Papo Lendário #216 – Mitologia Khoisan

Nesse episódio do Papo Lendário, Leonardo Mitocôndria, Nilda Alcarinquë e Juliano Yamada conversam sobre a cultura, crença e mitos dos povos Khoisans.

Conheça quem eram esses povos africanos, e entenda a importância que eles possuem para a humanidade.

Veja como era a relação desses povos com diversos conceitos como morte, chuva, animais, etc.

Ouça sobre Tsuigoab, Gaunab, Heitisi-eibib e outros personagens míticas.

– Esse episódio possui transcrição, veja mais abaixo.

— LINKS —

Aula sobre as línguas dos povos Khoisans

Vídeo sobre os Khoisans

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— EQUIPE —

Pauta, edição: Leonardo Mitôcondria
Locução da abertura: Ira Croft
Host: Leonardo Mitôcondria
Participante: Juliano Yamada
Participante: Nilda Alcarinquë

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— Agradecimentos aos Apoiadores —

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Rafa Mello
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— Transcrição realizada por Amanda Barreiro (@manda_barreiro)

[00:00:00]

[Vinheta de abertura]: Você está ouvindo Papo Lendário, podcast de mitologias do projeto Mitografias. Quer conhecer sobre mitos, lendas, folclore e muito mais? Acesse: mitografias.com.br.

[Trilha sonora]

Leonardo: Muito bem, ouvintes. E no episódio de hoje vamos falar aí de uma cultura, e mitologia, e crenças de um povo um pouco desconhecido. Vamos sair um pouco do padrão, vamos para a África. E hoje comigo estão o Yamada…

Juliano Yamada: Olá a todos.

Leonardo: … e a Nilda.

Nilda: Olá, olá.

Leonardo: E aí nós vamos conversar sobre esses povos que é dos khoisans – ou coissãs, dá para falar das duas formas. Falar um pouquinho primeiro da pauta, da criação dessa pauta. Inclusive, ouvinte, eu gosto às vezes de mostrar para vocês como foi a criação em si da pauta, as pesquisas, os perrengues que passo. Me digam se vocês acham isso interessante, porque é legal mostrar como que evoluiu de só uma ideia para todo um episódio. Então me digam se vocês acham isso interessante. Mas algumas aí que têm uma certa evolução eu acho legal a gente mostrar para vocês. Essa pauta, inclusive, começou com o objetivo de a gente falar de alguma mitologia africana que fosse diferente da egípcia ou da iorubá, porque essas a gente já citou aí outras vezes. Então a escolha dessa mitologia em si foi um pouco aleatória, mas foi interessante que, com o tempo, eu fui descobrindo cada vez mais sobre os povos relacionados a essa cultura, e aí deu para ver a importância e complexidade que eles têm. No final do episódio, a gente faz considerações das características, dos mitos, dos deuses e da cultura em si deles, mas já de cara, quando eu comecei a pesquisar, deu para perceber o quanto foi difícil fazer a pesquisa em si. Primeiro que a gente encontra pouca coisa dos personagens, tanto que a gente vê livros de mitologia e cultura grega, nórdica, egípcia, mas, quando a gente vê algo relacionado aos povos aqui que a gente vai citar nesse episódio ou outros que são da África, a gente vê apenas em livros relacionados à África como um todo ou então, em livros de mitologia geral, a gente encontra um pouquinho de uma cultura dessas. Então livro que rode o mundo todo, Europa, África, Oceania, Ásia, tudo, a gente vai encontrar uma página ou duas dessa cultura, de uma cultura africana ali. A gente tem livros focados em mitologia grega, focados em cultura e mitologia nórdica, egípcia, tudo assim, mas a gente, quando vai ter algo da África… quando é focado na África, é focado na África, não é focado em alguma cultura específica da África, excetuando quando é Egito, que aí você encontra, ou então quando é iorubá, que aí, por questões religiosas – acho que é muito voltado a isso, questão religiosa -, você até encontra voltados para iorubá. Mas ainda assim é mais fácil encontrar voltados para umbanda e candomblé, que não são iorubás, mas estão relacionados. Agora, culturas que são da África, que não são egípcia nem iorubá, é difícil você… na verdade, eu nunca encontrei um livro específico de alguma cultura. Vocês vão encontrá-los quando é sobre a África como um todo.

Nilda: Existem alguns livros não mais publicados ou publicados só lá fora sobre um ou outro povo, mas muitos deles são aqueles livros que coletaram curiosidades daquele povo no final do século 19, início do século 20, quando a antropologia estava começando como uma especialidade acadêmica, e muito dela com uma visão extremamente europeia da coisa: “Vamos falar sobre esse povo exótico aqui”, e nisso com um monte de deduções sobre o povo. Bem no início, você não pegava para saber… não havia uma convivência com o povo. O europeu chegava lá, ele via e ele interpretava o que ele estava vendo segundo a cultura dele. Então às vezes você encontra algumas coisas, mas nenhuma delas confiável.

Leonardo: E o problema é que isso ferra as pesquisas atuais, porque muitas vezes o que sobra é isso. São essas coisas que os antropólogos, o pessoal que foi até lá estudar e interpretou de forma errada, e aí a gente fica nisso. Principalmente porque, por mais que a gente tenha culturas, mitologias antigas, gregas, celtas, que também correm o risco de ter uma interpretação errada e que são outras culturas, por mais que estejam próximas, é mais próximo de nós, então é mais fácil e teve muito mais tempo, principalmente grego – grego é o principal nesse ponto -, de analisar e reanalisar. E, querendo ou não, a gente veio mais diretamente dessa cultura, então a gente faz uma ligação mais próxima. Agora, você pegar uma cultura mais distante, seja temporal ou geograficamente, conceitos vão estar muito diferentes. Isso teria para muitas culturas africanas, mas acho que os que a gente acaba vendo melhor isso são povos ameríndios. Quando a gente vê muitos povos daqui, a gente vê que eles têm um conceito totalmente diferente da gente, sejam conceitos numéricos, conceitos do que é vida, do que é morte, do que é qualquer coisa da realidade, e aí a princípio acabam vindo interpretações erradas. Com o tempo que a gente vai entender realmente o que eles estavam querendo dizer com cada coisa ali. Mas aí você pega estudos atuais, a gente pega livros atuais, mas que advêm do que foi estudado, do que foi descoberto nessa época de povos africanos, das diversas culturas africanas, corre esse risco de lá no início ter sido mal interpretado.

Nilda: E depois, com toda a colonização, boa parte dessa cultura se perdeu, você não tem como recuperar. A antropologia mudou com o tempo, não é mais assim que a maior parte dos antropólogos age, mas, que se perdeu, se perdeu.

Leonardo: Falando em questões arqueológicas, a gente pode ir, sei lá, para um mesopotâmio, para uma coisa assim, um egípcio, e olhar: “Olha, a gente encontrou outras coisas aqui, então talvez aqui o que a gente achava não fosse bem isso, era tal coisa”, e vai evoluindo. Mas alguns aí estão se acabando e não tem mais, e nem toda cultura deixa tantos resquícios assim. Então é mais difícil. E aí isso se torna bem difícil para isso que a gente vai falar hoje, que é isso: além de ser algo extremamente antigo, e durante o episódio a gente vai ver o porquê realmente esses aqui são antigos e são cada vez menores, e aí a diminuição deles vem tanto do povo quanto das crenças deles, porque teve influências também dos europeus, dos missionários europeus e também do Islã. A gente não pode esquecer que na África o Islã foi crescendo bastante. Então isso vai alterando as crenças e aí a gente vai perdendo coisas mais antigas.

Juliano Yamada: Tem uma curiosidade em relação aos khoisans que é mais para a parte da antropologia. Acho que há uns anos eles fizeram um estudo – aquele estudo de DNA mitocondrial, se não me engano. Eu acho que era o mitocondrial – e eles perceberam que os khoisans são os que possuem a maior quantidade de variedade de DNA mitocondrial. E quem já assistiu a algumas lives do Átila explicando sobre as variedades de coronavírus, essas coisas, ele explica que, quando um ser tem muita variedade, quer dizer que ele está mais próximo da origem. Então, se os khoisans têm uma grande quantidade de variedades de material genético mitocondrial que perfaz o material genético de quase toda a humanidade, provavelmente esse povo está muito mais próximo do homo sapiens moderno do que qualquer outro povo ou da África ou até mesmo do planeta Terra inteiro.

