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Nesse episódio do Papo Lendário, Leonardo Mitocôndria, Nilda Alcarinquë, e Juliano Yamada conversam sobre como são os deuses criadores e como são os deuses que lideram.
Veja quais sãos os deuses responsáveis pelas criações nas mitologias.
Entenda como um deus que lidera seu panteão não precisa ser o mesmo deus que criou o mundo.
Veja alguns dos padrões que temos tanto de deuses que ocupam o posto de líder e os deuses que criam.
— EQUIPE —
Pauta, edição: Leonardo Mitôcondria
Locução da abertura: Ira Croft
Host: Leonardo Mitôcondria
Participante: Juliano Yamada, Nilda Alcarinquë
— APOIE o Mitografias —
— Agradecimentos aos Apoiadores —
Adriano Gomes Carreira
Alan Franco
Alexandre Iombriller Chagas
Aline Aparecida Matias
Ana Lúcia Merege Correia
Anderson Zaniratti
André Victor Dias dos Santos
Antunes Thiago
Bruno Gouvea Santos
Clecius Alexandre Duran
Domenica Mendes
Eder Cardoso Santana
Edmilson Zeferino da Silva
Everson
Everton Gouveia
Gabriele Tschá
Hamilton Lemos de Abreu Torres
Higgor Vioto
Jeankamke
Jonathan Souza de Oliveira
José Eduardo de Oliveira Silva
Leila Pereira Minetto
Lindonil Rodrigues dos Reis
Maira Oliveira Santos
Mariana Lima
Mateus Seenem Tavares
Mayra
Nilda Alcarinquë
Paulo Diovani Goncalves
Patricia Ussyk
Petronio de Tilio Neto
Rafael Resca
Rafa Mello
Talita Kelly Martinez
— Transcrição realizada por Amanda Barreiro (@manda_barreiro) —
[00:00:00]
[Vinheta de abertura]: Você está ouvindo Papo Lendário, podcast de mitologias do projeto Mitografias. Quer conhecer sobre mitos, lendas, folclore e muito mais? Acesse: mitografias.com.br.
[Trilha sonora]
Leonardo: Muito bem, ouvinte. No episódio de hoje, vamos refletir sobre um conceito comum nas mitologias e, com isso, eu estou aqui com o Yamada…
Juliano Yamada: Olá, vocês.
Leonardo: … e com a Nilda.
Nilda: Olá, olá.
Leonardo: A ideia desse episódio começou com uma reflexão minha ao notar a quantidade de deuses de diversos panteões que possuem o aspecto de líder, de rei ali do panteão, porém que esses mesmos deuses não foram os criadores do universo, não são o princípio em si. Ainda que sejam os mais adorados, sejam os principais, eles não são os que necessariamente criaram tudo a partir do zero. Eu comecei essa pauta com essa ideia de comparar o que seria um deus criador versus um deus regente, mas é interessante que, pesquisando nesse assunto, a gente vai vende a pluralidade que tem nas mitologias diferentes, nas culturas diferentes e como esse conceito de deus criador e o conceito também de deus líder, deus regente também pode ser bem amplo. Ainda que o objetivo aqui vá ser comparar os deuses criadores com os deuses regentes, a gente tem que ter noção de que são termos genéricos, então fica amplo quando você vai pesquisar mais a fundo, pois isso vai variar de cultura para cultura. Na verdade, a gente até vai mostrar essas variações – isso que é legal, ver essas diferenças. Enquanto que em algumas culturas, algumas mitologias, o criador é quem realmente criou tudo ali em sete dias, por exemplo, em outras a criação vem aos poucos e muitas vezes vem até de diversos deuses, não é um único criador que você pode dizer. E também a gente tem que deixar claro que o que a gente quer dizer com tais termos, porque a gente fala deus criador: a que a gente se refere nisso? Teoricamente, seria uma divindade que deu origem ao universo, deu origem aos elementos da natureza. Porque, se não definir bem, de certa forma, em algumas mitologias praticamente toda divindade é uma divindade criador, porque é comum que tenha: “A divindade pegou não sei o que lá e criou um instrumento, criou uma flauta, criou não sei o que, criou uma árvore” e tudo, então deus criador só por ter criado qualquer coisa tem de monte. Tipo, eu menosprezei os deuses, mas ok, a gente está se referindo a deuses criadores do universo, criadores do mundo. Mas a necessidade de a gente definir isso mostra como esse termo é plural, e a ideia também de deus regente a gente vai estar se referindo àqueles conceitos de ter uma divindade principal. Em monoteísmos, obviamente, vai ser a única divindade que está ali, a principal, mas em politeísmo, que é o que mais se encontra na história da humanidade, são mitologias e culturas politeístas, é comum que tenha-se uma divindade que seja a mais adorada ou então é colocado que ela é a que rege sobre os demais deuses: uma organização, uma hierarquia. Então é isso que a gente vai considerar como deus regente. Seria o deus líder, o deus rei. E também, quando a gente for entrando nas culturas, a gente vai vendo as variações disso.
Nilda: A princípio, parece essa coisa do deus criador, que meio que depois ou não se torna tão importante a ponto de ser cultuado sempre, ou mesmo na mitologia ele se retirar para outro lugar. A gente é criado em um mundo monoteísta, cristão, hebraico; a gente acha isso meio estranho, mas é muito constante isso: o deus que se retira ou o deus que pelo menos não está mais dando pitaco, ele deixa os outros resolverem os problemas do mundo.
Leonardo: Ou os outros que pegam o lugar dele. A gente vai ver outros exemplos, mas foi interessante falar do que a gente está acostumado, porque realmente a gente aqui, ocidental, está acostumado com essa ideia do monoteísmo e do deus hebraico, para ser mais específico. Tanto que até inicialmente eu queria deixar isso do deus hebraico mais para a frente, falar dos outros exemplos, mas é legal partir dele, porque o estilo de divindade hebraica é o que a gente está mais acostumado a ver. Claro, a gente que estuda mitologia já vê outros estilos, normal, mas em geral as pessoas estão acostumadas com essa ideia, de: é um único deus, ele é o que criou tudo, ele é o responsável por tudo, muitas vezes até tudo é ele ao mesmo tempo. É aquela coisa: onipresente, onisciente, onipotente. Ele é o criador e, por ser também o único, é o líder, é o que lidera ali. Por isso que, quando a gente vê essas outras formas que a gente vai mostrar mais para a frente, é diferente. Até muitas vezes eu já vi gente falando: “Mas espera aí, Zeus, como ele é o deus supremo ali se teve coisa dele antes? Espera aí, ele não é o principal deus? Não é o criador?”. Não necessariamente, realmente, é diferente. É uma pegada diferente. E a gente está acostumado com esse hebraico, que é tudo.
