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Nesse episódio do Papo Lendário, Leonardo entrevista o professor Rogério Lima de Moura sobre a descoberta de Ugarite. A conversa foi sobre essa região e os textos míticos e religiosos encontrados.
Conheça mais sobre Baal, o seu Ciclo, e diversos outros deuses dessa região, como El, Asherah, Yam e Mot. Além da relação que tais deuses possuem com Yaweh e Israel.
— EQUIPE —
Pauta, edição: Leonardo
Locução da abertura: Ira Croft
Host: Leonardo
Participante: Rogério Lima de Moura
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LIVRO – Religiao, Arte e Cultura
Curso: História e Religião da Antiga Judá – séculos VIII- I a.C.
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Rafa Mello
Rosenilda A. Azevedo
Surya Namaskar
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Willian Rochadel
— Transcrição realizada por Amanda Barreiro (@manda_barreiro) —
[00:00:00]
[Vinheta de abertura]: Você está ouvindo Papo Lendário, podcast de mitologias do projeto Mitografias. Quer conhecer sobre mitos, lendas, folclore e muito mais? Acesse: mitografias.com.br.
[Trilha sonora]
Leonardo: Muito bem, ouvinte. O local do qual falaremos no episódio de hoje muito provável de você nunca ter ouvido, mas talvez conheça, sim, os deuses adorados nessa região. Hoje, o episódio será sobre a religião, os mitos e deuses de Ugarite. Não se preocupe se o nome for estranho, pois vamos explicar tudo isso aqui. Na verdade, quem vai explicar é o convidado de hoje, o professor Rogério, que, dentre os seus trabalhos, está um focado nessa região, inclusive com comparações com trechos bíblicos. Então seja bem-vindo, professor, e pode se apresentar para o ouvinte.
Rogério: Olá, Leonardo. Olá, todos e todas que estão nos ouvindo. É um prazer enorme estar aqui, falar um pouco de um tema tão importante para a história do levante e todos esses conceitos que trabalharemos na nossa fala. Então o meu nome é Rogério Lima de Moura, eu estou fazendo o meu doutorado na Universidade Metodista de São Paulo, na área de Ciências da Religião. Meu enfoque é o mundo ali do Levante, principalmente a história do antigo Israel e da antiga Judá, e eu trabalho também bastante as questões do imaginário religioso, das construções ideológicas que estão inseridas aí no período. Então eu tenho formação, a minha graduação, o meu bacharelado foi em Teologia, meu mestrado também foi em Ciências da Religião, sempre trabalhando esses aspectos, trabalhar a Bíblia hebraica como objeto de pesquisa. E muito da Bíblia hebraica, não só Israel e Judá, mas as cidades que eram vizinhas ali ao antigo Israel e à antiga Judá, e também fazer algumas análises comparativas, que veremos daqui a pouco na minha fala, essa questão de como que Israel e Judá participam também do imaginário religioso, das construções religiosas ali do Levante, daquela região do Levante. Então é um prazer enorme estar com vocês neste podcast.
Leonardo: Bom, o tema de hoje é Ugarite, e, quando se pesquisa por esse nome, normalmente os primeiros resultados são falando sobre a descoberta dessa região, a descoberta de Ugarite, mas então é legal mostrar para o ouvinte o que realmente é, o que foi essa descoberta, o que foi descoberto lá.
Rogério: Ugarite é uma antiga cidade ali na região do Levante. Se você preferir, se os ouvintes preferirem, estou falando daquela área que comumente é chamada de Palestina. Então a região que ficam ali o antigo Israel, a antiga Judá, a Fenícia, a Síria, cuja capital é Damasco. Então toda aquela região ali nós chamamos de região levantina, é o Levante. Em 1929, naquela região ali que hoje é a atual Síria, norte da atual Síria, na cidade de Ras Shamra foram encontrados diversos tabletes, documentos de suma importância não só para a história da região, mas também para os estudos bíblicos. Por quê? Porque, até então, nós tínhamos apenas informações de algumas divindades, por exemplo, só a partir dos textos bíblicos, então muitas vezes a gente ficava só restrito ao texto bíblico para analisar uma divindade, por exemplo, como Baal. Então, quando foram descobertos esses documentos, esses tabletes de barro – a partir de 1929 começaram as escavações em Ras Shamra – surgiram, a partir de então, sobre a religiosidade daquela região, sobre a cultura daquela região, as interações culturais entre as regiões ali do Levante etc. Junto com as descobertas do manuscrito do Mar Morto, as descobertas dos documentos em Ugarite revolucionaram os estudos bíblicos. Então nós temos alguns documentos que foram encontrados lá. Eu vou me focar em apenas três documentos, que são os principais para estudar a cultura, a religião de Ugarite, então nós temos três documentos que eu vou citar aqui. Vou falar um pouquinho rapidamente do enredo desses documentos. O primeiro documento que foi encontrado lá é o chamado Ciclo de Baal. Então esses documentos narram – o conteúdo desse texto, que é o Ciclo de Baal, um texto mítico – o combate entre o deus da tempestade, que no caso é o Baal, contra o seu irmão Yam. Na segunda parte do enredo do Ciclo de Baal, que é esse texto, tem um novo combate do deus Baal contra o rival, que é o deus Mot. Então essa narrativa foca principalmente em um arquétipo, que a gente pode falar de um arquétipo, que também perpassa toda a região ali do Levante, que é a luta entre uma divindade da ordem contra uma divindade caótica. No caso do Ciclo de Baal, esse texto encontrado, nós temos duas divindades rivais ao Baal, que é considerado o deus da ordem, que são os deuses Yam, que significa mar, e o deus Mot, que significa morte. Depois, nós temos um outro documento que foi encontrado também, que é a lenda do rei Keret. Então o conteúdo desse texto, a lenda do rei Keret, narra a história de um rei chamado Keret que fica sem herdeiro ao trono, então aí aparece o deus El – ou deus Él – em sonho para ele e o ajuda a encontrar uma princesa. Essa narrativa desse texto encontrado foca principalmente na questão da posteridade do reino: o rei precisa de um herdeiro, aí ele pede, roga aos deuses para que ele possa encontrar uma esposa. Aí então o deus El, que é o chefe do panteão cananeu – falaremos daqui a pouco – auxilia o rei Keret a encontrar uma princesa. E, por fim, nós temos um outro texto chamado A Lenda de Aqhat. (Danel) [00:07:06] não tem filhos, e aí o que acontece? Em uma festa, o deus artesão Kotar, que também é uma divindade do panteão ugarítico, presenteia Aqhat com um arco, e aí a deusa Anath – que também é uma divindade feminina guerreira, uma divindade forte, ela é irmã também do deus Baal -, como uma divindade guerreira, ela cobiça o arco do Danel e oferece imortalidade à Aqhat. Aqhat recusa a imortalidade e ceder o seu arco para a deusa, e aí a Anath fica muito brava e quer matar o Aqhat. Mas, infelizmente, nós não temos o final da história, porque o tablete de barro foi corrompido, então nós infelizmente não podemos saber mais o final da história. Então, só para sintetizar para os ouvintes, tem outros textos – textos administrativos etc.