Leonardo: Exato. Por isso que eles são considerados, até atualmente, o povo mais próximo do nosso antepassado. Se você pegar anterior aos homo sapiens, eles seriam os mais próximos. De certa forma, acabam sendo os mais antigos em si que se mantiveram. Por isso que eu falei que é uma cultura extremamente antiga, então muito vai se perdendo, vai se alterando, e aí você vê: é um povo que talvez o ouvinte nem tenha escutado mesmo – não tem problema não ter escutado esse nome, porque realmente, como eu falei, não tem tantas fontes em si -, mas, no fundo, eles são extremamente importantes. É o mais perto do elo perdido, já que o pessoal fica usando esse termo aí de elo perdido.

Nilda: É que tem uma coisa que às vezes a gente não se toca, não se dá conta ou não sabe mesmo, porque não aprende: é que a raça humana se miscigenou com outras durante essa sua grande migração da África e tudo, porque os que a gente mais lembra são, na Europa, os neandertais, mas na Ásia também teve, se eu não me engano, um povo chamado denisova, alguma coisa assim.

Juliano Yamada: Denisovanos.

Nilda: Que dizem que dão essa característica do olho um pouco mais puxado para chineses e japoneses e tudo mais. E esse povo seria o mais próximo do homo sapiens sapiens inicial, o menos misturado. Não que não tenha mistura, mas o menos misturado com todos.

Leonardo: Se for seguindo ali na linha genealógica, na árvore, você, em algum momento, vai filtrar tudo e vai chegar aos que atualmente, de uma forma mais direta, foram os khoisans. Porque a gente tem que lembrar: não é que a gente veio deles, porque não vamos considerar aquele conceito de evolução…

Nilda: Em linha reta, não, não é? Não tem isso de evolução em linha reta, gente, pelo amor de deus.

Juliano Yamada: Provavelmente, eles são primos dos povos que deram origem aos seres humanos modernos. Primos quase em primeiro grau.

Leonardo: Então é uma coisa importante de forma histórica para a evolução humana em questão de espécie mesmo, então eu acho interessante falar deles, e coincidentemente caiu isso, porque, quando eu comecei a estudá-los, eu não sabia disso. Sabia que teria um povo assim e tudo, mas deu sorte de, a primeira vez que eu quis focar em alguma cultura específica ali da África, sem ser as que a gente já falava antes, serem esses. Mas lembrando que khoisan não é um único povo, são no mínimo dois povos, que daqui a pouco a gente entra nisso, que também se separam em outros povos e tribos. Então é bem plural. Só para também situar aí o ouvinte, esses povos ficam na região da Namíbia, seria no sudoeste da África, e desde o Paleolítico eles estão ali, só que o território está diminuindo. Inicialmente, começou a diminuir por causa dos povos bantos e depois, no caso, quando vieram os europeus. Aí que diminuiu mais ainda. Para você ter noção, ouvinte, se você pegar às vezes alguns mapas da África, vocês vão ver que os bantos pegam uma boa parte da África, do corpo em si da África subsaariana para baixo. Eles pegam boa parte daquilo, mas aí, no sudoeste, na pontinha, que é praticamente onde é a Namíbia, você vai ver que está vazio, que não são os bantos ali; ali já são os khoisans. Então você vê que os khoisans foram diminuindo ali. Não é só na Namíbia que eles ficam, tem outros países ali próximos, mas a Namíbia é o que mais tem.

Nilda: E essa classificação em khoisan, povo banto e tal, é uma classificação mais linguística, gente. Isso é uma classificação que se faz muito, que são povos de línguas parecidas, que aparentam ter línguas com palavras… quem é linguista estuda e consegue verificar aquelas grandes famílias linguísticas. A família banto é uma família muito grande na África, e que se sabe, se tem evidências de que ela veio de uma região e depois foi se expandindo, se eu não me engano, lá pelo ano 500 ou 600 depois de Cristo. É uma expansão razoavelmente recente, como aconteceu quando vieram os bárbaros, que acabaram com o Império Romano. Os bantos meio que tiveram toda essa expansão pela África. Mas é uma questão linguística, um pouco cultural, mas não é um povo também etnicamente todo igual, porque é uma área enorme e, em toda essa expansão, as pessoas vão se casando, se miscigenando, fazendo tudo e vão mudando as coisas, porque a cultura e a humanidade evoluem, elas se misturam e não fica uma coisa só. Não tem aquilo, não tem o original e fica só daquele jeito a vida toda.

Leonardo: É que são bem comuns essas divisões serem relacionadas à parte linguística. Normalmente, quando você vê assim: “Ah, o povo ou povos tais”, você também vai encontrar língua tal, então vai ter os khoisans – tem as línguas, que muitas vezes também é mais de uma, deles. Por exemplo, quando a gente vai para o que é mais comum, que a gente ouve falar, dos indo-europeus, tem também os idiomas, as línguas indo-europeias. Então é comum isso, porque, querendo ou não, língua vai ajudar a manter ali uma cultura em si com semelhanças ali, mas também a gente não pode definir… como a gente sempre fala, se grego que é grego, que a gente conhece bem, não era uma coisa só, imagine esses outros que a gente muitas vezes tem mais tempo até e não conhece tão bem os detalhes. Aí é mais diversificado ainda.

Nilda: É, gente, se na Península Ibérica, Espanha e Portugal, não são só portugueses e castelhanos. Você tem mais ali galegos, você tem a língua basca. Um pedacinho de terra daquele tamanho, você tem um monte de língua. Isso porque é um povo que é considerado meio que um povo meio que o mesmo, a mesma origem, imagine o continente africano.

Juliano Yamada: Esses tempos atrás, eu peguei um trecho de um livro em galego, só que não tinham me falado que era galego. Era uma tradução do Senhor dos Anéis. Aí eu comecei a ler aquilo lá, falei: “Nossa…”, eu entendo, porque galego é muito próximo do português, só que muda muito a fonética, muda muito as palavras, mas quem entende português, entende galego. Mas é tipo mandarim e cantonês: quem sabe mandarim, entende cantonês; quem sabe cantonês, entende mandarim, mas são línguas diferentes. Os chineses que eu conheço aqui em Curitiba falam: “Tem mandarim e cantonês, são diferentes”, mas o pessoal aqui de Curitiba entende mandarim. Eles falam: “Se vem alguém falando cantonês…”, que são os nortistas, se não me engano, ou os sulistas, eu confundo um pouco, eles entendem. É como a gente: se alguém falando espanhol vem falar com a gente, a gente entende em torno de 60% de tudo que eles falam. 50, 60%, a menos que eles comecem a enrolar a língua.

Leonardo: Como eu falei, são povos khoisans, que aí são compostos pelo grupo cói, ou khoikhoi, que se fala, e os povos sãs, e de aí vem o nome: khoisan. Juntou os dois nomes e formou esse aí. Esses aí se diferenciam bem no sentido que os povos sãs são caçadores, coletores, e os khois são pastores. Essa é a grande diferença deles. Tem variações dos nomes de ambos os casos. Os sãs, ouvinte, você já deve ter ouvindo falar neles como bosquímanos. Esse nome até é mais conhecido. E os khois você também pode ter ouvido falar como hotentotes. Só que esse termo aí é ofensivo. Então ambos os nomes, pelo que eu vi, não são mais usados, são khoi e sã mesmo. Só que esses dois grupos, como eu falei, já dividem em outros subgrupos, e além disso aí é comum você encontrar outros nomes porque também depende de como se dividem. Então dividir como khois e como sãs é mais comum, porque aí vai muito dessa questão de: um é caçador e o outro é pastor; mas também tem outras divisões, e, dentro dessas divisões, vai ter outras divisões, até chegar a níveis tribais mesmo daquele grupo, principalmente dos sãs, que são caçadores, coletores, então se movimentam mais ali, não ficam tão fixos em um local. Então aquele grupo daquelas pessoas ali, grupo pequeno, vai ter algumas características que já são diferentes de um outro que, quando você vai agrupar tudo, é tudo povo sã, e aí é tudo khoisan. Só que você consegue agrupar tudo em um só? Consegue, mas aí, quando você vai ver os detalhes, vai ter diferenças: variações na língua e diferenças nos mitos, que é o que a gente vai ver mais para a frente. As línguas, até é interessante falar, que não tem como falar dos khoisans sem citar a questão da língua deles, que é considerada uma das línguas mais complexas do mundo, e que é marcada por ter a presença de cliques. Isso a deixa bem complexa, tanto é que praticamente todos os personagens, que a gente vai falar, míticos têm a questão dos cliques, mas eu já aviso que eu não vou falar, porque eu não vou conseguir pronunciar aquilo. Eu estou tentando fazer umas aulinhas dessa língua, mas é difícil de acostumar.