Nilda: Lendo a fonte principal de todo conhecimento, a Bíblia, você percebe que até certo… pelo menos no Pentateuco, ele é o deus onisciente, é o deus que está vendo tudo, é o deus que criou. Em muitas narrativas, no Livro do Juízo e tudo mais, os juízes e o povo hebreu têm que provar que o seu deus é um deus mais poderoso que o deus do país vizinho ou do povo inimigo, então, por mais que agora esteja consolidado que é o deus único, é o único que existe, não existe nenhum outro, no judaísmo e na religião cristão, e mesmo no islamismo tenha isso, no começo o próprio povo hebreu não pensava isso. Quer dizer, ele era o deus criador de tudo, era o deus mais poderoso de tudo, por isso eles seguiam, mas existiam outros deuses nos locais vizinhos. Demorou para essa coisa do deus único realmente existir. Era o que a gente chama de monolatria – eles adoravam um deus único, mas tem vários trechos na Bíblia que dão a entender que o deus único está provando que é… Israel ganhou uma guerra porque o seu deus é mais poderoso que o outro, essas coisas todas.
Leonardo: É, até essa ideia que a gente colocou do deus único em si é visto no popular atual do ocidente. Como a Nilda falou, se você vai pesquisar na Bíblia, você vê certas passagens ali que mostram que as outras culturas tinham, sim, seus outros deuses. Atualmente, quando você for colocar isso de que outras culturas têm outros deuses, seria no máximo: são falsos deuses, é errado ou é coisa até do demônio. Seria assim, vai colocar: “Isso aí é coisa do demônio”. Ou então muitas vezes você pode até pôr: “Não, isso são vertentes da divindade”, então deus é um só, mas, para aquela cultura, ele se mostrou de outra forma. São maneiras de se colocar que tudo é um deus só.
Nilda: A interpretação cristã mais recente sobre a existência de crenças em outros deuses é que deus não se revelou plenamente para essas pessoas ou o entendimento dessas pessoas, desse povo, não foi suficiente para pegar toda a mensagem de deus. Quem pegou toda a mensagem de deus foram os cristãos.
Juliano Yamada: Tem um ponto interessante e importante até para lembrar que toda humanidade evolui, e a gente sabe que os povos antigos podiam guerrear entre si, entrar em dominação, mas você sabe que um povo, quando domina o outro, não destrói o povo derrotado por completo – é muito raro, você tem poucos casos disso registrados na história – ou você pode ter uma aliança. Então o que acontece quando você tem dois povos que se embatem e têm religiões diferentes? Se um povo dominou o outro, é claro que povo dominado, a religião dele vai ser suplantada. Então a religião dele acaba se tornando demônios ou maligna, ou algo do gênero. O cristianismo fez isso, mas a gente sabe que os povos antigos fizeram a mesma coisa. Ou você ter a unificação dessas religiões, então o deus menor ou o deus criador vira um deus antigo, que acabou se deixando de lado e sendo substituído por um deus mais novo. Então eles acabam misturando isso. Por que uma religião tem um deus criador e um deus regente? A gente vê isso no registro histórico ou até mesmo a própria evolução: “Cansei de rezar para esse deus, porque ele não me responde. Mas esse outro deus menor está me respondendo agora. Mas eu não quero esquecer o deus antigo”.
Leonardo: Deus visualiza, mas não responde, então não vou também mandar mais mensagem.
Juliano Yamada: Exatamente isso.
Leonardo: Vou mandar mensagem para o outro.
Juliano Yamada: E é legal – eu não sei, acho que não está na pauta -, é interessante ver que deus criador e deus regente, a gente vê isso nos livros do Tolkien. Tolkien colocou isso de uma forma brilhante, ele explicou a evolução: você tem um deus criador, esse deus criador é praticamente não citado nas obras da Quarta Era, ele quase não existe, mas as divindades que vieram, que eram os regentes, que até estavam sob o jugo da divindade criadora, estavam lá sempre sendo citadas. Principalmente nos livros do Senhor dos Anéis, algumas dessas divindades são citadas ali. É interessante que ele coloca a forma e mostra a evolução. Por mais que exista paralelo – e o Tolkien falava que não existia esse paralelo, mas você o compara com o cristianismo, você vê muitos pontos parecidos -, ele usou embasamentos mais antigos, que provavelmente eram fontes que basearam o cristianismo, a parte mais cosmogônica do cristianismo.
Leonardo: É, o Tolkien é um exemplo que tem que estar aqui na pauta e mais para frente até a gente vai entrar em um estilo dessa divindade que a gente tem, que é, no caso do Tolkien, da divindade principal, que é um aspecto bem comum em algumas divindades pelas mitologias ao redor do mundo. Antes de sair aqui do deus hebraico, é interessante que teoricamente, então, a gente mostrou que esse deus monoteísta é popularmente visto como o criador e o rei, por ser o único. É o panteão de um deus só, então ele é criador, é rei, fica tudo nele. Mas, se você analisar até a questão do cristianismo em si e especificamente do cristianismo, a gente tem deus-pai como criador, ele que fez tudo, criou Adão e Eva, está no Gênesis, mas a gente tem Cristo como um rei da humanidade. Ele veio aqui, iria estar reinando sobre nós. Quando você o põe como rei, a palavra rei muitas vezes é voltada para Cristo, não é voltada para deus-pai. Vou dizer deus-pai, porque na Trindade coloca-se tudo como deus, mas o deus Cristo, que veio, não se coloca como criador especificamente; muitas vezes é mais dito como um rei: vai reinar sobre o homem, coisa desse tipo. Mesmo que seja mais forma de tratamento, porque, como falei, na Trindade ali tudo é deus, mas tem essa forma de tratar. Então ali você já vê também: de certa forma, é um resquício dessa imagem de um deus criador e depois tem o deus que realmente rege.
Nilda: Fala que é um aspecto de deus: tem o aspecto criador, o aspecto de Cristo, que trouxe a mensagem, o rei, e o aspecto do espírito santo, que é o inspirador e o mensageiro. Se você pensar não como cristão, mas analisando mitologias e tudo mais, é como três deuses, cada deus com um atributo diferente.