Leonardo: É isso que eu ia perguntar. Se tem outros, além dos mitos, além de deuses. Também foram encontradas coisas em si, não é?
Rogério: Isso. Então foram encontrados textos administrativos, textos ritualísticos etc., mas, para a minha pesquisa mesmo, que eu fiz no mestrado, eu trabalhei principalmente – não só, mas principalmente – com o Ciclo de Baal para estudar esses deuses e essas deusas que aparecem no panteão ugarítio. Então, finalizando essa primeira pergunta, Ugarite é uma primeira cidade que é considerada cananeia. Por quê? Porque os estudiosos perceberam que ela compartilha a língua semítica daquela região, da cultura. Há algumas convergências culturais naquela região, e Ugarite, segundo alguns autores, participa dessa cultura levantina, daquele período. Estamos falando do décimo quarto, décimo segundo século antes da era cristã. Para quem estuda, por exemplo, o Antigo Egito, nós estamos falando do período de Amarna… esses textos foram encontrados.
Leonardo: E foi a descoberta dessa cidade ou já se tinha, de repente, por ter a Bíblia e outras coisas, já se sabia de ter algo ali, ou realmente antes de descobrir não tinha nada, nem se sabia que existiria nem nada? Não tinha nenhum vestígio?
Rogério: Na verdade, Leonardo, geralmente as descobertas sempre têm uma narrativa meio engraçada. De repente, uma pessoa está passeando em um local, vê um texto, aí chama a atenção de algum estudioso. Geralmente é essa história que contam, não só de Ugarite, mas também, se você for…
Leonardo: A pessoa nem sabe o que é, o valor daquilo…
Rogério: Isso.
Leonardo: … e a gente vai ver o quão grandioso é.
Rogério: Isso mesmo, é por aí. Para a nossa sorte, cai na mão de um estudioso, alguém que percebe que aquilo lá não é algo comum, e aí começa-se a perceber que aquela localidade tem algo importante ali. Aí começa-se a fazer os estudos de mapeamento da localidade e tal para saber, primeiro, se houve um assentamento de pessoas ali, e aí, depois, começam-se as escavações.
Leonardo: Então realmente não imaginavam de ter nada ali, nem tinham noção, não é?
Rogério: Nem tinham. É sempre assim, é igual com Han. Com Han também, mesma coisa, e aí com Han teve um problema também: começaram a escavar tudo errado, aí perderam textos e tal. Foi uma coisa complicada ali, mas é basicamente isso. Aquela região também é uma região cercada por uma mística religiosa e tal, então em determinadas localidades é complicado você escavar, mas, quando dá para escavar, geralmente você encontra bastante coisa legal em termos para um historiador ou para um cientista da religião, como eu.
Leonardo: É uma região meio delicada de estar pesquisando por ali, só que, ao mesmo tempo, é uma região que seria muito rica disso, por ali não ficou só uma cultura, só um povo. Teve muita mistura, então é muito rico.
Rogério: Exatamente, Leonardo. Então, por exemplo, hoje nós temos ali o Monte do Templo, que é cultuado por três grandes religiões, que são o cristianismo, o islamismo e o judaísmo, e, para escavar ali naquela localidade é impossível, porque Jerusalém, por exemplo, é uma cidade viva. Talvez se conseguíssemos, no futuro, escavar ali, conseguiríamos encontrar outras coisas bem bacanas para o estudo do antigo Israel e da antiga Judá.
[Trilha sonora]
Leonardo: Falando disso, é legal puxar o próximo ponto: qual é a relação que tem de Ugarite, porque também você tinha citado que é uma cidade cananeia, e também, por ter falado do Baal… a gente vê Baal como um deus cananeu, às vezes também você encontra como fenício, usa-se esses termos. E aí, pesquisando também principalmente no seu trabalho, você vê falando muito ali de Israel, é legal deixar claro para o ouvinte qual é a relação desses nomes.
Rogério: Dependendo da região, esses deuses mudam de nomes. Nós temos, por exemplo, na região ali que a gente chama também de oeste semítico, aquela região do Levante e tal que engloba o antigo Israel, Judá, os fenícios etc., então, dependendo da região, nós temos divindades com os mesmos atributos, ou seja, eram adorados como divindades da fertilidade, por exemplo, mas com nomes diferenciados. Então, só para citar um exemplo, o Baal é encontrado em Ugarite. O Baal é um deus da fertilidade, e, segundo a crença daquela região, ele ajuda na fertilidade, no crescimento da plantação, dos grãos etc., mas, por exemplo, na Síria, em Damasco, nós temos um deus que chama-se Haddu ou Haddad, dependendo da variação, e tem os mesmos atributos que Baal. E, na Bíblia hebraica, nós temos Yahweh. Yahweh também, da mesma forma que Baal ou Haddu, também é um deus da tempestade, um deus que as pessoas daquele período… estou falando basicamente do décimo para o oitavo século, Yahweh é adorado como também um deus da tempestade. Então depende da variação. Dependendo da região, você tem deuses com os mesmos atributos, só que com nomes diferenciados. Tem um autor chamado Mike Smith, ele chama essa relação de divindades de nomes diferentes com os mesmos atributos de translação, ou seja, é traduzido, a cultura traduz de diferentes formas os aspectos dessas divindades e, muitas vezes, há o encontro cultural em que, por exemplo, adoradores do Baal e adoradores de Haddu acreditam que adoram o mesmo deus, só que de uma forma diferente. Então há várias discussões sobre isso, mas é interessante notar essa ideia de que, dependendo da região, um deus pode ter um nome diferente – ou uma deusa -, mas os atributos se encontram. Há uma convergência de atributos. Eles são adorados como deuses da chuva, deuses da fertilidade etc.
Leonardo: Mas aí, no caso, Ugarite, então, teria a cultura dos cananeus, mas não ficaria só nisso?