Nilda: Digamos, ouvintes, que, se nomes da mitologia asteca e maia, aqueles deuses, já são ruins de falar, esses aqui a gente nem se atreve.

Leonardo: E é dito que essa questão dos cliques está relacionada com esse conceito de eles serem um povo antigo, no sentido de que veio diretamente dos nossos ancestrais, que então trariam esses conceitos de comunicação mais… vou dizer mais primitivos, mas não menosprezando, e sim dizer que são conceitos mais primevos, mais primordiais da comunicação. Porque, querendo ou não, quando você para para pensar, é até verdade: se a gente consegue fazer cliques, por que a gente não se comunica com eles? Por que a gente não usava? E, na verdade, sim, se usava; e, na verdade, até se usa ainda. Vai saber lá por que não tem mais em outros locais, mas é algo… não vou nem dizer primitivo, vou dizer primordial, porque fica mais óbvio de ser essa coisa anterior, dos primeiros seres.

Juliano Yamada: Aproveitando sobre os cliques, tem uma característica bem importante. Todo mundo aqui fica ou irritado ou, por menor que seja o clique, você consegue ouvi-lo, até mesmo com ruído. Não sei se vocês têm essa percepção. Sabe? Tem um cliquezinho tipo… não é irritado, você consegue ouvir, e você só vai conseguir ficar meio que sossegado quando descobrir a origem desse clique, tipo um gotejar no banheiro, porque o nosso ouvido é tão adaptado para os cliques, porque era a nossa primeira forma de comunicação, que ainda sobrou na gente. Então os cliques, a gente consegue ouvir com muito mais perfeição do que a própria voz humana. Por exemplo, certeza que alguém aqui já deixou torneira pingando, ou alguma coisa batendo, ou alguma frequência bem baixa na geladeira, tipo um (inint) [00:21:00] quebrando, que vai fazer um clique, e você ouve de longe. Você vai estar do outro lado da sua casa, você vai estar ouvindo. Se você estiver tentando dormir, você só vai conseguir ou dormir ou alguma coisa assim depois que cessar aquele barulho ou pelo menos descobrir a origem dele.

Leonardo: Ou seja, mostra bem que é algo bom para se comunicar, porque, seja lá o que esteja fazendo esse barulho, ele está se comunicando com você, você está percebendo-o. Então você vê que é algo útil, em comunicação seria útil. Só que, basicamente, são quatro cliques, e eu vou deixar aí o link, porque eu ainda estou penando um pouco para entender a diferença de alguns. Tipo, eu vejo a pessoa falando, ensinando isso aí, eu vejo que é diferente, mas qual é a diferença? Como eu reproduzo essa diferença? Eu parei em alguns, na metade só. Tem dois ali que eu até diferencio; tem outros que, para mim, ficam iguais. São basicamente quatro, que são os (cliques). Eu estou tentando lembrar. É, (cliques) é o mais (cliques) tranquilo, tem o (cliques) assim. Tem outro que eu acho que é (cliques). Tem outro que eu não sei se é esse daqui (cliques), assim. Estou meio confuso. Mas vamos lá.

Nilda: Eu preciso fazer aquele que o símbolo é a cerquilha, que usa como hashtag, que, ao invés de falar hashtag, vou falar aquilo: (cliques).

Leonardo: Então, vocês viram o vídeo da aula? Vocês chegaram a ver?

Nilda: Sim.

Leonardo: Então, os dois primeiros eu estou mais ok, que um é o (cliques), assim, (cliques), que é no início do dente, na ponta, e o outro, que é o (cliques). Agora, os outros que eu estou meio na dúvida. Um acho que é o (cliques), assim, e o outro não sei, eu estou confundindo. E, se isso daqui foi ao ar, o ouvinte vai ficar confuso também, porque estão só os barulhos aqui.

Nilda: É, vão ter que entrar no site e clicar no link.

Leonardo: E até, quando você encontra as palavras aí, você vê os… até eu fiquei fodido com o Google, que no Google parece que não tem essas traduções para isso aí, mas às vezes, quando você encontra em textos, você vai ver: um é uma barra… eu não sei até, não tenho certeza se isso acaba sendo universal, mas eu acho que é: a questão de um clique é uma barra, aí tem outro que são duas barras, aí outro acho que é uma exclamação e outro é a cerquilha. Quem não conhece, cerquilha é a hashtag. Então, como símbolo, na questão de escrita, já é também definido ali, e aí você vai ver: a palavra normalmente começa com aquilo lá ou tem na metade. A maioria eu vi isso, ou é no começo ou é meio que na metade da palavra. Em alguns casos também são dois… agora esqueci o nome do símbolo… dois pipes, que são os dois tracinhos retos.

[Trilha sonora]

[Bloco de recados]

Leonardo: Bom, e aí vamos falar agora da mitologia. Os deuses e conceitos míticos dos khoisans, como um todo, se tornam confusos, tem inúmeras variações, e aí essas inúmeras variações se devem ao fato de que, na verdade, são vários povos. Então vamos falar desses conceitos e deuses, mas, ouvinte, você vai já notar as diversas variações que tem. De princípio, então, a gente começa pela cosmogonia, então a gente começa pelo começo mesmo, da criação, e um dos mitos de criação deles é dito – isso eu achei interessante, porque, pesquisando esse mito, não ficou citando nomes em si, mas falou sobre a criação em si – que as espécies estavam todas confundidas e as partes do corpo foram distribuídas meio que aleatoriamente pelo criador, e aí foram misturadas ali. Então nasciam os diferentes animais, tudo misturado, não estava algo ordenado como é hoje. E aí esses animais foram reencarnando. Cada vez reencarnavam em formas diferentes. E aí com o tempo que eles foram assumindo os formatos que tem hoje e aí sim foram assumindo a identidade que tinham pelo formato ali e pelo nome deles. Então, tipo, no começo era algo que para a gente seria estranho, meio disforme; com o tempo, foram reencarnando e aí eles se tornaram algo que a gente chamaria hoje de cavalo, o outro foi se tornando algo semelhante ao camelo. Seria assim. E aí foi seguindo pelo nome.

Nilda: Eles têm a própria teoria da evolução deles.

Leonardo: Você vê que teve uma progressão. É algo que é passando-se o tempo; isso não é algo que é comum em outras criações, que a divindade quis de tal forma e fez.

Nilda: É, as coisas não foram criadas do jeito que ficaram; foram criadas lá e as coisas mudaram com o tempo, e tudo bem. O deus não ficou bravo, ninguém achou estranho.

Juliano Yamada: É, realmente, é interessante. É a primeira mitologia que eu vejo uma cosmogonia que tem uma evolução. Isso é bem raro, bem raro mesmo. Acho que até na… a mais antiga mitologia que a gente já tratou aqui, uma das mais antigas, que é a egípcia. Na egípcia, todos os deuses e humanos são criados daquela forma. Eles que mudaram de forma porque quiseram, não porque se modificaram.

Leonardo: E, ainda no caso dos khoisans, quando alcançou isso aí de “Opa, agora está bom”, foi fazendo os esboços ali e tudo, aí agora está na ordem que eu quis e tudo, e aí o criador já não ficou mais agindo tanto. O papel dele era bem esse mesmo, de só criar, e aí ele ficou ali no céu olhando ali, mas estava distante dos assuntos daqui da Terra. Teve outra divindade, que aí sim tinha o papel para cuidar de toda essa criação, só que, até quando eu pesquisei, dizem que ele é estúpido, porque ele continua cometendo erros. Já estava ali toda a criação, mas ele não soube cuidar muito bem, e o principal erro dele é que as pessoas continuam morrendo e não deveriam. Não era para as pessoas morrerem, principalmente porque foi dito que eles reencarnavam, então morriam e voltavam. Mas atingiu o ideal, o formato ideal, então não precisaria mais morrer, mas continua morrendo, e aí esse cara, essa divindade que não soube cuidar disso. E ele é o responsável, ele está cuidando ali, então ele que controla a questão de chuva, se vai nascer ou não mais pessoas, os alimentos, se vão crescer ou não. Ou seja, é o que é importante para nós – seria, principalmente se você pensar ali na época: é muito importante isso, chuva, se vão conseguir, as pessoas, nascer, e se o alimento vai conseguir crescer. Ainda é bem importante hoje, mas, naquela região e época, mais ainda.