Leonardo: Quem normalmente está de fora das mitologias pode achar isso meio confuso, mas a coisa mais comum é uma divindade ser outra, ao mesmo tempo não ser, e ser o próprio filho, ser o próprio pai, ser o próprio irmão. Mitologia é assim mesmo.
[Trilha sonora]
[Bloco de recados]
Leonardo: Mas agora indo para outras mitologias, vamos para a mais clássica mesmo, a única que a gente pode chamar de mitologia sem medo nenhum, porque veio de lá a palavra, que é a greco-romana. E ali a gente vai ter um aspecto de que quem são os deuses criadores? Normalmente, é dito que seriam os deuses primordiais, mas ali, falando dos gregos, é bom a gente lembrar de como a gente definiu a questão de deus criador, porque a mais famoso na mitologia grega é a Teogonia de Hesíodo. E lá as criações são feitas de forma genealógica, porque muitas das coisas criadas, na verdade, não são coisas por si só, e sim divindades. Então é o deus tal, que teve o filho tal, e esse filho é tal elemento, tal divindade: teve o Oceano, teve o Mar, teve as Montanhas. São divindades e os elementos em si. E como eles foram criados? Sendo gerados de pai para filho. Ou de pai e mãe para filho ou de pai para filho ou de mãe para filho, porque algumas vezes foram sem parceria. Então a gente não tem aquela ideia de um deus modelador, pelo menos nessa parte aqui, na cosmogonia. Não é aquele deus que foi lá e moldou algo do barro ou pegou algo e transformou em outro; não, é que ele teve filhos e esses filhos fazem parte da criação. A noite e o dia não teriam sido criados, mas sim gerados. Isso é bem comum nas mitologias, isso não é só da mitologia grega, mas a Teogonia é um bom exemplo disso, porque a Teogonia é praticamente uma listagem genealógica.
Nilda: É uma maneira de o Hesíodo tentar juntar tudo.
Leonardo: Tanto é que, na Teogonia, para questões de estudo, é muito comum: você a estuda e depois você vai para as outras versões para entender as mudanças, porque ela é uma que tem um… não vou dizer que tem um começo, meio e fim, porque faltam pedaços ali – não da obra dele em si, mas ele não colocou tudo que tinha na Grécia, seria impossível, mas o dele é bem completinho, tem bastante coisa. Então é a partir dele que você vê as alterações. Daqui a pouquinho a gente vai ver. Como eu falei, então, a criação, os deuses criadores, no máximo você pode, então, falar que seriam esses deuses primordiais, porque chega a um nível que alguns surgiram do nada. Então vieram o Caos, Gaia e Eros. Isso aí é bom deixar claro que muita gente confunde, eu mesmo já confundi em algumas vezes de que tudo veio do Caos. Não. Caos, Gaia e Eros – segundo a Teogonia do Hesíodo – surgiram do nada. É que o Caos veio primeiro, depois veio Gaia e depois veio Eros, mas Gaia e Eros também vieram do nada. Eles não são filhos de Caos. São as três divindades que surgem do nada e são as divindades mais criadoras, por assim dizer. Gaia – é bem óbvio -, com Urano, ela teve todos os Titãs, teve os principais deuses e teve outros filhos aí surgindo do nada, sem parceria, vindos diretamente dela. Tanto que Gaia, na mitologia grega, você vai ver que cai qualquer coisa no chão, nasce algo, nasce alguém, nasce alguma divindade, nasce algum ser, que é bem essa ideia de a Gaia gerar de tudo. E também porque é aquele negócio: você planta algo na terra, nasce. Então você vê que a relação está nisso. Mas o Caos também teve, Eros também teve. E fica uma certa dúvida se existe um quarto deus ou não primordial, que seria o Tártaro, porque fica aquela dúvida se o Hesíodo estava dizendo que o Tártaro era um local ou era uma divindade. Poderia ser os dois, mas fica na dúvida se de repente não estava dizendo só que era um local mesmo, não era uma divindade. Em alguns outros autores, você vai ver isso variando: alguns tratam como local – Tártaro, onde ficam os Titãs; outros, como uma divindade; outros como os dois. Varia. Mas, a princípio, Caos, Gaia e Eros são os deuses primordiais e, com isso, a gente pode chamá-los de deuses criadores, porque eles que deram origem a tudo. Então a gente falou dos deuses primordiais gregos e da criação, a cosmogonia – ou Teogonia, porque também seria a origem dos deuses. E aí, para quem não conhece, tem os deuses primordiais e, em seguida, vêm Cronos e os Titãs, que aí são filhos de Gaia e Urano. Urano vem direto de Gaia e aí os dois começam a ter os Titãs. E é aquela coisa: os deuses aí são bem os elementos mesmo: se não é o Oceano, é o deus que vai reger sobre os oceanos, mas é algo bem focado ali no elemento. Depois de Cronos que aí sim vem Zeus. Isso é bem conhecido, que é a Titanomaquia, e aí sim que Zeus derrotou os Titãs, derrotou Cronos, aí que ele se tornou rei. Então Zeus é o exemplo mais óbvio de deus rei, porque ele não foi o criador, tem pelo menos duas gerações antes dele, ele derrotou o pai dele e só aí, sim, que ele conseguiu reinar. Isso é interessante, isso é bem claro. Ele precisou derrotar Cronos para poder ir lá ao Monte Olimpo, respirar e falar: “Opa, agora é com a gente”, ele com os outros olimpianos. Claro que vai ter algumas versões que colocam que depois vieram os gigantes para ele derrotar, depois veio Tifão para ele derrotar, mas é sempre assim: começa com os Titãs e aí ele derrota todos os obstáculos e aí sim ele se torna rei. Ou seja, é um deus conquistador. Se você for pensar um rei, questão de reinados de antigamente, faz sentido isso: conquistar. E aí, referente a Zeus, a gente vê bem que ele não é um deus onipotente. Por mais que ele seja o deus rei, o mais adorado, o que lidera tudo, o que, se você contrariar, você está realmente ferrado e tudo, ele não é onipotente, porque tem outras divindades que estão pau a pau com ele, sabe? Um exemplo disso são as moiras, que é o destino. Então mostra que Zeus, ainda que seja o deus rei, o líder de tudo, ele ainda está abaixo do destino.
