisia do sono, que, em inúmeras culturas, tem a sua versão mítica, a sua versão sobrenatural – aí na Catalunha a gente tem o Pesanta.
Nilda: Nossa, e esse detalhe de ele ter patas de aço eu achei bem diferente isso, não é um cão normal, é um ciborgue.
Leonardo: Eu acho que acaba passando a ideia do peso dele, que, querendo ou não, ele vai ser um cachorro, um ser que vai estar ali em cima de você te amassando, que é a paralisia do sono: você está travado. Acho que a pata de aço ajuda nisso. No caso, agora, a gente falando da mitologia finlandesa, a gente tem o Surma, que tem esse formato de ser um cachorro grande, só que ele tem uma cauda de cobra e ele transforma as pessoas em pedra. Bem esquisitão, mas, como eu falei, é dito como um cachorro grande. Então é um monstro, bem a ideia de ser um monstro ali, mas o foco dele é ser um pouco de cachorro. Ele está muito relacionado com o conceito de morte, tanto que ele guarda os portões do reino dos mortos.
Nilda: Essa ideia de cachorros serem guardiões sempre de várias coisas: das pessoas ou dos mortos.
Juliano Yamada: Você já tentou entrar em uma casa que tem cachorro? Mesmo o dono mandando os cachorros ficarem quietos, eles vão tentar ou te impedir ou ficar pulando em cima de você. É difícil entrar em uma casa com cachorro.
Leonardo: O meu, eu falo, é bem que nem o Cérbero mesmo naquele sentido de que você pode entrar, mas não pode sair, porque o meu fica puto quando você sai de casa. Se você entrar, ele vai ficar feliz: “Olha, mais alguém para me dar comida”, fazer o que for. Aí agora vai sair. Aí ele fica puto.
Nilda: Agora vamos para um cachorro estranho, dos eslavos, não é?
Leonardo: É, o próximo aqui é da cultura dos eslavos, e alguns ouvintes pediram, a gente também está prometendo aí um episódio sobre mitologia eslava, vai ser interessante. Mas aí dando só um personagem deles lá, que é o Psoglav. Ele tem corpo humano, então, mais uma vez aquele conceito básico: tem corpo humano, cabeça de cachorro. Só que ele não para só nisso: ele tem corpo humano, cabeça de cachorro, mas as pernas são de cavalo, tem dentes de ferro e ele só tem um único olho. Ele é um ciclope. Eu o pus nessa lista porque, quando você pesquisa cachorros em mitologia, você o encontra, mas ele podia estar quando falasse de cavalo, podia estar o que for, porque ele é uma mistura.
Nilda: Ele é uma quimera.
Leonardo: É, é um ser quimérico.
[Trilha sonora]
Leonardo: Bom, agora a gente sai da Europa e vai para o Novo Mundo: vamos para a América, e aí a gente vai falar dos inuítes. Dos inuítes, a gente tem como exemplo o Amarok. Ele é um lobo gigantesco e que persegue as pessoas quando as pessoas saem para caçar à noite. Lembra um pouco lá o youkai que vai atrás das pessoas quando as pessoas estão à noite ali sozinhas andando, mas é aquela coisa: por ser um perigo. Então sai para caçar à noite, isso é perigoso, você tem o risco de se encontrar com esse Amarok. No caso, ele é um lobo gigantesco, mas os inuítes também têm outros exemplos de monstros com um quê também de cachorro, e aí lembrando um pouco do último exemplo que a gente deu: é cachorro porque ele tem algumas partes de cachorro, mas é mais a ideia mesmo de ser um monstro mesmo ali. Vão ter outras partes em vários ali. Mas esse do Amarok é o mais que você vê como um lobo mesmo, só que gigante.
Nilda: Fico imaginando: ele persegue as pessoas que saem para caçar à noite e sozinhas. Dependendo da época do ano, essa noite são meses, não é?