Nilda: Eu fiquei maravilhada com esse conceito de deus estúpido, porque você reconhece que existe um ser superior que cria as coisas, que tem o poder da chuva, da morte, sei lá, quaisquer poderes que um deus tenha. Mas o povo que venera esse deus, que tem esse deus, não tem aquela avaliação cega, tipo, “Ah, esse deus…”. “Por que a gente está morrendo? Você é estúpido, deus?”, sabe?

Leonardo: É.

Nilda: “Por que tem seca?”.

Leonardo: É a questão de cobrar a divindade.

Nilda: “Por que teve peste?”, “Porque esse deus não funciona direito, esse deus está com problema”.

Leonardo: Esperto foi o criador, que criou tudo e caiu fora, está lá distante. Deixou: “Agora é contigo, cuida aí. Já fiz minha parte”.

Nilda: É um povo que não deixa barato, não. “Você é deus, você tem poder, mas, olha, você é estúpido”.

Leonardo: Ouvinte, a gente mostrou essa criação, que você viu que a gente não citou nome de divindade, porque realmente, nessa descrição, você não encontra. Mais para frente a gente vai falar alguns nomes, e aí você vai ver certas semelhanças nos conceitos, porque, querendo ou não, são os mesmos povos: essa questão da chuva, essa forma de lidar com a morte e tudo, são semelhantes. Aí no final a gente conclui isso aí, mas você vê que mesmo nesse caso não tendo nome e nos seguintes que a gente vai falar tem nomes, são parecidos. Outra característica deles é a questão da adoração à lua, que eles faziam. Diz-se que é bem importante, mas se tem uma certa dúvida. Tem a ideia de que essa ideia de eles adorarem à lua é má interpretação dos europeus, mas a gente encontra algumas narrativas que dão um valor ali para a lua, mas em questão de chegar a adorá-la em si pode ter sido o europeu que entendeu errado. Outra característica é a relação com fantasmas, que é dito que eles acreditavam em fantasmas, mas não no poder dos ancestrais. Tem espíritos dos mortos que se envolviam em rituais de cura, mas isso também varia de povo para povo, mas não tem tanto aquela adoração para ancestrais. Isso, para um povo africano, é algo um tanto quanto singular.

Nilda: Tem essa coisa de você ter um espírito, o espírito te ajuda, mas não necessariamente ligado aos seus antepassados ou coisa assim, por fugir de uma narrativa que a gente costuma… é muito comum aqui no Ocidente, muito comum na África, inclusive, mas você vê a singularidade do povo. Quer dizer, dá para você pensar de forma diferente, mesmo estando cercado de outros povos.

Leonardo: E outra característica também deles – a gente falou de fantasma e tudo mais – é a questão da morte. Quando ocorria uma morte que não era natural, era atribuída ao mal: morrer é meio… como assim? Você morreu quando não era sua hora, isso é errado, isso é mau. O mal existe aí no mundo e a prova disso é isso, a pessoa morreu, sei lá, de doença, ou um acidente, ou briga, qualquer coisa desse tipo. Não foi uma morte natural. Isso estaria errado, isso é mau. E os próprios enterros deles, os conceitos de pós-morte não eram muito complexos, não se tem muitos detalhes. Aí também é aquela coisa, pode ser que não tenha se conseguido esses detalhes, mas morte sempre é algo importante para a humanidade, em geral. Então é comum você encontrar detalhes sobre como é a morte e a vida após a morte. Deles já não tem tanto, então se tem a ideia que realmente eles também não davam tanto valor a isso, a ponto de chegar a considerar certos tipos de morte até algo ruim, algo relacionado ao mal. Quando a gente falar das divindades, é interessante isso. Por mais que morte seja uma coisa que a gente não deseje e atualmente a gente tenha esse distanciamento da morte, várias vezes aí dos episódios que a gente falou de outras culturas a gente mostra que as outras culturas têm uma visão diferente da morte. Eles tendem e aceitam a morte, mesmo também que não queiram. Eles veem também como algo necessário até. Então não vai dizer que é mau. Nós mesmos, o próprio católico aqui, ocidental, atual, por mais que não queira que o parente morra, a gente sabe que é algo divino ali, natural, a questão do conceito da divindade mesmo. A gente não vai falar que foi o demônio que matou, a gente não vai atribuir ao mal. Então a gente aceita esse conceito, pelo menos de uma forma mais coletiva.

Nilda: Existe o que a gente chama de curso natural da vida, que a gente entende que ele vai acontecer. E uma morte que ocorre fora disso que a gente entende como curso natural da vida, a gente estranha mesmo.

Leonardo: Ficam esses conceitos meio diferentes, mas, como é meio escasso, é meio difícil de dizer como que ficam, mas é interessante ver essas particularidades.

[Trilha sonora]

Leonardo: Nessa criação que a gente pôs, como eu falei, não tem nomes definidos. Mas agora sim a gente entra no panteão – panteão que são poucos, mesmo, personagens que se tem, mas dá para citar alguns, e é comum de eles se confundirem entre si. Mas algo que eu já falei em outros episódios e nesse aqui você percebe bastante é assim: uma divindade, para ser uma divindade, precisa de um nome, de uma função e de uma genealogia. Então aqui a gente vai ter os nomes deles, a gente vai ter o que eles são e, em alguns casos aqui, você encontra se é filho ou não, mas isso confunde também. Pelo menos esses três elementos são comuns de se encontrar. E a gente encontra aqui o primeiro, que é o que você mais ouve falar, é o Tsuigoab, e acho que seria Tsui (clique) goab, alguma coisa assim. Ele é o deus da chuva, do trovão e da magia – com isso, acaba sendo um deus celestial. Algumas vezes ele é dito como um ser supremo. O interessante da história dele é que tem como ele chegou a isso. Ele era um homem comum e ele estava preocupado com o povo dele, que estava passando por uma seca. Então já estava sem gado, sem colheita, todo mundo com fome, estava mal. Um dia, chegou um cara estranho ali, de capuz, na vila e ele foi até a casa ali de um dos anciãos. Tsuigoab estava lá do lado do ancião, cuidando dele, e o Tsuigoab achou estranho esse cara, esse estrangeiro, porque ele estava bem alimentado. Todo mundo ali passando fome e ele ali de boa? E aí o Tsuigoab começou a questionar: “De onde você vem? Tem comida de onde você vem? Porque você está bem”, e aí, conforme esse cara foi respondendo, o Tsuigoab percebeu que, na verdade, ele era chamado de Gaunab, que é o deus da morte – ou então às vezes você vai encontrar, ouvinte, como espírito da morte, mas, de qualquer forma, relacionado à morte. Então ele estaria ali para ir buscar o ancião da casa onde ele entrou e, quem sabe, até mais gente. E aí o Tsuigoab resolveu desafiar o deus para uma luta. Se ele ganhasse, Gaunab iria dar a vida eterna para o povo, e, se perdesse, o deus poderia mandar a morte para todo mundo ali da vila. E aí começou a luta. A luta durou dias, direto, sem parar, e finalmente o Tsuigoab consegue derrubar e derrotar o deus da morte. Aí, beleza, quando ele estava ali para cantar vitória, o deus estava ali no chão, puto com a derrota, deu um soco no joelho do Tsuigoab e o quebra, e ele cai desmaiado ali de dor. Passa-se um tempo – não se sabe quanto -, o Tsuigoab começa a acordar. Quando ele está acordando ali, ele começa a ouvir algumas vozes dizendo que ele devia ser recompensado pelo que ele fez, foi nobre, foi corajoso e tem que ser recompensado. Quando ele acorda de fato, ele percebe que ele está sobrevoando a vila dele, e aí, com o menor movimento do braço dele, começa já a chover pelos dedos dele. E aí que ele se torna, então, o deus da chuva. Por ser o deus da chuva, ele acaba com a seca do povo dele.

Nilda: Isso sempre tem, não é? Os deuses da chuva, do trovão, são sempre deuses muito importantes para qualquer povo, não é?