Rogério: Essa é uma discussão bastante interessante na Academia: até que ponto Ugarite é cananeia ou não. Mas, dentro da perspectiva cultural, religiosa, os pesquisadores que eu estudei na minha dissertação de mestrado e alguns que eu atualizei para escrever novos textos, artigos, para dar as minhas aulas, trabalham com a perspectiva que culturalmente Ugarite participa, sim, da cultura chamada cananeia. O que é isso? Então uma proximidade linguística, a língua semita, então você tem o ugarítico, que é muito próximo do hebraico, por exemplo, do paleo-hebraico, você tem uma estrutura linguística parecida naquela região; você também tem uma estrutura religiosa muito parecida, convergente, naquela região. Claro que também há suas particularidades. Não vamos colocar também todo mundo no mesmo pacote, achando, por exemplo, que Ugarite é a mesma coisa que Israel, Judá, Síria ou Fenícia. Cada um tem sua particularidade, mas os encontros são interessantes, pegando essa ideia de que nós podemos fazer uma análise comparativa e percebermos como que existem relações de encontro entre essas culturas ali dessas cidades-Estados do Levante.
Leonardo: E, no caso, Ugarite seria algo independente? Porque, quando você fala: “Ah, cultura tal”, muitas vezes a pessoa pode imaginar: “Ah, se é uma cidade de tal cultura, ela está sob o domínio daquele reinado ali”. Por exemplo, se você imaginar algo romano, você vai falar: “Está sob o domínio romano, Império Romano”, coisas desse tipo. Agora, Ugarite é independente? Ela não estaria abaixo de alguma cultura maior, outras cidades ali estariam abaixo do mesmo rei ou líder? Ou isso também varia com o tempo?
Rogério: Então, Leonardo, a pergunta é inteligente. Varia. Então, no caso do período, do recorte que eu faço, que é o século 14 ao século 12, aquela região é dominada pelos egípcios, que é o chamado período de Amarna. Então o Egito tem uma presença muito forte ali no Levante, do século 14 ao século 12. Então Ugarite, você percebe também pelos textos encontrados, porque eu foquei, na minha pesquisa, nos textos religiosos, mas, por exemplo, você tem lá textos para treinamento de escriba. Que textos são esses? São textos que têm lá tabletes de barro com o alfabeto ugarítico, e aí claro que a interpretação é que ali poderia sim ter tido uma escola de escribas, por causa desses treinamentos. Um escriba começa escrevendo o alfabeto etc. Uma outra coisa interessante, Leonardo, que foi encontrada também no sítio de Ugarite, foram textos da Mesopotâmia, da região da Mesopotâmia. Por exemplo, textos do Gilgamesh dentro da biblioteca que foi encontrada lá na cidade de Ugarite. O que isso significa? Significa que também Ugarite participava de um diálogo cultural com outras regiões, não só do Levante, mas do antigo oriente próximo. Você tem uma relação… Ugarite era uma cidade cosmopolita, então você tem uma relação aberta com outras localidades ali do antigo oriente. Mas a ideia é que Ugarite, nesse período do décimo quarto século para o décimo segundo século antes da Era Comum, você a tem como uma cidade subordinada também à presença egípcia na região.
Leonardo: Bem interessante pensar nisso, porque, que nem eu falei, se você pensa em algo romano, você vai já pensar nisso de estar sob o poder romano. Nesse caso, nesse recorte temporal estaria abaixo dos egípcios, mas, ao mesmo tempo, as crenças, os deuses deles estavam bem variados. Não fica só em deuses egípcios ali, que poderia imaginar assim: você vai encontrar só os deuses egípcios também ali. Não, você está vendo outros deuses. Inclusive, até você falou de conversar com os mesopotâmios, com muitos desses deuses você também encontra um paralelo.
Rogério: O equivalente – se eu posso brincar assim – com o Baal é o Marduk, que é o chefe do panteão das cidades-Estados da Mesopotâmia. O Marduk tem as mesmas características do Baal e vice versa. Ambos são divindades da ordem, divindades da fertilidade, que têm que lutar contra um inimigo caótico, uma divindade rival caótica. No caso do Marduk, a deusa Tiamat; no caso do Baal, dois deuses do caos, que são o Yam e o deus Mot. Então você tem esses aspectos que também convergem em outras regiões ali, não só do Levante, mas do antigo oriente próximo.
Leonardo: Bom, acho que a gente acabou já até mostrando a diversidade de crenças que teria aí. Tem-se muitos dos cananeus, que é o foco até do episódio, mas a gente tem, como você falou, o Yahweh, que acho que foi um dos que mais bateu de frente. Tem esse diálogo entre as divindades e culturas, mas aí já voltando para Israel e para o Yahweh, acho que talvez o diálogo tenha sido mais tenso.
Rogério: O interessante também, Leonardo, acho que vale a pena para os nossos ouvintes perceberam quando fazem esse estudo comparativo e até também a partir de um modelo estruturalista, pegar e estruturar todo o panteão daquela região, é que nós temos basicamente estruturas que se repetem, tanto ali em Ugarite como na religião do antigo Israel e da antiga Judá. Por exemplo, nós temos sempre, nessas religiões, não só Ugarite, mas vou pegar Ugarite como exemplo, a alta autoridade do panteão, então sempre existe um deus-chefe, um deus que é o cabeça do panteão dos deuses e das deusas. Então esse deus é o deus-chefe do panteão, então ele é o pai dos deuses e das deusas. E Ugarite não deixa muito claro, não existe uma narrativa da criação dos deuses, como tem em Hesíodo, por exemplo, mas nós temos o Baal e outros deuses do panteão ugarítico que são chamados de filhos de El, do deus El. Então é interessante. Então você entende que tem também uma questão de uma genealogia divina em Ugarite. Depois, nós temos, abaixo da alta autoridade do panteão, os deuses de maior destaque. No caso de Ugarite, são os deuses da ordem, deuses da justiça, deuses da fertilidade. Então temos o Baal, a própria Anath, que são divindades cultuadas que são também cultuadas na religiosidade familiar. Por fim, nós temos deidades artesãs e deidades mensageiras, então em Ugarite você tem essa estrutura. No caso do antigo Israel e da antiga Judá, nós temos, por conta de um processo interessante, que Yahweh é adorado como um deus estatal – você pode colocar como um deus estatal dependendo do período do antigo Israel e da antiga Judá o deus Yahweh -, mas, ao mesmo tempo, Baal era cultuado, Asherah era cultuada, outras divindades eram cultuadas. Então nós temos esse processo também que acontece no antigo Israel e na antiga Judá. Posteriormente, lá na frente, no quarto século, período persa, aí sim você pode tentar fazer um levantamento e interpretar que, a partir dali, começa-se, sim, um processo de construção de um monoteísmo, mas, antes disso, do quinto século até o décimo século, não podemos falar em monoteísmo no antigo Israel e na antiga Judá. Israel e Judá cultuavam diversas divindades, que era comum, inclusive, na região levantina.