Leonardo: É, então, é perigoso. Bom, a gente vai descendo aí pela América, a gente chega aos Astecas, e aí a gente tem o Xolotl. Ele é um deus da morte e ele é representado como um esqueleto ou, às vezes, algo já mais monstruoso, mas muitas vezes como um cachorro ou, mais uma vez, cabeça de cachorro – então corpo humano, cabeça de cachorro -, ou então acompanhado de um cachorro. Ele tem o papel de psicopompo, então aqui a gente vê bem semelhante com o Anúbis. Não só o Anúbis, mas bem semelhante com o Anúbis no sentido de que é uma divindade mesmo, não é um monstro em si – mesmo que tenha uma aparência monstruosa, não é um monstro, é uma divindade -, está relacionado à morte, é um psicopompo e às vezes é representado com corpo humano e cabeça de cachorro. Bom, a gente falou dos astecas, do Xolotl, mas a gente também tem o Ahuizotl – Ahuizotl. Com certeza não é a pronúncia certas, mas… está aí para vocês terem noção como é.
Nilda: É, um dia a gente vai aprender a falar nauhatl, que é uma dessas línguas aí.
Leonardo: Aí a gente tem ele, que é um monstro antropófago, ou seja, é um monstro que vai te comer, ouvinte, comer pessoas. O outro era um quê mítico, uma divindade, ali tudo, era uma crença dos povos mais antigos ali; esse é mais folclórico até naquele sentido de que tem as lendas, tem várias descrições, é algo que ainda se falaria mais atualmente. Mas é no formato de um cão. Às vezes, põe como um cão pequeno, mas ainda assim ele é assustador. Só que às vezes ele tem um quê meio também quimérico, porque põe com pata de macaco. Então é muito aquela ideia de: é um cão, mas é para ser um ser monstruoso.
Nilda: E ele é ligado à água, à beira de rio, beira de lago. Ele atrai as pessoas para lá para atacá-las. E a questão de ser um cão pequeno não faz muita diferença, não, viu? Porque o cão grandão, você já fica com medo; o pequeno, você não leva muito em conta, ele avança na sua garganta e acabou, não precisa de muito mais do que isso, não.
Leonardo: É, e às vezes você vê algumas representações dele, ele parece uma lontra, e tem até uma relação com coisa de lontra. Então por isso que eu falei que é bem folclórico, porque é muito aquela coisa de que você vai a um local, vai encontrar uma narrativa daquele lado, o pessoal do local, e às vezes isso está relacionado com um animal daquela região; de repente, em uma outra região ele vai ter uma aparência um pouco diferente, porque se relaciona com outro animal. Então às vezes pode ser um gambá, uma lontra mesmo, um castor. Esses animais podem ter servido de inspiração para esse ser. Bom, ainda na América, a gente tem os cadejos. É mais um exemplo disso, de serem cachorros que atacam viajantes, e aí são espíritos. Alguns são vistos como para proteger e às vezes são vistos para atacar. Geralmente vai pela cor do cadejo. Mas esse do cadejo até que é bem conhecido. Não vou me aprofundar aqui, para não ficarem muitos exemplos, mas o cadejo já é mais conhecido. Eu não sei o quanto aqui a gente tem disso aí, mas no local eu sei que é algo já mais popular mesmo. Bom, a gente está na América, passando por outros povos, mas vamos para algo mais próximo: já vamos para a cultura guarani – pelo menos mais próximo geograficamente. A gente vai para a cultura guarani, que a gente tem o Teju Jagua. O formato dele é que nem eu falo: o pessoal às vezes quando vem com desdém de seres fantásticos daqui da nossa região, o dele é para ninguém falar mal, porque ele tem um corpo de lagarto gigante, com várias cabeças, é representado com várias cabeças e aquela cabeça com um pescoção bem draconiano, de serpente, e cada uma dessas cabeças, na verdade, é de cachorro. Então por isso que ele está na lista. Eu não o conhecia muito, não. Eu achei bem legal.
Nilda: E o nome descreve exatamente o que é, porque Teju é um dos nomes para lagarto mesmo, e Jagua é para cachorro. Realmente é para assustar.