Leonardo: O que é interessante nisso que você falou dos deuses da chuva serem importantes é que, assim, praticamente todos os povos vão ter, mas nesses aqui você vê que é muito… porque uma coisa é ser importante, outra coisa é ser o ser supremo ali. Porque, voltando, sempre vamos comparar com outros povos, principalmente com os gregos: a gente tem Zeus, que é o deus do céu e dos trovões, mas a gente não fica o vendo tanto como provedor de chuva em si. Nesses aqui, nesses povos, a gente vê como a chuva é muito importante. Então o deus chuva é meio como se você colocasse todos os deuses que são referentes à chuva, algo assim, como seres supremos, que é bem nesse estilo. A gente tem em outras culturas o deus sol como um dos principais. No Egito, a gente coloca o sol dessa forma. Aqui não, a gente vê: quem é o principal? É a chuva. É muito interessante isso aí, você vê a importância disso. Querendo ou não, esses povos nessa região, principalmente agora que estão diminuindo e estão indo cada vez mais para o lado que não é fértil – eles estão indo muito para o deserto da Namíbia -, e aí chuva cada vez mais importante ainda, porque é cada vez mais escasso.

Nilda: É, aquela região ali tem muita savana, e a savana, assim como o centro-oeste ou assim como a nossa área da caatinga, é a chuva é o que faz retornar as plantações, é quando voltam os animais que migram – vão embora na seca e voltam na época da chuva. Então você tem que ser um deus muito… é o que faz o ciclo da vida girar ali. Uma coisa muito interessante nessa história é o deus da morte ser uma pessoa, digamos assim, bem alimentada, com boa aparência. Não é aquele ser esquelético, aquele ser feio e misterioso. Não, uma pessoa de bem, apresentável. É um outro arquétipo de morte.

Leonardo: O interessante foi o que aconteceu depois com o Tsuigoab, que essa luta ficou meio assim: ele ganhou ou não ganhou? Porque ele acabou virando ali a divindade, salvou o povo; tinha derrotado, mas levou um socão no joelho, caiu ali de dor. E, com isso, mesmo como uma divindade, ele se tornou manco. Isso é interessante, aquilo lá ficou marcado nele. Mas pelo menos manco, mas com um puta poder de alimentar o povo dele.

Nilda: Tem outra coisa que muitos povos têm, apesar que, às vezes, quando a gente lê sobre, a gente vê a menção bem pequena, mas você tem de humanos que fizeram grandes feitos, que se tornaram reis, dependendo do caso, importantes, virarem depois um deus. Nesse caso, um deus supremo. Mas é muito comum em vários povos transformarem alguém muito importante, que fez algo… nesse caso, derrotar a morte ou pelo menos chegar a um ponto que a morte não tinha mais como derrotá-lo e ela teve que apelar para um golpe baixo para não sair tão mal assim dessa luta. Então você tem isso de você transformar em deus, essas pessoas; ou não ter o menor puder de colocar um ser humano comum virando deus depois e colocar isso na mitologia deles. Não tem esse preconceito de que o deus tem que ter origem divina, filho de uma deusa, nada disso.

Leonardo: E aí a gente tem um outro personagem – e agora a gente já vai ver a confusão que isso dá, que ele bate de frente com isso que a gente acabou de contar -, que é o Gamab, que ele já é do povo Damara, e aí esse é um povos khoi – lembra que eu falei que tem povos dentro de povos? Então, o Damara é um povo específico dos povos khoi, e o Gamab é o deus supremo, que também é um deus da chuva, do trovão, da água e das estações. Então você vê: a gente tem divindades desses domínios em outras culturas, culturas europeias, mas não necessariamente são os supremos, e aqui não, aqui dá ênfase nisso. Só que ele é um supremo, mas não é da criação, que até aí… comum você ter um deus supremo e ter outro da criação, mas, no caso dos Damara, é porque eles não acreditavam na criação. Para eles, o mundo sempre existiu, não teve um começo. Isso é bem diferente, não teve uma cosmogonia ali. Mas tem o deus supremo ali que cuida de tudo.

Nilda: Ou seja, eles dificilmente seriam criacionistas.

Leonardo: É, então, eles não teriam isso, porque eles não acreditam na criação, não são criacionistas. É bem interessante. E outro aspecto dele é que ele é um deus da morte também, e aí ele, no céu, atira flechas nas pessoas que vão morrer. Isso é bem legal, isso é bem interessante – legal, não, porque a pessoa morreu. A pessoa leva uma flechada e aí a alma dela sai pela porta da casa, pega uma estrada e vai até a vila onde o Gamab está, e aí o Gamab é o ancião da vila. Lembra que é essa coisa, bem aquele conceito tribal que a gente vê de todas as vilas terem as pessoas que são mais velhas, aí tem um ancião. E nessa vila para onde a alma vai, o ancião é o próprio Gamab.

Nilda: Que vai recebê-lo. Interessante.

Leonardo: É interessante isso, de o paraíso pós-vida, digamos assim, ser meio que no mesmo plano ali. Ele atira ali do céu, mas aí a pessoa morre e vai andando até chegar à vila dele.

Nilda: Eu não considero isso muito diferente do conceito de que, sei lá, você vai subir e vai para o céu, pela questão que cada povo usa os conceitos próprios para fazer essa passagem. Ou é um barco em um rio, ou você pega uma asa e sobe, ou você pega uma estrada e vai parar em outra vila. Quer dizer, provavelmente, para o modo de vida desse povo, para o modo de eles agirem, esse seria o caminho natural de você fazer. Não é uma coisa tão estranha você pensar que eles possam pensar nisso, se você pensar que cada povo…

Leonardo: Faz sentido na lógica deles. E uma curiosidade desse deus é que outras versões colocam o nome dele como Gaunab. Até parecido com o nome Gamab, Gaunab. E lembra que ele era um deus da morte também, e esse nome é o nome do deus da morte que a gente citou na narrativa anterior. Então você vê já aí as narrativas se mesclando, deixando tudo mais confuso. Um outro personagem que a gente tem aqui é o Heitisi-eibib, e tem algum clique em alguma parte aí do nome dele, eu não saberia pronunciar. No caso, ele é considerado um herói, então a imagem dele já deve ser aquela questão do herói mítico, mortal, apesar de que ele morreu e renasceu várias vezes. Mais para frente, é dito que ele virou um deus da caça, mas a narrativa dele é focada nisso, de ele ser um herói ali na Terra mesmo, não algo divino no céu em si. Curioso é o nascimento dele: é dito que ele nasceu de uma vaca que comeu uma planta mágica, ou então que a mãe dele era virgem e aí engravidou quando comeu essa planta. É só nisso que você encontra a origem dele, então eu não sei se é confuso por ser realmente diferente ou se é confuso porque faltou informação, mas a origem dele, o nascimento dele é esse.

Nilda: Uma vaca comendo é melhor que uma vaca lambendo, mas vamos lá.

Leonardo: É, tem outros que são assim. Em uma das histórias do Heitisi, ele estava viajando com um grupo de pessoas e eles estavam todos sendo perseguidos por povos inimigos. Eles chegaram a uma região ali com água e aí ele pediu para que a água se abrisse e eles passassem. Conseguiu, a água abriu, passou com o povo dele. Quando chegou ali em segurança, a água se fechou e matou os inimigos que estavam ali também os seguindo, que aproveitaram isso, mas acabaram se afogando. É parecido com outras histórias aí em outros livros.

Nilda: É, Moisés?

Leonardo: Então eu fiz questão de contar isso aí para o ouvinte já ver: narrativas semelhantes em alguns aspectos. Essa aí eu encontrei, essa narrativa, mas ele é muito conhecido mais pela seguinte aqui, que é na qual ele destrói o monstro Ga-Gorib. O Ga-Gorib era um monstro que ficava na beira de um poço desafiando todo mundo que passava por ali, e aí a pessoa tinha que atirar uma pedra na desse monstro. As pessoas aceitavam e atiravam a pedra; a pedra sempre batia na testa dele e voltava na pessoa. Então a pessoa acabava caindo no poço, e aí acaba morrendo. Esse herói foi até o Ga-Gorib, o Ga-Gorib fez o desafio, ele recusou: “Não, não quero, eu sei o que você está planejando. Eu não quero”, e foi indo, só que ele chegou do lado dele e desceu a porrada na orelha dele ali e matou o monstro. Ele caiu no poço ali e morreu. Aí tem outras versões, que mostram que o Ga-Gorib o perseguiu, ele escorreu no poço, o Ga-Gorib foi ali, aí o matou no poço. Vai variando, mas sempre aquela ideia: o herói finalmente conseguiu derrotar aquele monstro; aquele monstro não ia fazer mais nenhum desafio para os viajantes. Isso é bem comum, no meio da viagem, do percurso, da estrada ter um monstro que desafia e acaba com o viajante até chegar o herói. É bem comum. E às vezes é colocado que, ao invés de ser o Heitisi, é o Tsuigoab – aquele primeiro deus ali ou humano que virou deus ali, que a gente contou no começo.