Leonardo: Sim, isso é uma coisa que pega muito, eu vejo, a questão do termo do monoteísmo.
Rogério: Por exemplo, eu vou citar um texto bíblico para os ouvintes pesquisarem depois, para aqueles que têm familiaridade com a Bíblia: peguem lá o texto de II Reis, do capítulo 22 ao capítulo 24. Nesses textos, relata-se a chamada reforma do rei Josias, e o próprio texto não esconde: Josias vai tirar todos os deuses e as deusas do templo de Jerusalém. Então o templo de Jerusalém estava povoado de deuses e deusas. Então não era só Yahweh que era cultuado, mas eram cultuadas divindades astrais, divindades da fertilidade, junto com Yahweh etc. Então o texto não esconde isso. Um dos problemas, há muito tempo, que nós tivemos em termos de pesquisa do antigo Israel e de Judá foi a ideia de que Israel e Judá nasceram monoteístas e depois acabaram… a origem desses grupos israelitas e judaítas era monoteísta e depois acabaram, em um termo teológico que é usado bastante, se desviando e aí acabaram se tornando politeístas. Mas é o contrário. A partir da documentação bíblica, a partir da documentação da cultura material, nós sabemos que, na verdade, foi o contrário. Israel e Judá participaram da religiosidade da região do Levante e, ao mesmo tempo, eram politeístas, adoravam diversas divindades familiares, divindades da fertilidade, divindades da guerra etc.
[Trilha sonora]
Leonardo: Bom, é legal que a gente já citou os nomes de alguns deuses, principalmente o Baal, mas, digamos assim, respeitando a hierarquia, então vamos começar pelo El, que seria o que está no topo. Inclusive, eu já acho bem interessante essa questão do nome dele.
Rogério: Primeiro eu vou falar um pouquinho como que El aparece em Ugarite; depois eu faço essa ponte com o antigo Israel em textos bíblicos. Então o El, na mitologia ugarítica, nos textos de Ugarite, nós o temos como chefe do panteão, então ele é o pai dos deuses e das deusas que aparecem em Ugarite, e ordena, e toma decisões como um monarca, então ele é retratado como um rei: o rei dos deuses. E, ao mesmo tempo, ele é o criador dos deuses, das deusas e da humanidade, mas, ao mesmo tempo, ele é uma divindade também um pouco distante, e aí leva alguns estudiosos a falarem, a interpretarem que talvez Baal, em um processo de longa duração, poderia ter tomado o culto do El. Então a proeminência do Baal acaba tornando o culto ao deus El irrelevante ou acaba desaparecendo o culto do deus El. Não sabemos muito bem, porque Ugarite é destruída. Ela é uma cidade que teve seu auge do décimo quarto ao décimo segundo séculos e depois ela é destruída. Não temos muita certeza sobre esse tipo de comparação entre o culto ao deus El e ao deus Baal. Mas em Ugarite ele é retratado assim. Quando partimos para os textos bíblicos, o deus El aparece bastante, e uma das coisas mais interessantes, Leonardo, é o seguinte: alguns estudiosos também do antigo Israel dizem que provavelmente os próprios israelitas que se desenvolveram a partir do décimo primeiro século para o décimo século antes da Era Comum eram adoradores do deus El. Yahweh se infiltrou depois – eu estou brincando com a palavra – no panteão. No primeiro momento, o deus El era o deus adorado entre esses proto-israelitas que já estavam ali nas montanhas de Canaã. Foi um processo de transformação entre o décimo primeiro século ao décimo século antes da Era Comum daquela região, e aí, nas montanhas de Canaã, nós temos ali resquícios desses proto-israelitas e tal, o que é bastante debatido, inclusive, pelo professor e arqueólogo Israel Finkelstein. Então quais são os indícios que eu poderia dizer para você que o texto bíblico nos traz para falar que o deus El poderia ter sido o deus original de Israel? Primeiro, o nome: Israel. Isso é um indício. Se Israel fosse adorador do deus Yahweh desde o início, nós teríamos um outro nome: talvez a região (Israiahu) [00:26:11], essa partícula -iahu vem de Yahweh, ou Israweh, mas não Israel. Isso é um indício. O outro indício aparece nos textos. Por exemplo, nós temos o capítulo 32 do Deutorônimo. Infelizmente, eu sempre falo isso nas minhas falas, as traduções pecam um pouco, então o que acontece? Quando você vai ler na tradução, a palavra El geralmente é traduzida como Deus em letra maiúscula. E aí, claro, o leitor que usa esse texto para fazer as suas orações vai entender que é Yahweh, não vai entender que é um deus cananeu, El. Mas, quando você vai para o hebraico, principalmente nos meus estudos que eu fiz no meu mestrado, na minha dissertação de mestrado, você percebe que há uma diferença quando aparece o deus El e o deus Yahweh. Então, no Deutorônimo 32, se eu não me engano agora, se não me falha a memória, o capítulo entre os versículos quatro a seis ou quatro a oito – depois vocês podem conferir -, El aparece como aquele que separa as nações e tal, e uma das nações, que é Israel, o El dá para Yahweh. O que isso significa? Significa que, nesse exato momento dessa antiga tradução do Deuteronômio, capítulo 32, o El era uma espécie de deus-chefe do panteão e Yahweh era subordinado a El, e aí então isso é interessante, que aparece claramente no texto hebraico do Deuteronômio 32. Um outro texto com que eu trabalho é o Salmo 82. Também eu convido os ouvintes a lerem uma tradução… talvez a tradução da Almeida; a Almeida está melhor que a Jerusalém. É muito engraçado, a Jerusalém a gente acaba até pedindo para as pessoas trazerem nos estudos acadêmicos da Bíblia e tal, porque é uma boa tradução, mas, nesse caso, a Almeida está melhor, porque no versículo um do Salmo 82, você tem claramente o chamado Concílio dos Deuses. Concílio dos Deuses aparece em Ugarite e aparece também na Bíblia hebraica. O que é esse Concílio dos Deuses? É a reunião do panteão; ele é presidido por um deus-chefe. No caso de Ugarite, é o deus El. Só que o Salmo 82 é interessante, porque ele fala: “El está presidindo o concílio”. É um salmo bíblico, é o Salmo 82, então diz lá: “Elohim – que pode ser traduzido como deus ou deuses – se levanta no Concílio de El”, isso no primeiro versículo do Salmo 82. No meio dos Elohim, ele julga. Aí começa lá o decreto. O Elohim, esse deus que não é nomeado no Salmo 82. Ele começa a acusar os outros deuses de negligência e tal; portanto, o mundo está caótico. E aí o El, no Salmo 82, fala assim, olha: “Vocês todos são filhos do Altíssimo”, que também é um epíteto de El na mitologia Ugarítica, ele é chamado de Elyon, traduzido geralmente por Altíssimo. E aí ele decreta que esse Elohim, que se levantou e acusou os outros deuses, agora vai tomar conta do cosmos. Talvez esse salmo já esteja também se referindo a uma emancipação do deus Yahweh, se for da tradição israelita e judaísta, para uma elevação desse deus no panteão ali em Israel e Judá. Ou, se esse texto foi cananeu e foi migrado para Israel e Judá, poderia estar falando de Baal.