Nilda: Esses elementos primordiais, que parecem ser primordiais, não podem ser confrontados nem pelos deuses a qualquer momento, que é o destino. Eu acho que até mesmo a Hécate. Ele não pode ficar confrontando-as; tanto ele como os outros deuses não podem ficar confrontando-as de qualquer jeito ou a qualquer momento. Tem que tomar muito cuidado.
Leonardo: É, isso mostra por que, querendo ou não, os deuses mais primordiais são desses elementos mais grandiosos mesmo: é o Oceano, é a Terra ou é o Vazio, que é o Caos. São coisas extremamente grandiosas, não é só uma ninfa de um rio ali, alguma coisa bem mais localizada. São coisas grandiosas. E aí vai se formando. Você vê que a formação do mundo é aos poucos, nesse sentido. Porém a gente ainda tem a imagem de Zeus distribuindo as funções dos deuses, e aí coloca-se que os deuses que vieram a seguir, ele que foi definindo, muitas vezes. Então a Atena, deusa da sabedoria, vem dele, vem por causa de Zeus; os outros filhos dele, todos, meio que ele foi distribuindo as funções. Então tem quase um quê criador nesse aspecto. Não fica tão óbvio, mas fica um pouco isso aí. Mas muito mais ainda preso à ideia de deus regente, que está ali reinando e tudo.
Nilda: Não seria mais um ordenador do que um criador? Colocando ordem nas coisas.
Leonardo:É, passa muito essa ideia. Porém isso é a Teogonia do Hesíodo, que é mais certinha de você ler, mais fácil de entender. Mas a gente tem outras cosmogonias gregas, então tem outras versões. Isso dá para se aprofundar em outros episódios mais para frente, dá para se aprofundar em cada uma delas, mas a gente tem muito a ideia de que muda essa questão de tudo vir do Caos, Gaia e Eros. Tem umas que mostram que veio da noite: a noite que criou; tem outras que mostram que é do oceano. E aí são variações dentro de si mesmo. Tem umas que mostram que a noite veio do oceano, e aí outra que mostra que ela botou um ovo e aí que nasceu tudo. Agora de cabeça não vou lembrar dos detalhes, mas muda, não fica mais aquela coisa dos três deuses primordiais – Caos, Gaia e Eros. Muito disso é culpa do orfismo – culpa como se fosse mal, mas não, veio do orfismo. O orfismo é uma vertente bem específica que teve na Grécia, tem os mistérios de Orfeu, que ele batia de frente com as crenças padrões da época. E ele muda muita coisa: muda o jeito da criação, é ele que – acho – põe que vem da noite, tudo vem da noite. É interessante essa ideia de as coisas virem da noite, porque a gente começa o nosso dia de dia, mas, querendo ou não, a ideia é que as coisas vieram da noite: primeiro tinha noite, depois que veio a luz, então depois que vem o dia. Começa pela noite e aí passa-se um tempo, surge o dia. Tanto que, se não me engano, tem uma das versões que mostra que o dia é filho da noite.
Nilda: Muitos povos… o dia começava com a noite, quando a noite caía. Os hebreus eram assim, para vários outros povos. Você começava a contar que o dia terminava… o sol se pôs, o dia terminou, então a noite já pertence ao outro dia, para a gente entender um pouco do porquê desse pensamento de começar a noite. Porque o dia termina, a noite começa, então a noite é outro dia, é o início de tudo. Tudo está começando ali. E outra coisa: a gente fala às vezes da mitologia grega, a gente não pode esquecer que a gente fala muito das coisas gregas porque são coisas que a gente teve muito contato, foram os primeiros textos a serem salvos, os mais fáceis de entender. Várias coisas assim. Mas os gregos eram um povo que já sofria influência; antes de a Grécia existir, de os gregos serem reconhecidos como um povo único, já existiam mesopotâmicos, já existiam egípcios, já existiam outros povos com outras origens de mundo, e para isso ter se misturado nessa cosmogonia grega não é difícil. Eles tinham contato com esses outros povos também e eles já… quando a Grécia surge como… não é uma unidade, porque a Grécia nunca chegou a ser uma unidade, mas como um povo reconhecido como tal, um povo específico, o Mediterrâneo já tinha mais de três mil anos de história.
Leonardo: E aí, para fechar essa questão do orfismo, que é o que mais diferencia aí dos gregos, a gente tem essas cosmogonias diferentes, e mais para frente aí a gente se aprofunda em outros episódios, mas só para vocês verem que tem outras formas de criação, tem outros deuses criadores, e a gente tem Zeus, que não é o primeiro deus, em uma dessas versões… que o próprio orfismo também tem suas variações dentro dele, e aí tem uma que mostra que Zeus não é o primeiro deus, mas é o principal ali, deus regente, só que aí a gente tem que pegar também que uma divindade importante para o orfismo é o Dionísio. O Dionísio, quando era pequeno, morre, os titãs o destroem e o comem, mas Zeus tira o coração dele para que ele possa renascer e fulmina os titãs, e, das cinzas, nasce a humanidade. Então a gente nasceu das cinzas dos titãs junto com as cinzas de parte do Dionísio, então a gente tem essa dualidade. E o orfismo, não generalizando, mas fazendo uma comparação bem superficial, é o mais perto do que a gente pode dizer de uma religião. Não que as crenças dos outros gregos não fossem religiões nem nada, mas esse aspecto basicão que a gente tem de religião, de salvação, de você ter que fazer o certo para melhorar e coisa assim, isso o orfismo tem. Então essa coisa superficial, se a gente for falar de uma religião, esses conceitos assim, a gente vai encontrar no orfismo. Então a gente vê um quê de religião nele ali. E nisso então temos a gente tendo nascido dos titãs e do Dionísio. E aí a gente tem uma versão que mostra que, depois disso, Zeus engoliu todos esses seres, seguindo um conceito bem comum na mitologia grega, que é o de engolir outros seres, e aí a gente tem Zeus engolindo todos eles, todos os seres que tinha, e de ali recriando tudo. Então a gente vê no orfismo, sim, uma versão que coloca Zeus como uma divindade criadora – regente e criadora. É algo bem específico ali do orfismo.