Nilda: É interessante essa questão do poço. Não esqueçam, ouvintes, que você está em uma caminhada em uma estrada, um local que tem um poço é um local de parada, é um local de você se refrescar, e, se tem um monstro lá desafiando você, não é só desafiar por desafiar: é que talvez seja a única maneira de você pegar água.

Leonardo: Eu gostei dessa narrativa, eu imaginei muito… é africana, é dos khoisans e tudo isso aí, mas eu enxergo muito bem um ogro ali, um troll – que tem aquele negócio do troll embaixo da ponte e tudo -, eu imaginei muito essas criaturas. Dá para você fazer uma comparação, é bem nesse estilo, e a gente está ali meio medieval e tudo, dá para fazer uma analogia nisso.

Nilda: Seres querendo tomar posse de coisas essenciais tem em tudo quanto é canto, pelo jeito.

Leonardo: É, tem no mundo todo. E a gente falou que esse herói muitas vezes é colocado nessa narrativa sendo o Tsuigoab, e o próprio Ga-Gorib, que é o monstro, às vezes é identificado como um deus da morte, oponente do Tsuigoab. Ou seja, o Gaunab. Você vê que a gente falou aí de vários e está sempre voltando para os mesmos. A gente acaba se unindo aos mesmos seres, por isso que acaba não tendo um puta panteão mesmo, a gente está se limitando praticamente a dois seres aí até agora, em si.

Nilda: Eu vou dizer que eu percebo um certo padrão um pouco parecido com o que a gente tem com os povos indígenas brasileiros, povos que são da mesma origem, da mesma linguagem, você tem às vezes histórias parecidas com nomes diferentes ou você muda quem é de uma história para a outra, quem fez o outro, porque são povos que se separaram, então a história vai passando oralmente, a coisa muda por algum motivo. Às vezes tem algum motivo, muda, então, quando você tenta unificar tudo em uma história só ou em um panteão só, você nunca consegue fazer aquilo daquele jeito certinho, porque os povos vão… cada tribo, cada povo vai indo para um canto. Você tem a origem comum, mas você vai mudando com o tempo.

Leonardo: É, e eu imagino muito também ali o europeu registrando isso aí, aí pergunta ali, a pessoa descreve, ele consegue coletar aquela informação. Aí vai a outra tribo ali, outro grupo, muda um pouquinho, mas às vezes muda o nome, porque às vezes até é uma outra forma de chamar aquele deus, então nem é necessariamente que mudou o nome em si, mas tem um outro… aqueles epítetos da divindade, só que a pessoa, na primeira vez que registra, pode registra como uma coisa diferente. Quando vai ver, eles estavam falando da mesma coisa, porque teria o mesmo mito, a mesma narrativa. A gente fala disso, mas greco-romano está aí para isso. Ambos têm inúmeras variações com as mesmas divindades, e também com trocentos nomes diferentes. Só que, dos khoisans, você vê que está um pouco limitado, porque a gente não consegue ver o que vai além, quais seriam outros personagens. Então se limita a isso, e, querendo ou não, é comum você imaginar que se limite ao ser supremo, porque é o principal, é o que mais vai ser falado, e aos monstros, porque o que a gente tem também de outros personagens aí são monstros. A gente tem mais dois monstros, uma descrição breve, não tem muito sobre eles, mas você vê também como os povos sempre vão dar ênfase em descrever os monstros, que seria você descrever os perigos. E a gente tem o Hai-uri, que é um monstro que come pessoas, antropofágico, e ele é bem bizarro, porque ele é parcialmente invisível e ao mesmo tempo também ele só possui um lado do corpo. Tipo, ele tem uma perna e um braço. E ainda assim também metade dele é invisível.

Nilda: Está correto, ele só tem uma perna… não é que ele só tenha uma perna, você só vê uma perna.

Leonardo: Então, eu fui pesquisar para ver se… espera aí, é por que é invisível? Não é? E é confuso, não dá para saber direito. Só dá para saber que o bagulho é esquisito mesmo, porque é dito que, apesar de ele só ter uma perna, ele corre bastante, então ele consegue alcançar as pessoas, porque ele devora os seres humanos. Então é difícil fugir dele.

Nilda: Ele tem duas pernas, viu? Aposto nisso.

Leonardo: Você está convencida que são os dois lados mesmo? É só meio invisível?

Nilda: É.

Juliano Yamada: Parece um saci.

Leonardo: É um saci de corpo inteiro.

Juliano Yamada: Um saci de corpo de inteiro, não é só a perna.

Leonardo: É. Um outro que a gente tem, que também devora seres humanos… porque monstro, para ser monstro, tem que devorar ser humano. Se ele não devorar ser humano… você tem que pensar o seguinte, ouvinte, até as sereias, que são todas bonitonas ali e tudo, que encantam, que cantam bem e tudo, também devoravam seres humanos. Então monstro que é monstro devora ser humano. E aí a gente tem um outro, que é o Aigamuxa. Ele vive nas dunas, então esse já vai bem para o lado dos khoisans que estão bem ali no deserto, e a coisa mais estranha dele é que ele tem olhos nos pés.

Nilda: Nossa, sim, isso é um monstro estranho.

Leonardo: É, algumas versões mostram que é na parte de baixo dos pés; outras, na parte de cima. Isso varia, mas, indiferente, continua sendo estranho. O que mostra que é na parte de baixo dos pés deve ser bem ruim, porque ele mora no deserto. Está com areia no olho constantemente.

Nilda: É, aí que o bicho fica irritado mesmo, está certo.

Leonardo: Sim, sim. E aí até fala que ele tem que agachar para poder visualizar, olhar para frente e ver quem está chegando. Então devora ser humano, mas desse eu imagino que possa ser mais fácil de escapar do que do anterior. Você tem que esperá-lo abaixar e tudo para poder enxergar você, menos mal. Outra característica muito comum desses povos, e, agora, dos povos khoisans, mas dos povos africanos em geral, em muitos locais da África, é a imagem dos chacais e das hienas. Muitos povos africanos têm narrativas relacionadas a esses dois animais, sendo narrativas que incluem ambos ou uma narrativa de chacais, outras de hienas, mas é presente. E os chacais também costumam ser tricksters e, no caso dos khoisans, eles têm um herói trickster, que, em alguns casos, é o herói que derrotou o Ga-Gorib, que a gente citou anteriormente. E também para os khoisans é dito que os chacais ficam pregando peça nas hienas, e aí eu fiquei pensando: será que é comum ter embate de hiena e chacal? Eu nunca fui para a África, não sei, nunca vi um chacal nem uma hiena na minha frente.

Juliano Yamada: Tanto a hiena como o chacal ocupam o mesmo nicho alimentar, só que eles não são tão caçadores assim, eles são mais espreitadores e oportunistas. Então acho que um tenta ficar roubando do outro. Então provavelmente, na observação, eles associaram os dois como características parecidas. Por mais que, algumas vezes, algumas hienas, quando se aglomeram em grupos, arrisquem uma caçada, mas quando elas estão sozinhas, elas são mais oportunistas do que caçadoras. O chacal é menor que a hiena, então ele vai ficar muito mais interessado em uma chance de roubar uma comida do que de caçar.

Nilda: É, e chacais… acho que eles não têm costume de andar em grupo tanto quanto as hienas. As hienas andarem em grupo é bem comum.

Juliano Yamada: É, os chacais são muito mais solitários.