Leonardo: Isso que eu imaginei, porque você falando assim do Yahweh, que seria uma ascensão dele, eu imaginei: é igual à versão do Baal – e aí não era necessariamente no concílio. O Baal teve essa ascensão quando ele foi lutando contra os deuses. Foi uma ascensão dele. Seriam duas ascensões, se a gente for considerar que são diferentes; foi a ascensão de cada um dos deuses, ambos abaixo do El.
Rogério: Então, exatamente, Leonardo. Está para sair um artigo meu em que eu trabalho um pouco esses aspectos, porque, na verdade, essas narrativas em Ugarite, também em Israel e Judá, trabalham com essa perspectiva: a ordem versus o caos. Então o Baal, a partir do momento que ele derrota, na mitologia ugarítica, os deuses da desordem, os deuses caóticos, que são o Yam e o deus Mot, o texto O Ciclo de Baal relata que é construído um palácio para ele. E, na mentalidade religiosa, tanto de Ugarite quanto dos antigos Israel e Judá, uma divindade poderosa não pode ficar sem palácio, sem templo, porque senão ela é uma divindade fraca. Então a partir do momento que essa divindade ascende ao panteão, se constrói geralmente um palácio. Isso acontece também na Mesopotâmia, no Enuma Eilish, (inint) [00:30:33] Marduk. Então nós temos essa ideia de que Baal ascende ao panteão a partir do momento, como você bem falou, da derrota dos deuses da desordem, do caos, que são Yam e Mot. E também o Salmo 82 deixa essa perspectiva: esse Concílio dos Deuses aparece também em outros textos da Bíblia hebraica, para você perceber como converge culturalmente também com as regiões do Levante essa ideia religiosa que aparece na Bíblia hebraica. Por exemplo, Isaías, capítulo 6 – está lá o Isaías tendo uma visão, o trono de Yahweh. E aí aparecem os querubins no templo, ele tem uma visão dos querubins. Aí os querubins estão louvando a Yahweh – querubins que não são anjinhos, como no período medieval acabou se desenvolvendo essa imagem. Na verdade, os querubins também aparecem principalmente na religião assíria, que são guardiões do templo, e não tem nada de bonitinho, não.
Leonardo: Dos anjos em geral, quando você pega a descrição mesmo na Bíblia, ele é bem assustador.
Rogério: É, a tradição acabou transformando. Até o próprio Satã, aquele ser com chifres, com tridente e tal, isso tem que estudar o período medieval, como isso se deu, essas transformações.
Leonardo: E fechando também essa parte falando da Bíblia, realmente essa questão da tradução… eu lembro que, quando eu fui pesquisar mais a fundo isso, eu peguei algumas Bíblias que tinha aqui em casa, e as que tinha aqui em casa era por causa da família mesmo. Não tinha nenhuma questão de ter fidelidade mesmo na tradução. Então eu via que eu não encontrava nada. Aí que me indicaram a (inint) [00:32:09] e a de Jerusalém, aí nessa você já encontra melhor a diferenciação dos nomes.
Rogério: Isso. Nós temos boas traduções: tem a Jerusalém, nós temos a TEB, que é a Tradução Ecumênica da Bíblia – ela é publicada pela editora Loyola, também é uma boa tradução. Mas eu sempre falo, eu puxo sardinha para o meu lado, Leonardo. Falo assim, olha, para quem estuda mesmo os antigos Israel e Judá, seria interessante aprender a ler o hebraico para não ficar dependendo das traduções, porque as traduções, queira ou não queira, têm uma mão também um pouco religiosa, dogmática. Um exemplo que eu sempre cito: Gênesis, capítulo um. Está lá em uma tradução bem livre que eu vou falar aqui: “No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra era sem forma e vazia”, aí a tradução coloca: “O Espírito de Deus – com letra maiúscula – pairava sobre o abismo”, e esse Espírito de Deus com letra maiúscula já é uma interpretação dogmática, porque o autor que escreveu esse texto não tem nem noção da trindade, mas o tradutor coloca lá Espírito, como se fosse a terceira pessoa da trindade.
Leonardo: Sim. É, e a gente não tem do que reclamar, porque a Bíblia é para a questão da religiosidade e da fé da pessoa, não é algo acadêmico, nada, longe disso.
Rogério: Isso aí, Leonardo, se você me deixa fazer uma nota de rodapé, é um erro da Academia. Por quê? Porque a Bíblia, assim como a Odisseia, assim como Homero, a obra de Homero, assim como Hesíodo, é um texto fundador do Ocidente, assim como do Oriente. Isso eu conversei bastante também com outros colegas de profissão, que estão aí inseridos nas universidades federais, nas universidades particulares aqui do Brasil. A Bíblia deveria ser, sim, inserida na Academia com estudos acadêmicos, como a gente está fazendo aqui, um debate acadêmico sobre o texto bíblico, por quê? Porque, se você deixa a Bíblia de lado e quer estudar outros textos, a Bíblia fica à mercê de leituras fundamentalistas, leituras muito conservadoras, que falam no texto sem nenhuma propriedade, uma leitura bem rasa, dogmática, ideológica demais. Então é importante a Bíblia ser inserida nos círculos acadêmicos. Já tem gente estudando, tem colegas nas federais, nas públicas e também nas particulares estudando a Bíblia academicamente, mas ainda é pouco. Precisa inserir mais a Bíblia nos debates acadêmicos.