Nilda: O orfismo é um culto, vamos dizer assim, um pouco mais tardio na Grécia. Uma forma de culto um pouco mais tardia, que chegou a trazer problemas na Grécia, porque você tinha vários cultos, você tinha mistérios e tal, mas você ser religioso, você prestar o culto, as homenagens ao deus, entre os gregos era uma coisa que todo mundo fazia, mas era de uma maneira quase cívica que você fazia, mas não era uma coisa, digamos assim, meio fanática, enquanto que o orfismo, a pessoa tinha que estar meio que a todo momento mostrando aquela devoção. Era uma devoção muito mais forte, muito mais presente, que causava estranheza entre os gregos. Tinha um deus ao qual você era mais devoto, mas pronto, não era essa coisa mais, digamos assim, presente, quase fanática. O orfismo tinha um pouco, ele teve esse problema, acabou gerando um certo problema social, uma época, até ele se adequar aos cultos da época, até ele ser realmente aceito e tudo mais.
Leonardo: É, e tinha muitas críticas que ia muito contrário… o pessoal que seguia o orfismo era vegetariano, se abstinha de muitas coisas ali, porque eles acreditavam em reencarnação, então por causa disso não poderia fazer mal para os animais, então não poderia ter sacrifício de animal. E isso era muito comum na Grécia inteira, você sacrificar o animal. Não podia fazer isso, alguém que era adepto do orfismo. Então era bem diferente, então batia de frente.
Nilda: Tem uma sobre o sacrifício animal entre os gregos que é muito interessante, porque às vezes você lê que, por exemplo, tal rei ou tal personalidade fez um sacrifício grande e tal por devoção, mas não era só isso. Você sacrificar um animal significava que você iria comê-lo. Dependendo do animal e da quantidade, era a quantidade de pessoas que você convidava. Uma pessoa que fosse importante, um político importante fazia sacrifícios enormes, porque aí ele distribuía a carne, porque qualquer animal que você matasse era um sacrifício. Você tinha que queimar as vísceras e comer a carne, em uma época que não tinha geladeira, em uma época que você no máximo cozia a carne ali e guardava por um, dois dias. Não tinha outros métodos de conservação. Então o sacrifício de animais era inclusive… você sacrificava em uma grande oferenda ao deus ou à comemoração e distribuía carne para as pessoas. Quanto mais você sacrificava, você distribuía: você alimentava. Agora, você imagina ter um culto que não faz isso. Como é que um político que ganha cargos ou ganha prestígios na Grécia consegue manter o seu prestígio se ele não vai mais distribuir carne?
[Trilha sonora]
Leonardo: Bom, isso foram os gregos, mas, como eu falei, a gente vai falar de deuses criadores e regentes de várias culturas. Então agora a gente vai para os nórdicos. Bom, eles têm também um aspecto meio parecido com o dos gregos, que eles têm a sua criação, sua cosmogonia, mas o deus regente veio bem depois. A cosmogonia dos nórdicos é aquela bem estranha, da vaca lambendo o gelo, e aí derretendo e surgindo o gigante, e do gigante nasce outros gigantes. Mantém aquela ideia de criação por parto, está ali gerando filhos e de aí que vem. Apesar que esses primeiros gigantes não foram necessariamente de parto, eles nasceram das axilas do primeiro gigante, mas é isso, um ser veio do outro. E aí a gente tem… isso é interessante, porque na mitologia nórdica em geral a gente vê que os gigantes são como se fosse a natureza, e por isso que são perigosos, porque a natureza é algo perigoso, algo que você tem que saber lidar; enquanto que os deuses mostram bem a questão da civilização ali tendo que se virar com a natureza e, no caso, seria derrotando os gigantes. Por isso que a gente tem gigante do gelo, gigante do fogo, aspectos naturais. Então essa é a cosmogonia, e aí a gente vê Odin se tornando regente fazendo isto: derrotando o gigante e pegando das partes dele – ele e os irmãos dele, Odin, Vili e Vê – e montando o mundo. Então aí a gente tem que Odin não foi necessariamente o criador, porque tinha já coisas antes, mas ao mesmo tempo ele modelou – ele realmente seria um deus modelador. Se a gente não for chamá-lo de criador, pelo menos a gente pode chamá-lo de um deus modelador, porque ele pegou os pedaços desse gigante e montou o mundo, ainda que tivesse coisas antes já. Mas é aquela narrativa bem clássica de que com o cérebro do gigante ele fez as nuvens, um olho fez o sol, o outro olho fez a lua, os vermes do gigante se tornaram os anões, e os três deuses aí modelando tudo. Então a gente o vê como um deus criador nesse aspecto, ele fez uma certa criação ali de mundo em si, mas ele também é o deus regente. Ele é bem famoso por ser o deus regente, e que foi se tornando o deus regente ou foi se tornando cada vez mais importante ao tempo em que ele foi fazendo os sacrifícios, ele foi passando por provas, se tornando mais sábio. Ele não está pronto ali; ele vai melhorando e se torna o deus regente, o Odin Pai de Todos. Isso é legal também, esse termo Pai de Todos. Zeus também é o pai e tudo assim. Mesmo que diga que é pai, é muito mais naquele aspecto de líder, de quem vai comandar, do que pai realmente que gerou.
Nilda: A gente vai percebendo com o tempo que você tem o deus que deu origem à existência. A vaca lá que lambe deu origem à existência de vida; agora, o que acontece depois disso, você pode criar várias… os outros deuses criam outras coisas ou não. Isso não é só na mitologia nórdica, mas é um aspecto. O Odin não é o primeiro a existir, mas é o primeiro a modelar o mundo.
Leonardo: É o que o torna propício para nós. Isso é bem interessante. A gente vai dar muito valor para aquela divindade que torna o mundo propício a nós, seja tornar o mundo habitável, seja nos criar, porque aí a gente está indo não para uma cosmogonia, mas para uma antropogonia – seria a criação do homem -, e, nesse sentido, Odin… certeza de ser um deus antropogônico, porque ele e os irmãos dele que criaram a humanidade. Então aí você vê: a gente vai dar valor para aquele deus ali que é responsável por nós, independentemente do que foi criado antes ou não. A gente só está aqui por causa de Odin, segundo a mitologia nórdica, porque ele nos criou, então ele que é o deus rei.
Nilda: É o correto. O deus que criou os anões, os anões que vão cuidar dele. Isso é outra coisa.