[Trilha sonora]

Leonardo: E aí um outro personagem… e agora a gente já vê que a gente fica mais específico, porque agora a gente vai falar do deus supremo dos povos sãs. Porque todos esses que a gente falou, não que fossem exclusivamente dos khoi. É uma bagunça nisso tudo, então a gente sempre cita os khoisans. Muitos desses que a gente citou, você vai encontrar como na mitologia dos khoi, mas você vai encontrar variações entre eles, e aí os povos que seriam os povos sãs com referência a esses personagens. Mas agora o próximo que a gente vai falar normalmente é bem especificado sendo dos povos sãs. É o deus supremo, que é o Cagn ou (clique) Cagn. Tem o (clique) Cagn. Tentar ainda acertar o nome dele. Ele tem o clique no começo aí do nome. Ele é o deus supremo e criador. Também por essas variações, tem muitos nomes e variações no próprio conceito dele, no caso das diversas tribos. E aí a gente falou do chacal trapaceiro, de ser o trickster. Ele é considerado um deus trapaceiro com certos aspectos destrutivos, porque é dito que ele criou um monstro, e, na verdade, esse monstro seria o fogo, e esse monstro destruiu tudo. E aí o Cagn teve que ir lá fazer uma nova criação, e aí, dessa vez, as pessoas souberam controlar o fogo. Aí beleza, continuou até hoje aí. Aí tem variações nisso: outras vezes, mostra que as pessoas e os animais viviam debaixo da terra, junto com a divindade, todos ali morando de boa. E aí o Cagn começou a planejar as maravilhas que ele ia ter na superfície, ele ia criar algo ali na superfície e ia mandar todo mundo para lá. Aí ele criou uma árvore gigante, que aí os ramos dessa árvore iam para todas as partes do mundo, e, na base dela, ele cavou um buraco, que de ali que as pessoas iam da base da árvore para a superfície ali do mundo. Ele colocou todo mundo na terra, levou o homem e tudo até esse local, então todo mundo estava indo ali para a superfície. Ele reuniu todo mundo, todo mundo maravilhado com o que ele tinha criado – beleza, até ali todo mundo em paz -, e só os avisou ali: “Olha, vocês estão aqui vivendo em uma boa, mas não façam nenhuma fogueira, porque senão isso vai dar problema. Vai vir o mal aí para vocês se vocês criarem alguma fogueira”. Beleza, todo mundo na superfície. Passou o dia, chegou a noite, tudo escuro, o pessoal ficou assustado, o homem morrendo de medo, como sempre, ficou assustado e estava começando a passar frio e não estava também enxergando muito bem. Os animais conseguiam se virar bem; o ser humano, não. Então, desesperado, o ser humano foi lá e acendeu uma fogueira, desrespeitou o que o Cagn tinha falado. O fogo assustou os animais, os animais pegaram e fugiram para as montanhas, então aí também o ser humano não conseguiu mais manter o mesmo contato que eles tinham com os animais, não conseguiam se comunicar tão bem, porque eles pegaram e fugiram. O Cagn ficou puto com isso aí, porque “Vocês me desobedeceram, então vou cair fora”, aí foi lá morar no céu.

Nilda: É incrível como a questão do fogo é um marco da cultura humana. Você pode ver, é o que te faz se separar de deus ou faz começar a ter alguma desgraça ou não, mas o fogo é aquele marco que o ser humano começou a se mexer sozinho. O ser humano consegue se defender sozinho a partir do momento que ele tem o fogo, só que isso também traz essas responsabilidades: não vai mais falar com animal, o deus te amaldiçoa ou não, ou o deus te abandona, como é nesse caso aqui. Mas o fogo é um elemento importantíssimo nos mitos, na mitologia.

Leonardo: E olha que interessante: aqui, a gente volta para aquele conceito… nos outros relatos que a gente deu, de o deus ser distante. Porque aqui mostra que ele está ali no céu, mas ele se distanciou dos seres humanos, e essa ideia do fogo como… tipo, foi útil para o ser humano, a gente está aí com fogo até hoje, mas serviu como uma… assim, foi um ato errado, o deus não quis. Vamos mais uma vez comparar com os gregos: Prometeu tem isso aí, a questão do fogo. Ele quis para ajudar, mas foi um ato errado, não deveria ter feito aquilo, foi punido e tudo. Então você vê: é esse marco que tem. É bem isso aí, o fogo é realmente um marco na nossa história.

Nilda: E é claro, aqui tem elementos de árvore, árvore do céu, a árvore da vida, você parar de falar com os animais, diferenciação de línguas e tudo ali junta.

Leonardo: E aqui você vê bastante também a ideia de o fogo ter também essa questão destrutiva. Você vê que deu ênfase nisso aí. Um outro mito que se tem dessa divindade, a gente vê um tal de kwammang-a, que é o arco-íris, e ele tinha perdido o sapato, e aí o sogro dele, que é o Cagn – o Cagn é o sogro do arco-íris -, encontrou e jogou o sapato dele em uma poça, e de ali nasceu o primeiro antílope. Às vezes, ouvinte, você vai ver como antílope ou como elande. Elande é um tipo específico de antílope, é porque antílope é mais fácil de você identificar. Elande, muitas vezes você… eu mesmo também nem tinha ouvido falar. Eu fui pesquisar para ver quem era. E o Cagn gostava desse antílope, ele o alimentava com mel, e aí o kwammang-a e o filho dele, o (inint) [01:03:42], ficaram curiosos: “O que o Cagn está fazendo tanto nela? O que ele está fazendo?”, aí que eles foram lá, viram que ele estava alimentando esse antílope e resolveram matar o bicho. Sei lá por que quiseram fazer isso, mas fizeram, mataram. Você vê que é uma sucessão de ator bem bizarros, bem confusos: perde o sapato, o sapato vira o antílope, aí ele começa a alimentar com mel, o antílope, os outros vão lá e matam o bicho. Mas está progredindo nisso aí. O Cagn ficou mal para caramba com a morte do antílope, ele gostava dele, e aí ele pega a vesícula desse animal e perfura. Disso saem as trevas, e aí as trevas cobrem o mundo, aí cria-se a noite. Para não ficar tudo escuro, o Cagn pega o próprio sapato e joga no céu, e, com isso, se transforma na lua. Então é uma coisa bem surreal mesmo. Em mitologia é comum ter essas estranhezas, mas isso aqui foi uma atrás da outra. Eu acho interessante, mas é bem confuso.

Nilda: Não, você está acostumado que o cara chora e cria não sei das quantas, cai a gota de sangue e nasce planta; agora, jogar sapato… é realmente…

Leonardo: Eu gosto dessas estranhezas assim, acho bem interessante isso aí. Quando eu vi essa questão de ele perfurar a vesícula e espalhar a noite, eu lembrei muito da narrativa da origem da noite aqui dos povos da nossa região, que tem isso aí de a noite espalhar. Você abre algo ali, acho que era uma semente. O tucumã, na verdade. Eu lembro que até a narrativa é essa em uma das antologias, na segunda, dos Mitos de Origem. A origem da noite é disso. E para mim foi a mesma imagem, você vê a noite como… eu sempre vejo como algo tipo um fluído mesmo, um líquido espalhando e dominando tudo. Eu acho bem interessante isso da noite ser algo que vai percorrendo e vai escurecendo tudo. Acho bem legal isso. E tem uma variação disso aí, que mostra que, na verdade, a noite, as trevas, quando ele perfurou, atingiu os olhos dele, e aí ele ficou cego ali. Deixou tudo escuro e também foi para os olhos dele, e aí, para limpar, ele pegou uma pena de avestruz, limpou os olhos e a jogou para o céu. Aí a pena que se tornou a lua. Então você vê que só muda o item, mas é sempre a mesma ideia: nasce a noite, logo em seguida vem a lua. E o antílope, que a gente tinha citado de ser um animal preferido dele, é considerado um animal sagrado para esses povos, é bem importante, tem muitos rituais de passagem para homem e para mulher que estão relacionados ao antílope, os xamãs utilizam-se muito desse animal. É aquela coisa clássica: está o animal sempre ali, próximo daquele povo, então vai ter a importância.

Nilda: Ouvinte, procure a imagem do elande, porque é um animal imponente e é grande, é praticamente um boi de grande, o bicho. Então provavelmente, se você caça um bicho desses, alimenta muita gente por um bom tempo.