Leonardo: Eu gostei disso aí. Eu não conhecia muito a fundo, e esse é um dos que vale a pena, quando a gente se aprofundar em cultura guarani, falar mais, para falar certinho todos os detalhes, o que faz, porque em alguns locais eu vi que até ele é considerado uma divindade mesmo, ele é um deus em si. Então é interessante. Mas, ouvinte, você viu que desses a gente falou mais por alto, esse e o restante dos da América, uma porque a gente já falou de vários aí e esses compensa até se aprofundar mais quando for específico dessas culturas, porque, por exemplo, grego já é bem conhecido, a gente já tem muita coisa ali, então dá para se aprofundar mais, mas esses são legais mostrar para a gente ver que em todo canto do mundo tem representações do cachorro em diversas formas.
[Trilha sonora]
Leonardo: Você viu, ouvinte, que em muitos exemplos a gente mostrou que é um corpo humano e uma cabeça de cachorro. Isso tem até um termo: cinocéfalo. Cinocéfalo é isso, é ter corpo humano e cabeça de cachorro. Então, se você, na rua, encontrar alguém assim, é um cinocéfalo. Vai que, não é?
Nilda: É para chamar com o nome correto, você tem que chamar a pessoa certo. Inclusive, se você quiser xingar alguém, às vezes também serve. Até a pessoa descobrir o que é.
Leonardo: Dá até um certo xingamento meio culto, não é? Porque não é uma palavra muito usada, então a pessoa vai ficar até meio… você vai ter que correr para o dicionário para ver o que é. E aí esse é um conceito bem comum, é uma imagem bem comum na história em geral. A gente tem o Anúbis, que é o melhor exemplo disso, mas você viu que os exemplos que a gente foi passando aí, tem vários, e na Idade Média você encontra muita representação assim de santos inclusive. A gente tem o São Cristóvão. São Cristóvão é um santo com cabeça de cachorro. Tem historiadores antigos – que não seriam bem historiadores, mas, enfim – que descrevem que viram isso na Índia. Quando foram para a Índia, viram seres assim. Então tem muita iconografia – estava tentando lembrar o nome. Tem muita representação disso, de cinocéfalos.
Nilda: Ou seja, não é uma ideia totalmente, digamos assim, que ninguém nunca teve nunca; muita gente teve sempre.
Leonardo: Pelo contrário, é, é uma coisa bem comum. Talvez a gente não veja tanto por aí em representações, a gente está mais acostumado com a ideia do Anúbis, por ser um deus mais popular ali e tudo, mas esse tipo de representação é muito comum. Querendo ou não, agora, se a gente for pensar em um ser humanoide com cabeça de cachorro, no popular, a gente vai pensar em um lobisomem, e aí a gente já não pensa necessariamente um corpo 100% humano; a gente vai pensar em um humanoide, mas ali com a pata também, aquela coisa, monstruosidade do lobisomem. Mas tem uma certa relação com isso aí, é um ser humanoide e a cabeça é de um cachorro ou de um lobo. Mas esse não é o único padrão que você, ouvinte, deve ter percebido aí que a gente citou: além do que eu falei, de ser um corpo humano com cabeça de cachorro, é interessante notar esses outros padrões que se repetem. O mais comum, querendo ou não, é de ver o lobo e o cachorro como uma fera, um ser monstruoso, algo perigoso, e aí a gente tem o Cérbero também como isso, mesmo que ele não seja um vilão em si. Ele está no papel ali, mas ele é perigoso, é um monstro. A gente tem esses cães fantasmagóricos, que, sério, eu fui pesquisando isso aí e eu fiquei com medo de ir para essa região, porque parece que toda esquina vai ter um, porque a quantidade que tem é muita. Então parece que lá só tem cão fantasmagórico e bem com essa ideia de assombrar mesmo, bem de causar mal ali. E nisso está esse aspecto de uma fera, um monstro, e aí muitas vezes, nisso, você o vê como lobo.