Leonardo: Então você vê um aspecto bem parecido com a mitologia grega, tem as suas semelhanças. No caso da grega, aí fica… quem criou os humanos vai variando. Não é necessariamente Zeus; Zeus até bate de frente com os humanos ali, mas é o rei também. E nos nórdicos a gente tem Odin como rei e como criador da humanidade. Essa relação de ter uma importância para a humanidade, a gente vê muito nos egípcios. Na cultura egípcia, a gente precisa lembrar que tem muitas versões – claro que todas essas também tinham, mas na egípcia é muito disso aí -, só que variava muito na importância mesmo da divindade por causa dos locais. Tinha locais e épocas. Tinha época que era uma divindade só; tinha época que eram várias; tinha local que dava ênfase para uma, e aí mostrava que essa uma que realmente era a criadora. Então varia muito. Então, para falar dos egípcios, é legal a gente pegar o mais popular mesmo, o mais básico, o que você encontra em qualquer livro de mitologia, que é o que Rá, o deus-sol, criou da saliva dele – então você vê, não é mais aquela questão de gerar um filho, ter um parceiro sexual e gerar um filho, mas veio dele, da saliva dele – o deus Shu, que é o ar seco, e Téfnis, que é o ar úmido. Da união desses deuses que aí sim nascem os outros deusas. E aí Rá também criou das lágrimas dele nós, os humanos, e também criou os outros animais, criou o mundo, foi modelando. Então a gente vê aí Rá com um aspecto criador.
Nilda: Frutos de secreções.
Leonardo: Sim. Não deixa de ser verdade.
Juliano Yamada: É bem isso que eu ia falar, só erraram as secreções.
Nilda: Que do deus é essa secreção, aí depois, quando há a reprodução, é outra. Uma coisa é a criação, a outra é reprodução.
Juliano Yamada: Então a criação era tipo… não sabia como fazer, fez do jeito que pôde. Aí depois, reprodução… aí acertou o jeito.
Leonardo: Com o tempo vai aprendendo como que faz. E, nesse caso dos egípcios, a gente vê Rá como um criador, nessa versão aí sem dúvida, mas também vê como um deus principal. Ele é um dos mais adorados em muitos locais do Egito ali, porque é o deus-sol. O sol vai ser muito importante para os egípcios, então é natural que ele seja o deus principal, o deus rei. Só que aí isso também vai variar, porque, como eu falei, teve época que ficou monoteísta, entre aspas, com o Aton. O Aton, em outras épocas, era uma vertente do Rá, então isso que deixa a mitologia egípcia muito confusa, que um deus vai ter não só vários nomes, como realmente várias vertentes ali: o sol de tal horário é uma vertente do deu sol; o sol de outro horário é outra vertente; em alguns locais vai dar mais ênfase em um, em outro, mas em geral, no popular, a gente pode colocar como Rá sendo o deus criador e o deus rei, o deus principal, o deus supremo.
Juliano Yamada: A gente tem que sempre lembrar que os egípcios viviam às margens de um deserto. No deserto gigantesco, dependendo do horário do sol, pode significar a sua salvação que em certos horários você tem aquele orvalho, e orvalho é água no meio do deserto, água é vida. Então, se você não tiver uma fonte de água próxima… acho que, se não me engano, entre cinco da manhã e sete da manhã, você tem o ponto de orvalho, e, desse orvalho, você pode conseguir produzir água. Dá muito pouca água, mas é melhor do que nada. Tem horários em que, se você ficar muito pouco tempo sob o sol escaldante, acho que entre dez e meia, 11 horas da manhã e três da tarde, você desidrata muito rapidamente, você pode ter uma insolação e morrer. Quando o sol começa a se pôr, significa que a noite está chegando e, para os egípcios, a noite no deserto é tão perigosa quanto o dia, que há animais que só saem à noite, animais muito venenosos, muito peçonhentos, e sem falar que a noite também no deserto é muito fria. Você pode morrer congelado no deserto, de frio. Isso é algo bem interessante. Então para eles aquele horário podia significar um ponto do deus Rá, mas nem sempre era um ponto bondoso.
Leonardo: E aí a gente, então, viu Rá como um deus criador e um deus rei, tendo todo esse perigo do deserto – todo esse perigo e toda essa importância que o sol vai ter perante o deserto, mas aí o ouvinte pode perguntar: e o Osíris? Que também é um deus bem famoso, tem toda uma narrativa dele. O Osíris não é um criador especificamente, pelo menos nessa parte cosmogônica; ele é muito visto como um deus rei. Só que ele não tira o posto do Rá, mas ele é muito um rei voltado para a humanidade. Está muito mais próximo até de nós ali do que outras divindades, do que o próprio Rá em si, porque ele que nos ensinou a agricultura, ele que nos ensinou várias coisas aí para vivermos como uma civilização. Ele veio aqui na Terra para fazer isso tudo em si, seria essa ideia. E tem toda aquela narrativa de ele ser morto por Seth, que aí vem o filho, aí vem Hórus para se vingar. Então tem todo esse elemento que mostra que ele não é algo onipotente, mas ainda assim é um deus que foi evoluindo com o tempo. Somente por causa dessa narrativa que também ele se torna um deus do submundo, um deus dos mortos, que é um aspecto bem característico dos egípcios, a questão da mumificação e tudo mais. Então a gente vê, é um deus rei bem peculiar, porque ele não é o que vai reinar perante todas as divindades e tudo mais, mas ele é muito importante para a humanidade. Então, se a gente lembrar daquele aspecto do Odin, de ser bem importante para nós, porque foi o que nos criou e tornou o mundo habitável para nós, o Osíris vai ter isso. Ele foi a divindade que nos ensinou a realmente viver, senão a gente já era, já estaria extinto, porque não ia saber se virar. Então ele é importante nisso, mas ele não é o deus que vai comandar todas as divindades, não é algo desse tipo.
Nilda: É outro aspecto de um deus rei – um deus rei, mas para os humanos.
Leonardo: Indo ali próximo, a gente falou dos egípcios, a gente vai para os mesopotâmicos, e o deles… não vou destrinchar aqui a narrativa em si, mas a gente tem também variações e ele é muito do exemplo de conquista também, que é o Marduk, que enfrenta Tiamat. Dos pedaços da Tiamat, ele vai moldando o mundo. Então é bem parecido com o caso nórdico, a mitologia nórdica, o que o Odin fez com o gigante. Aí o Marduk que derrota e se torna também um principal deus. E mesopotâmico também tem muitas variações de época e local. Em alguns você vai ver outras divindades, mas o Marduk – que, se não me engano, é o que é tratado no Enuma Elish, um dos textos mais famosos, é o que mostra a questão do Marduk ser extremamente importante, extremamente adorado, e é quando ele enfrenta Tiamat.