Leonardo: E outro animal que era bem importante, e às vezes até colocado como uma forma dessa divindade – não só forma, como nome -, é o louva-a-deus. É dito às vezes que o Cagn fica na forma de louva-a-deus e um dos nomes… é que aqui essas pesquisas foram feitas muito em outras língua, então aqui eu não encontrei, em nenhum momento, em português chamando-o de louva-a-deus, mas você encontra outros nomes de louva-a-deus, em outras línguas, se referindo a essa divindade. E outro elemento que a gente tem – a gente falou inicialmente dos khoisans em geral darem valor para a lua – algumas narrativas referentes à lua, tanto que a gente viu aí do sapato dele ou a pena que se tornou a lua. É dito que talvez dessas narrativas que venha essa ideia de eles adorarem à lua, mas é aquela coisa, pode ser má interpretação, porque uma coisa é você ter a origem da lua ali relacionada à divindade; outra coisa é você adorá-la. São coisas distintas, então o erro pode estar nisso. Mas uma outra questão referente à lua é que ela é um ser que morre e renasce, e aí ela queria que os seres humanos também fossem assim, porém aí teve um humano em forma de lebre – e eu acho muito legais esses contos mais primordiais mesmo, que colocam o animal, e é um humano, e ok, é um realismo fantástico, é desse jeito e acabou, e ok, sabe? Acho muito legal isso. Não tem que ficar se questionando. E aí esse humano que era em formato de lebre estava chorando, porque a mãe dele tinha morrido, e aí a lua falou: “Calma, vai voltar. Morreu, mas volta, que nem eu, morre e renasce”. Mas aí a lebre estava: “Não, morreu, morreu”, estava desesperada. Até que a lua ficou puta com isso, se zangou, deu uma porrada na lebre, e aí por isso que eles têm aquela marca no lábio, que seria a cicatriz dessa porrada, e aí ela amaldiçoou: “Então beleza, se você está chorando tanto, não vou te ajudar, não. Vai morrer mesmo”. E aí por isso que a gente morre e morre mesmo. Aí tem uma outra versão que diz que a lua queria manter dessa forma também – as pessoas morrem e renascem – e ela enviou um inseto para a Terra para dar aos humanos essa mensagem, que, assim como ela, quem morresse iria renascer. Aí uma lebre alcançou o inseto e ofereceu para mandar essa mensagem: “Eu sou mais rápido, então deixa comigo”. Só que aí a lebre se enganou e mandou a mensagem errado, meio que oposta até, e aí falando: “Não, da mesma forma que a lua morreu, vocês também vão morrer”. Ficou nisso a mensagem, e aí por isso que a gente morre. Então as duas formas são mostrando essa ideia do porquê o ser humano morre e deveria voltar, mas não volta.

Nilda: Achei interessante essa ligação da lua com a lebre, porque alguns povos dizem que aquela mancha que você vê na lua à noite é um coelho ou uma lebre. Não sei se entre os sãs e os khoi tem essa ideia também.

Leonardo: Tem alguns povos acho que orientais que falam que é uma lebre, se não me engano, não é?

Nilda: Sim, por isso que eu não estranhei essa relação da lua estar conversando com a lebre, porque eu achei que tivesse alguma relação. Mas, não, a história não mexe com isso.

Juliano Yamada: No Japão tem a lenda de que existem coelhos vivendo na lua e fabricam mochi, por causa da forma do coelho que tem na lua. As crateras mais escuras formam um coelhinho sentado. Na China, tem um boi que fabrica um bolo, acho que é bolo da lua ou pão da lua, alguma coisa assim.

Leonardo: Ah, o bolo da lua, é verdade. A gente falou isso no de horóscopo oriental. A gente citou isso aí.

Juliano Yamada: E dizem que esse bolo pode curar várias doenças, e o boi ficava lá escondendo esses bolos para não passar para a humanidade, mas um dia ele foi obrigado a jogar tudo na Terra e, quando ele chegou aqui, ele distribuiu e viu que estava fazendo uma coisa boa, ele viu que gostavam dele. Aí ele ficou aqui na Terra distribuindo os bolos.

Nilda: Voltando um pouco, você falou que talvez tenham confundido a veneração à lua… aqui são todos aqueles elementos: você observa a lua, a lua tem fases, ela morre e renasce. Não tem como, qualquer pessoa que já observou a lua já sabe que é assim. Você consegue entender toda essa ideia, de onde surgiu isso. E a lua, por iluminar a noite, por tudo, quer dizer, todas as culturas têm… a lua sendo considerada deusa ou não, a lua tem a sua importância: a de marcar um ciclo pequeno, que seria equivalente ao nosso ciclo de mês, que é a lua morrendo e renascendo. É interessante.

Leonardo: E aí, ouvinte, essas foram as narrativas referentes aos povos khoisans. Pode ter outras coisas, sim, mas realmente foi difícil de encontrar mais detalhes, porque, como eu falei desde o início, é algo escasso, é algo que se confunde bastante. Em português, se encontra pouquíssimas coisas. Esse do Cagn é o mais fácil de encontrar aqui, mas tem todos esses outros, que eu acho interessante. E o mais legal é que por mais confuso que seja, por mais que você perceba que algum personagem de uma narrativa é relacionado a outra, e aí um é ser supremo, então o outro também é um ser supremo, e em outra versão não é, e aí tudo confunde, mas a gente começa a ver certas similaridades, certas constantes, que foi o que me chamou bastante a atenção nisso. Um que eu já citei é essa questão da importância da chuva. Isso eu achei muito legal, porque faz todo o sentido esses povos não terem uma divindade solar como sua principal, e sim uma divindade pluvial, porque chuva é importante para todo mundo, mas, para um povo que está perto ali de um deserto, a chuva vai ser muito mais importante do que para um povo grego, onde tem água – mesmo quando não chove, tem água ali em volta. Então essa importância da chuva eu achei bem interessante. Faz todo o sentido. Outro aspecto que me chamou atenção foi a relação que eles têm com a morte, que se diferencia em certos aspectos do que a gente vê em outras culturas, só que aí, tanto na questão da morte e de renascimento, porque várias dessas narrativas que a gente viu têm tudo isso aí: morre, mas vai voltar; mas aí, de repente, não volta, como essa questão da narrativa referente à lua. E essa forma de lidar: eles têm um deus da morte que foi considerado ruim, só que aí a gente tem um outro lado, dos Damara, que o ser supremo era o deus da morte. Então já não seria necessariamente ruim em si – essa diferença que se tem entre povos próximos ali. Isso é legal ver. Só que também a gente sempre tem que lembrar que isso muito pode estar preso à má interpretação, então a gente tem que tomar cuidado, tipo, é diferente ou não, mas pode ser uma interpretação errônea que teve. Isso me dá uma certa dor no coração, sabe? Puta, que legal, mas pode não ser assim. Pode ser que não fosse bem assim, pode ser que isso seja o europeu que entendeu mal.

Nilda: Aliás, essa coisa de má interpretação, de problemas de tradução, é muito constante que a gente tenha até hoje, mas isso também não inviabiliza de todo o que a gente tem para estudar, e, hoje em dia, cada vez está se produzindo mais material tentando entender isso, trazer à tona coisas que se perderam. Tem muito material novo, mas é material novo, então você tem que procurar, escavar. Às vezes, o material ainda não tem um respaldo que você possa dizer: “Olha, é isso mesmo”, “Não é”. Às vezes é apenas uma tese. E boa parte em outras línguas. A gente consegue driblar um pouco isso da questão de outras línguas, mas você tem que ter acesso a isso, e anda complicado.

Leonardo: Então é isso, ouvinte. Espero que você tenha gostado desse episódio. A gente fez questão mesmo de sair dos povos padrões, que a gente costuma falar mais. O problema é que demora mais para produzir, mas valeu muito a pena. E uma coisa que eu mais gostei mesmo desses povos em geral foi quando eu vi que esses são os seres mais primordiais, sabe? Isso eu achei muito legal. Eu falei: “Então temos que falar mesmo deles”. É legal você ver que você está indo cada vez mais antigo no tempo. Isso é muito legal. Deu dó, ao mesmo tempo, de pesquisá-los e ver como estão se acabando, seja por crença, que alguns dos povos sãs eu sei que até se converteram e, se não me engano, a maioria foi para o Islã por causa da dominação que teve, e, se não é pela diminuição da crença em si, é pela diminuição do próprio povo, que é pior ainda. Então tem que tomar cuidado. Não se acabam só os mitos e as narrativas, se acabam também os povos. Isso que é perigoso.

[Trilha sonora]

[01:17:36]

(FIM)