Nilda: É isso que eu fico pensando, o quanto dessa imagem do cão-fera vem dessa lembrança que você tem deles ainda lobos, de eles serem perigosos, porque se tem os cães de guarda, tem outros tipos de cães, mas essa ideia ainda fica, do animal perigoso. E a gente sabe que, se, por exemplo, você deixar animais de rua, vários cães soltos e coisa, eles formam gangues, formam grupos que ficam perigosos.
Leonardo: Warriors versão canina.
Juliano Yamada: É a personalidade feral. Eles começam a ser territorialistas, então eles começam a atacar outros animais domésticos próximos para criar um território. Eles ficam mais ferozes, eles vão atrás de comida de forma violenta, eles atacam pessoas.
Leonardo: Estão unidos, aí até aquele cachorro mais bundão vai pegar coragem ali, porque está com o grupo.
Nilda: Tem um documentário sobre New Orleans depois do furacão Katrina, que detonou tudo lá e tudo mais, e eu sei que parece, na reconstrução, começaram a filmar essa questão de vários grupos de cachorros, que a cidade foi devastada, abandonada, depois teve que reconstruir e tal e muitos animais ficaram abandonados. E o pessoal que começou a filmar percebeu que tinha um grupo de cachorros que eram vários cachorros: eles (atuavam) [01:13:46], eles roubavam comida, eles caçavam e eram liderados por um poodle. Só precisa de inteligência. E poodle é irritante, ele deve ter ficado gritando tanto que falaram: “Ah, vai, deixa você ser chefe de uma vez, senão ninguém mais tem sossego”.
Leonardo: Mas é, então a ideia de ver o cachorro ou, mais ainda, o lobo como um animal, como algo bestial, perigoso, é natural. Lembra que eu até falei: do lobo deve ser tão complexo quanto o da serpente. Da mesma forma que a serpente, a gente tem essa imagem do perigo dela – não fica só nisso, mas tem -, do lobo seria também. Se você imaginar um ser monstruoso ali com corpo, algo encorpado mesmo, a gente vai ter o lobo. Mas a gente falou aqui, parece que só é do mal, mas não, a gente tem também um outro padrão, que é vê-lo como um ajudante, e aí a gente já vai mais até para o cachorro mesmo. Um dos exemplos ali é o Cérbero: mesmo ele sendo algo monstruoso, ele é um cão de guarda. O Ortros também é, e a gente viu outros exemplos aí, diversos cães sendo companheiros das divindades. Então aí a gente já pega essa união que o ser humano tem o cachorro. Isso se reflete também nos mitos.
Nilda: E dizem que uma das primeiras utilidades do cão é isso, de ajudar na vigília noturna, dos lobos e tudo mais, que se uniram aos humanos. É ficar nessa, porque a noite é muito assustadora. Quando começou a ter grupos humanos, tinha que ter aquele um que ficava acordado à noite para se prevenir de feras, e, se tem uma outra fera que te ajuda, (inint) [01:15:34] é muito bom.