Nilda: E tem um aspecto interessante, que tem várias interpretações, essa história, porque o Marduk acaba tornando possível a existência da humanidade, porque a Tiamat é um elemento primordial de água, e isso pode significar você aprender a lidar com os rios – Rio Eufrates e o Tigre, quando eles enchem. Eles não tinham a mesma constância do Nilo, era outra constância, mas você domar o rio é você tornar possível a existência da humanidade ali. É o deus conseguindo domar esse elemento primordial da água, que é devastador, então você saber lidar com isso. O Marduk tornou possível as civilizações, porque foram várias civilizações ali.
Leonardo: É, e esse do Marduk a gente vê que tem essa questão de criador, mas ao mesmo tempo tem coisas antes, então o dele é muito essa ideia de ordenar, de colocar ordem nas coisas, organizar. Pega os pedaços da Tiamat, molda tudo, mas tem até outras divindades antes: o Anu e tudo, tem vários ali.
[Trilha sonora]
Leonardo: E agora a próxima cultura que a gente tem aqui, que vai falar dos iorubás. O interessante de falar dos iorubás é um aspecto que a gente vê em outras culturas, mas ela marca bem, que a gente tem o Olodumarê ou Olodum, que é o ser supremo e criador. Porém é comum você ver dito que o Olodumarê, mesmo sendo supremo, não recebe muitos cultos como os demais seres, os demais orixás. E aí nisso também ele fica distante do mundo. É um deus criador distante. Isso é um aspecto que a gente vai encontrar em outras culturas, em outras culturas da África também a gente encontra isso de um deus criador que criou, mas está lá distante. E aí, com isso, são colocados o Obatalá e Odudua como criadores, mas eles têm conceitos de criadores, mas eles vieram depois do Olodumarê. Então o Olodumarê que é o primeiro criador e tudo lá, só que ele fez e ficou distante em si, e aí esses outros também como criadores, mas criaram elementos específicos. Aí eles já estão mais próximos.
Nilda: Acho que Olodumarê é o único que nunca veio até a Terra, porque é o Orun, porque tem o… eu esqueci, tem o local onde ficam os deuses e tem o Orun, que é onde nós moramos, e todos os deuses, em algum momento, estiveram em Orun, e Olodumarê não. Acho que nunca veio, esteve aqui.
Leonardo: E vocês inicialmente tinham falado do Tolkien, ele é meio parecido nesse aspecto de ter o criador, mas que fica meio que no mundo dele, fora. O Eru é meio estilo Olodumarê – ele cria, mas fica lá distante. Aí os outros seres que estão abaixo dele que vêm e vão moldando a Terra, vão criando, e são os que têm contato conosco.
Nilda: Ele deu a ideia de como criar o mundo, ele deu a ideia de como se criar humano, mas ele deu a ideia e os outros que fizeram. E Eru também foi muito isso: ele ajudou a ter todas as ideias e falou: “Agora quem quer ir lá fazer?”.
Leonardo: É interessante que nisso mostra um deus criador e também mostra como um deus regente, mas um deus regente dos deuses. Ele não vai ser o deus… mesmo que seja o principal para nós, não é o que vai ter contato ali com a gente, mas entre as divindades, entre os seres, ele é o que está ali comandando tudo, mesmo que muitas vezes possa ter, dentre esses comandados, um deus principal, um deus que a gente vai ver como principal.
Nilda: Mesmo entre os iorubás, é meio complicado. Cada cidade ou cada região tinha um orixá principal, então aqui no Brasil a gente tem meio que uma compilação disso, mas essa compilação se deve à junção dos povos de cidades diferentes.
Leonardo: É, tanto que, ouvinte, como a gente sabe que conceitos iorubás são bem fortes aqui e a gente tem ouvintes de candomblé e tudo, então diga também se no seu caso, da sua crença, muda algum desses aspectos, se é outra divindade. Eu sei que falando divindade as pessoas podem não concordar, mas outro orixá que seja o regente, se o Olodumarê tem um aspecto diferente, se teve algumas variações, porque isso, querendo ou não, a gente pega mais voltado lá para a África mesmo, mais antigo. Mas todo esse tempo teve variações, então é interessante vocês falarem como teve essas variações, quais são.
Nilda: E como toda religião, ela tem variação com o tempo. Conforme mais você vai estudando religiões e mitos, você vai vendo que há certas variações com o tempo. Eu gosto, particularmente, dessa ideia do deus que criou e que dá ideia, e aí ele cria outros deuses ou gera, ou foi criado junto com outros deuses – isso depende de cada religião – que vão fazer aquela coisa, porque sabe aquela coisa: um ajuda a pensar e os outros põem a mão na obra? No caso das religiões iorubás, tem muito isso, porque isso também pega o aspecto de cada orixá: um é mais ligado à metalurgia; outro, às plantas; outro, à caça; o outro, ao mar; o outro, ao rio; o outro, à lagoa; um, ao ouro. Cada um é ligado a um aspecto do todo.
Leonardo: Há quem diga até que no próprio catolicismo passa um pouco essa ideia, no sentido de deus e os santos, onde tem vários santos ali – não são divindades, mas são seres mais específicos e mais próximos de nós, porque já estiveram aqui na Terra e tudo, enquanto a divindade mesmo está mais distante. A gente tem outros exemplos aí. Um exemplo que é interessante a gente pensar se está distante ou não, também porque tem muitas variações, é o dos próprios indianos, na mitologia hindu. A gente tem o Brahma – com Trimurti, ele é o que cria; tem Vishnu, que mantém; e tem Shiva, que destrói para recriar. E o Brahma realmente é o que menos tem cultos. No geral, ele é o que menos tem contato, pelo menos em algumas vertentes ali. A gente vê, por exemplo, o Vishnu. Ele está direto descendo aí na Terra com seus avatares, tendo contato, vindo como Krishna, vindo como inúmeros animais. Agora, o Brahma não. O Brahma seria algo mais distante. Então ele, de repente, poderia ser um bom exemplo disso também, de um deus criador e distante.