Leonardo: Com certeza. Bom, seguindo aqui nos deuses, a próxima que é interessante citar é a Asherah, e essa realmente não daria para se aprofundar, porque eu sei que ela tem muita coisa, tem muitos trabalhos sobre ela. Eu tenho visto, eu fui dando uma pesquisada. Inclusive, aqui no Papo Lendário, a gente já fez um episódio sobre ela há muito, quando eu vi aquela questão de falarem que é a mulher de deus, que sempre foi assim. Então, nossa, vou pesquisar mais disso. Mas quem sabe até futuramente eu penso aí, para o ouvinte, em gravar mais um episódio dela, porque eu vi que tem muitos estudos, e recentes até, então foi coisa que não parou. Mas é legal citar para o ouvinte saber quem é.
Rogério: A pesquisa sobre a deusa Asherah está pulando na Academia. Tem colegas trabalhando, na Metodista onde eu estudo, tem pessoas que eu sei também nas universidades públicas estudando sobre ela, mas, para resumir, como ela aparece em Ugarite e também nos textos bíblicos? Ela é uma deusa mãe dos deuses também, ela é esposa do deus El na mitologia ugarítica, nos textos de Ugarite, e ela aparece com o nome de Atirat, que é uma variante da Asherah bíblica. Eu interpretei, quando eu fiz aquela estrutura a partir dos teóricos que eu uso na minha dissertação de mestrado – isso fui eu que interpretei, não foi nenhum dos teóricos que eu usei – que a Asherah também é uma deusa proeminente, assim como o deus El, no panteão cananeu. Por quê? Porque, nas conversas com o deus El, ela influencia o deus El a tomar posição em relação ao panteão, aos seus filhos que estão competindo lá pelo domínio do cosmos e tal. Ao mesmo tempo, ela também é uma divindade da fertilidade, uma divindade mãe desses deuses e deusas. No caso do texto bíblico, que a gente acabou de falar de tradução, algumas traduções traduzem, quando aparece a palavra Asherah, como poste-ídolo, que é uma tradução, ao meu ver, horrível. Deveriam traduzir como Asherah mesmo.
Leonardo: Mas o que seria poste-ídolo? Como assim?
Rogério: Um dos símbolos da Asherah é uma árvore, então a ideia de que o galho de uma árvore, um pedaço de uma árvore seria esse poste-ídolo; ou não, seria uma imagem da deusa que era cultuada e tal. Tradução mais dogmática traduz como poste-ídolo, que já é algo bem pejorativo, ídolo, porque ídolo já pressupõe que o tradutor está falando: “Pô, existe um deus verdadeiro”. Ele deixa a tradução ser levada pela sua fé. Mas algumas Bíblias traduzem como Asherah mesmo. Por exemplo, a Nova Bíblia Pastoral, se eu não me engano, traduz como Asherah. E, nos textos bíblicos, a Asherah é condenada pelos redatores da Bíblia, pelos narradores do texto bíblico, pelos escritores, mas, a partir da cultura material, nós temos um sítio que é datado do oitavo século antes da Era Comum, um sítio que se chama Kuntillet Ajrud e, nesse sítio, foi encontrada uma cerâmica que dizia o seguinte: “Para Yahweh e sua Asherah”. Eu não vou entrar em detalhes, que não dá tempo para a gente discutir esse sítio, mas esse sítio provavelmente era dominado por Israel Norte, e nós temos ali nesse sítio de Kuntillet Ajrud uma demonstração de uma religiosidade plural. Era entendido, a partir daqueles habitantes que moravam ali naquela região, que a Asherah era esposa do deus Yahweh. Então se formava um casal divino. Em Ugarite, Asherah é esposa do El. Na Bíblia hebraica não aparece tanto essa ideia, mas na cultura material aparece isso claramente. Então é interessante como a cultura material pode nos ajudar inclusive a entender o momento histórico daquele período que os textos bíblicos narram, descrevem etc.
Leonardo: É, e se você for pensar em uma época quando não teria nada ali de monoteísmo em si, vai ser natural de o deus ter uma rainha. Você pega os outros panteões, de outras culturas, sempre tem: o deus supremo ali sempre vai ter a rainha junto a ele, independentemente se está mais abaixo ou no mesmo nível e tudo, mas tem a deusa ali. Só não haveria isso realmente em um monoteísmo, onde vai ser um só e acabou.
Rogério: Isso.
Leonardo: Então, a partir do momento que você coloca um quê de politeísmo ali, você acaba o monoteísmo, faz total sentido de ter, mesmo sendo do Yahweh.
Rogério: A partir do desenvolvimento da adoração do deus Yahweh, aí a partir do sétimo século, sexto século até o quinto século antes da Era Comum, Yahweh vai absorvendo atributos dessas divindades. Então em Oséias, por exemplo, Yahweh absorve atributos do deus Baal e da deusa Asherah. Então Yahweh é representado ali em Oséias com aspectos femininos, ele gera a vida – é interessante como Oséias trabalha esse jogo de palavras -, e ao mesmo tempo ele é chamado de marido de Israel, de senhor de Israel, que é a palavra Baal. Baal significa isso: marido ou senhor. Então você percebe essas nuances quando você lê o hebraico. Na tradução aparece também, desde que você consiga ler pela tradução. Se você souber os atributos de Baal e o que Baal significa, a palavra Baal, que significa senhor ou marido, e Asherah, os aspectos da fertilidade da Asherah, você vai perceber que Yahweh em Oséias… todos esses aspectos que são aplicados em Baal e Asherah são aplicados para Yahweh, que já é um processo de assimilação.
Leonardo: É, interessante.
[Trilha sonora]
Leonardo: Então agora a gente aproveita a vai falar de Baal. Dá até para puxar já os dois próximos, que são o Yam e o Mot, mas eu acho legal começar do Baal, falando dessa questão do significado do nome dele. Porque isso é uma coisa que eu realmente sempre tive dúvida, antes, no sentido que Baal seria em si uma divindade? Ele é personificado? Ou ele só seria um título? Porque você encontra também às vezes outros Baals ali. Até também quando teve a deturpação do personagem em si, se demonizou e tudo, mais ainda; mas mesmo assim você sempre encontra Baal algo mais. E aí eu sempre fiquei com essa dúvida, se Baal seria só o nome, se esse aí seria mais um Baal ou se esse é o Baal e os outros acabam sendo alterações.