Leonardo: É, e mais uma imagem que a gente viu muito comum aí é a dos eclipses, que são os cachorros, os lobos tentando devorar o sol e a lua. Todos que colocavam isso, colocavam a relação com o eclipse. Isso eu achei interessante. Eu fico imaginando se de repente a ideia de o lobo uivar para a lua, entre aspas, não poderia ter relação com isso. Você vê, assim, toda noite ali o lobo fica uivando para a lua, em direção à lua. Ele uiva: em uma noite faz isso, na outra também. De repente, em uma noite você não vê mais a lua. Foi o lobo que engoliu. Eu fico imaginando que essa relação de o lobo ser um ser noturno, apesar de que eclipse também teria a questão do sol e tudo ali, mas eu acho que pode estar relacionado a isso de uivar para a lua. São imagens que a gente pode, de repente, fazer uma conexão. São coisas que, quando a gente se aprofundar mais no lobo, em futuros episódios, a gente vai além. E, por fim, a gente tem a imagem do psicopompo. Isso que eu acho muito legal, eu gosto muito de psicopompos, e a gente tem muitas imagens do cachorro e do lobo nisso. É interessante já deixar claro aqui que muita gente confunde achando que o Cérbero é um exemplo disso, mas o Cérbero não entra como um psicopompo, porque ele não te guia. Por mais que ele esteja relacionado com morte, que ele viva lá, ele, na verdade, é até um obstáculo. É o Hermes que leva você até lá. O Cérbero não entra nisso aí. Mas a gente tem outros cachorros psicopompos, como o Anúbis, por exemplo. Ele é o melhor exemplo disso aí. O que eu acho legal, vendo o cachorro como psicopompo, é porque a gente pega: o cachorro e o cavalo são seres psicopompos e são seres que sempre estiveram bem próximos do homem, seja usando como montaria ou como ajudante – ajudante de caça é o cachorro. Então são animais próximos do ser humano que o ajudam a guiar, e aí a gente vê como o ser humano é perdido e todo animal que está próximo ali ele usa como psicopompo para poder guiá-lo. Então essas são as imagens que a gente foi vendo de padrão que a gente vê repetindo no mundo inteiro: como fera, como cão de guarda, como ajudante, como devorando o sol e a lua ou então como psicopompo. O cachorro e o lobo, em diversas culturas, com papéis que se repetem em alguns casos.
Nilda: Interessante isso dos cães serem guias, porque de onde a gente tirou a ideia de que os cães vão levar para algum lugar, que eles também não se perdem?
Leonardo: É por isso que eu falo, o ser humano é todo perdido, então qualquer animal que conseguir se virar melhor, vai usar melhor para guiar. Mas é bem interessante ver todas essas imagens e ver o quão é aprofundado. Como eu falei no início, esse episódio ia ser algo tranquilo: “Vou fazer meio de brincadeira, me divertir pesquisando”. Claro, me diverti pesquisando, mas, quando eu fui pesquisando: “Caramba, não acaba mais”. Ouvinte, alguns aqui a gente passou só por alto para poder ter bastantes exemplos, mas tem muito exemplo.
Nilda: Dependendo da pauta, a pior parte dela não é nem a pesquisa, é o que você vai tirar, o que você não vai colocar.
Leonardo: Sim.
Nilda: É o corte ali do que você não vai colocar.
Leonardo: Então, ouvinte, como eu falei aí, faltou muito exemplo, porque tem muitos exemplos mesmo. Então fique à vontade aí de citar outros que tenha, mostre esse episódio para o seu cachorro aí, deixe-o feliz. Só não fale que cachorro não existe, como a gente falou no início, senão vai criar uma crise nele, mas fique à vontade aí. Espero que tenha gostado desse episódio e, quem sabe, no futuro a gente faça de gatos também. Vamos ver, não sei. Talvez, não sei. Vocês têm que me convencer a falar sobre gatos.
Nilda: Essa aí você deixa para os curitibanos da equipe fazerem, que eu ouvi falar que eles gostam muito de gatos.
Leonardo: Mas esse aí que foi feito, principalmente que está todo mundo em quarentena, então tinha que fazer um episódio sobre os nossos colegas de trabalho, porque agora é tudo colega de trabalho, porque está o pessoal trabalhando em casa, então quem tem cachorro está com o colega de trabalho. O meu colega de trabalho é daqueles que não fazem nada, que vem, me acorda cedo e fica aqui dormindo no escritório. Mas é isso, ouvinte, fica à vontade de comentar. Passe outros exemplos aí. Como eu falei, falta muita coisa aí para se aprofundar e vamos ver no futuro aí de fazer outras pautas com esse simbolismo, com essa imagem do lobo e do cachorro, que dá para se aprofundar bastante nisso. Esse foi focado em te mostrar alguns exemplos aí. Espero que tenha gostado e até mais.
[Trilha sonora]
[01:21:43]
(FIM)