Nilda: É, ele é distante da humanidade. Ele tem algumas histórias e tal, mas toda imagem que você vê de Brahma é ele sentado, é a questão da lótus, mas é sempre uma coisa distante. A imagem dele passa a serenidade e uma coisa superior, enquanto, por exemplo, o Vishnu tem vários outros aspectos. Você tem várias imagens muito diferentes dele.
Leonardo: O Brahma é aquele que está sereno ali, está de boa, está na boa, não está se estressando; o Vishnu é aquele que está impetuoso ali, quer fazer um monte de coisa ali, então ele vem direto, tem um monte de avatar, e o Shiva é o que está puto da vida já, já quer acabar tudo.
Nilda: E o Brahma criou o mundo quando abriu o olho e ele destrói o mundo quando ele fecha o olho e vai dormir.
Juliano Yamada: Uma coisa interessante sobre a parte dos hindus, da cultura indiana, é que eles já são religiosamente preparados de que tudo tem um começo, um meio, um crescimento, um desenvolvimento, um fim. Eles sabem que o fim é inevitável, mas eles não podem ficar só esperando o fim, eles têm que viver o meio. Isso está na cultura deles, acabou indo para o budismo. Quando você tem o surgimento do Sidarta, na Índia, o Sidarta puxa isso para ele, ele não renega o que existia antes, isso é uma coisa muito importante. E até o Sidarta tem isso na própria cultura dele. Ele retorna várias vezes, em várias formas, dependendo, de uma forma que é só para apaziguar os problemas dos humanos. Teve uma vez que ele retornou como um elefante com várias presas e ele deu essas presas para os humanos para que eles não ficassem tão ávidos pelas presas dos outros elefantes.
Leonardo: Se sacrificou praticamente.
Juliano Yamada: Ele se sacrifica, e mesmo assim os humanos ainda ficaram querendo, caçando o marfim dos elefantes.
Leonardo: Bom, isso dos hindus, ouvinte, você pode ter visto outras versões, que hindu também – como toda mitologia – tem suas variedades, mas em geral a gente vê dessa forma, o Brahma não ser tão próximo ali.
Nilda: É que nós estamos pegando realmente a parte mais geral e as partes, talvez, até um pouco mais consensuais de tudo isso. Na literatura, quem hoje em dia… já faz um bom tempo, as pessoas constroem, principalmente literatura de fantasia, criam mundos, e esses aspectos de deus criador, de deus mantenedor também existem na literatura. Quer dizer, é um conceito que existe e que é utilizado também até em mundos criados, essa coisa, porque é um aspecto muito presente na humanidade.
Leonardo: Interessante pesquisar isso, porque inicialmente parece que é algo simples de definir ali: seria uma divindade que é criadora, que é a mais adorada que todas as outras e, com isso, ela reina sobre todos os deuses e a humanidade. Mas conforme a gente vai se aprofundando em cada mito, cada uma das culturas, a gente vê que existe um espectro desses conceitos, tanto entre as culturas pelas variações também das culturas, de uma para outra, como internamente, em uma mesma mitologia tem as variações. A gente viu a variação na mitologia grega, a gente viu aí que dos hindus tem aspecto, mas tem muitas outras vertentes, os egípcios também, cada local, cada cidade era de um jeito. Então, na verdade, a gente não encontra um padrão e, na verdade, a gente encontra vários padrões. A gente tem padrão na mitologia? Tem, mas tem vários, não é um padrão só. Um desses padrões é o da conquista. A gente viu que se coloca um deus rei como um deus que conquistou o posto dele. Ele virou rei porque ele mereceu, porque ele foi até algo ou até alguém e destruiu um inimigo. Zeus destruiu Cronos, Marduk destruiu a Tiamat, Odin destruiu o gigante, então eles são reis, são deuses regentes, porque eles tiveram que lutar por aquilo. E a criação pode vir antes ou depois desse embate. No caso do Odin e do Marduk, já tinha coisas antes e depois de eles vencerem a batalha é que eles foram lá e moldaram o mundo. E aí também tem outros dois padrões, que são a criação que pode vir do nada ou então vir de uma parte do deus. Nessas próprias de eles terem moldado, vieram partes do ser ali, do gigante ou da Tiamat, ou então veio da saliva de Rá, ou então ele pode vir dessa forma, cuspiu e nasceu, ou então ele pode ser modelado. Do Marduk a gente vê que foi modelo; do Odin foi modelado. Então é algo já trabalhado. Não é que nasce um ser ali e pronto – foi planejado em si. Mais um aspecto de rei também: ele tem que planejar.
Nilda: É, entre os iorubás também. Os orixás descem para ir criando as coisas.
Leonardo: E isso mostra que é aquela ideia: tem as coisas ali do mundo, muitas vezes já tem até um mundo em si, tem a existência, mas as divindades ou a divindade precisa fazer com que o mundo se torne ideal para nós ou pelo menos, então, para ter vida. Então por mais que tenha diversos padrões, diversos elementos, sempre volta para aquilo que nós somos. Não necessariamente o objetivo, mas a gente está aqui porque os deuses permitiram ou quiseram que a gente estivesse aqui e fizeram o mundo para que a gente possa estar aqui, ou então até nos fizeram. Os nórdicos – Odin nos criou. E aí também a gente não precisa ter uma única criação ou, mesmo que tenha uma, que seja criação cosmogônica, que é comum que tenha vários outros mitos que mostrem a origem de diversas outras coisas. Na verdade, esse que é o mais comum de se ver. Então a gente tem a criação ali, o deus criador, como está relacionado ao mundo, ao princípio, mas a gente tem inúmeras criações ali. A gente vai ter no orfismo Zeus recriando as coisas, mas também a gente vai ter outras criações, que é o que torna a nossa existência possível. Então a gente vai tudo nesse aspecto, desses diferentes padrões, indo de deuses criadores a deuses regentes, que podem ser diferentes, podem ser os mesmos, podem ter criações e regências diferentes. Tudo isso só depende da cultura, da mitologia a qual você está vendo.
[Trilha sonora]
[Recado final] Leonardo: Muito bem, ouvinte. Gostou do programa? Então comente lá no site ou envie e-mail para contato@mitografias.com.br e também compartilhe nas redes sociais. Se não nos segue ainda, saiba que estamos como Papo Lendário no Facebook e @mitografias no Twitter e no Instagram. E até o próximo episódio.
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(FIM)