Rogério: Isso acontece. Por exemplo, vou pegar o Yahweh. Em Kuntillet Ajrud, esse sítio que eu acabei de citar agora há pouco, nós temos a Yahweh de Samaria. Aí você em tem em outras passagens do texto bíblico Yahweh de Seir, que é uma região desértica ali do Levante, Seir. Yahweh de Samaria, que é a capital do reino do norte, Yahweh de Judá. Então me parece, alguns estudiosos trabalham nessa perspectiva de que foi entendida de diferentes maneiras a aparição de Yahweh, dependendo do santuário. Então Yahweh de Samaria seria um; o modo de revelação, entre aspas, posso colocar assim, que essas pessoas entenderam em Samaria; o Yahweh de Seir teria outras características, foi a forma de esse Yahweh ser adorado naquela região; Yahweh de Judá seria uma outra característica, um outro tipo de Yahweh que também era adorado em Judá etc. E isso acontece com Baal. Então, por exemplo, Baal Haddad aparece, por exemplo, na Síria. O Baal – somente Baal – aparece em Ugarite. Baal aparece também na Bíblia hebraica. Dependendo da localidade, você tem uma espécie de entendimento de como essa divindade apareceu para você, e aí, é claro, se aplica a essa aparição atributos, a esse deus, então, como senhor, como marido. Como eu disse, Baal vai tomando a proeminência, o poder de El, se eu posso dizer assim, e ele acaba também se tornando um deus-chefe do panteão posteriormente, e um deus que também tem o concílio dos deuses. Isso já aparece em Ugarite, e Baal rivaliza com o deus Yahweh na Bíblia pelo fato de os dois deuses serem divindades da fertilidade e divindades da tempestade. Então você tem exatamente isso, Leonardo. Dependendo da região, você adora esse deus, que é um deus da fertilidade, mas com diferentes atributos, porque é a maneira como esses grupos nesses diferentes santuários entenderam esse relacionamento cultual com essa divindade. Só para exemplificar para os ouvintes, para tentar deixar um pouquinho mais claro: Israel e Judá cultuavam o deus Yahweh, só que a forma retratada de Yahweh no norte, em Israel, e em Judá, ao sul, são diferentes. Por exemplo, em I Reis, capítulo 12, você vê lá o narrador dizendo que, no norte, Yahweh era cultuado a partir da imagem de um touro, de um bezerro de um touro. Mas, se você for partir para a análise do culto de Yahweh em Judá, que é ao sul, você percebe que não tinha um culto ao touro. Yahweh não era retratado como touro no sul de Judá, ele é retratado como um deus sentado no seu trono, ele é um deus monarca. Então você tem essas diferenças de imaginário religioso, tanto em Israel como em Judá ou em outras regiões do Levante, quando se trata do deus Baal. Essas coisas acontecem, de que você está adorando um deus da fertilidade, que é o Baal, mas o modo como você chama esse Baal é diferente, assim como Yahweh. Yahweh lá no sul é retratado como um monarca, como um senhor dos exércitos etc., e no norte, em Israel, ele é cultuado como o deus touro que tirou o povo do Egito, libertando-o, lá na narrativa do Êxodo. Isso está em I Reis, capítulo 12. Foi interessante você perceber como que Yahweh é cultuado, mas como ele é chamado em diferentes regiões ali, tanto em Israel, norte, como ao sul, em Judá.
Leonardo: Interessante isso do Yahweh, eu não tinha noção que também tão amplo assim, tinha essas variações. Bem interessante. Bom, e aí, para finalizar do Baal, a gente tem a questão do Ciclo de Baal, que é o mostra essa luta dele contra o Yam e contra o Mot. Uma coisa que me chamou muito a atenção é, claro, comparando principalmente com o Marduk, que a gente citou o Baal, você vê muito que é essa ideia da ordem contra o caos, mas me chamou a atenção de que aí eles colocam o mar e a questão da morte como algo ruim – ruim, assim, pelo menos rival do Baal. Não fazem que nem, por exemplo… porque quando eu vi os três, principalmente os dois aí, um relacionado com morte e um com mar, me veio muito à cabeça a trindade de Zeus, Hades e Poseidon, que também é uma trindade, cada um no seu canto, mas eles se dão bem, não tem essa questão. A luta dos gregos é com outras divindades ali. Nesse caso, realmente tem a rivalidade, eles colocaram o elemento da natureza ali rivalizando.
Rogério: E, da mesma forma que na mitologia grega, o Baal… na verdade, em termos temporais, a gente poderia discutir quem veio primeiro, porque eu não sou especialista na mitologia grega, tenho até os textos aqui do Hesíodo e tal, mas em se tratando da mitologia que eu estudei, que é a de Ugarite, você tem o Baal, assim como Zeus, morando em uma montanha – o Zeus no Monte Olimpo, o Baal no Monte Safon ou Monte de Safon, para ser mais exato com o hebraico. E, assim como Zeus no panteão dele, o Baal é o deus da tempestade, o deus do relâmpago, do raio, da chuva, é um deus guerreiro também – o Baal é retratado como um deus guerreiro. O Yam e o Mot, embora ele tenha uma rivalidade com esses deuses, eles são irmãos. Então eles estão lá no panteão. O El é o pai de todos eles, então são irmãos rivais. E o interessante, principalmente na narrativa de Baal versus Mot, é que o Baal vai lutar contra Mot, porque ele precisa vencer o deus caótico da morte – Mot significa morte em hebraico, em ugarítico também, são muito próximas as línguas; Yam significa mar tanto em hebraico quanto em ugarítico. E aí o que acontece? O Baal é derrotado por Mot e ele vai para o submundo, porque Mot é o deus do submundo. E aí quem vai resgatar o Baal? É a deusa Anath, que também é irmã do Baal e é irmã do Mot e do Yam. O que acontece? A Anath derrota o Mot, ela mata o Mot e aí ela resgata o Baal do submundo. Aí o Baal revive. Aí o texto diz que até o deus El louva a volta do Baal à vida. O que significa no mundo real? No imaginário religioso, é isso. Mas o que significa no mundo real? A morte e o renascimento da plantação, dos grãos etc. Como Baal é o deus da ordem, o deus da fertilidade, o deus dos grãos, a partir do momento que ele é morto, se entende que a plantação é morta, ela desaparece, a fertilidade desaparece. A partir do momento da ressurreição, da volta do Baal à vida, há a ideia de que a plantação volta a crescer, então há o crescimento da plantação, da fertilidade, dos grãos e da ordem. Então o mito também tem significado existencial.
Leonardo: É bem interessante. E o caso dele contra o Yam me lembra muito como a gente citou, do Marduk contra Tiamat, que os dois têm essa questão do elemento da água e do mar.
Rogério: E o mar é interessante, Leonardo, porque ele aparece, não só em Ugarite, mas, como você já citou em outras culturas, na Bíblia hebraica mesmo, com aspectos caóticos. Existem resquícios desse mito, que o deus da ordem derrota o mar, que é entendido como caos, com aspectos caóticos, na Bíblia hebraica mesmo. No Êxodo, por exemplo, quando Yahweh triunfa – isso está principalmente em Êxodo, capítulo 15, no cântico de Miriam -, essa ideia de Yahweh derrotou o mar, abriu o mar para o seu povo passar no meio dele. Isso é um resquício mítico desse combate entre o deus da ordem e o deus do caos. Aparece também no Gênesis, capítulo 1: o vento de Deus estava lá sobre o abismo, que é (Rom) [00:48:46] – também é um aspecto caótico antes da Criação da divindade etc. Então esse resquício mítico aparece na Bíblia hebraica também, essa ideia de que o mar precisa ser derrotado, e, a partir dessa vitória do deus da ordem, o mundo, o cosmos fica em paz, aquela coisa toda.
Leonardo: E se sabe o que ocorreu com esses dois deuses depois da derrota?
Rogério: O texto de Ugarite não deixa muito claro. Agora, são deuses.
Leonardo: É que se imagina que ainda vão estar em algum lugar.
Rogério: É, então, o texto de Ugarite não conta. Essa pergunta – estou brincando com você e, claro, estou brincando comigo mesmo – é uma pergunta iluminista, porque eles não pensavam nessa categoria que a gente está pensando: “Poxa, mas o que será que aconteceu com esse deus?”.
Leonardo: O importante era o evento em si.
Rogério: Isso.
Leonardo: Que era o mito, que é ele ter derrotado esses dois deuses.
Rogério: Isso, exatamente, você falou muito bem, é isso mesmo. O evento é que importava para eles. Agora, essas perguntas nossas, até nos meus estudos dos textos de Ugarite são perguntas do homem moderno.
Leonardo: Sim, a gente que estuda é que fica curioso.
Rogério: Sim, isso. Então a gente fala assim: “Poxa, o mito é uma narrativa simbólica; é uma narrativa, de repente, metafórica”, mas isso é a gente que classifica essas narrativas. Para eles, não. O mito tinha algo existencial também. Então o (inint) [00:50:08] trabalha bastante essas questões. Então, só para concluir essa parte, Leonardo, é interessante que, na religiosidade dos antigos Israel e Judá, essa estrutura, que eu até comentei que aparece em Ugarite, desaparece a partir da construção do monoteísmo e tal. Então só fica quem? A alta autoridade do panteão, e isso eu estou falando a partir do quarto século antes da Era Comum, que é Yahweh. As outras hierarquias, os deuses de maior destaque, desaparecem. Então Baal é demonizado, e aí desaparece do culto judaíta; Yam e Mot, os resquícios míticos também vão desaparecer. O que sobra, então, é a alta autoridade do panteão, que é Yahweh, e as deidades mensageiras, que a gente chama de anjos e tal. Mas isso somente a partir do quarto século antes da Era Comum. Isso ainda aparece em textos (inint) [00:51:04], o resquício e tal de cultos rivais ao culto a Yahweh, e os textos bíblicos polemizam com esses cultos rivais, mas ao poucos vão desaparecendo.
[Trilha sonora]
Leonardo: Bom, ouvinte, espero que tenha gostado do episódio. Foi legal mostrar, porque eu queria falar do Baal e desses deuses, porque quem pesquisa, quem já escuta aqui o Papo Lendário já nos ouviu falar, principalmente eu falei que a gente tem o episódio de Asherah, mas era legal, então, mostrar onde que se encontrou sobre eles. Não só sobre eles, mas onde se encontrou e que isso está intimamente ligado com conceitos bíblicos. E, Rogério, obrigado por ter aceito o convite. Como eu falei, eu conheci o Rogério por um curso que ele deu sobre essa temática, e aí que eu fui atrás dos trabalhos dele, e aí eu vi que tem bastante coisa. Deu para aprofundar mais ainda. Então muito obrigado, e agora fique à vontade para mostrar o contato para o ouvinte que quiser entrar em contato.
Rogério: Eu me senti honrado pelo convite seu. Eu quero agradecer aos ouvintes e às ouvintes que estiveram conosco ouvindo um pouco sobre essa ideia dos estudos de Ugarite, os estudos da religião de Ugarite, os estudos bíblicos, a importância de se estudar esses sítios, esses documentos, também para o melhor entendimento do mundo antigo, do mundo levantino. Então só tenho a agradecer a vocês. O convite que eu faço para vocês, primeiro, é um curso que eu darei em outubro, pelo Instituto Mundo Antigo. Convido a todos e todas a participarem, vai ser também sobre a história de Judá, a antiga Judá, do período assírio até o período helênico. Nós trabalharemos esse recorte, pegaremos desde a reforma do Rei Josias, lá em Judá, até o período Asmoneu, que é o último período helênico. E eu pretendo trabalhar as questões religiosas, os grupos sacerdotais, os grupos rivais, as ideologias por trás de algumas narrativas do texto bíblico desse período. Então convido vocês a participarem. Também convido rapidamente, quem quiser me seguir nas redes sociais, eu tenho um Instagram e tenho Facebook, é só procurar lá @rog.limamoura, tudo junto – Instagram, e Facebook é pelo meu nome, Rogério Lima de Moura. Vocês também podem acessar. Geralmente, eu faço propagandas de palestras que eu participo nas universidades, de algum livro que eu estou publicando, artigos etc. Então, quem quiser me acompanhar, é só procurar lá no Facebook e no Instagram. E também, por último, o academia.edu. Eu preciso colocar mais artigos lá na página do academia.edu – academia.edu/rogeriolimademoura. Aí vocês vão encontrar alguns artigos que eu escrevi, informações sobre livros que eu publiquei etc. Leonardo, muito obrigado mais uma vez, te agradeço pelo convite.
Leonardo: Eu que agradeço. E só uma última dúvida: publicações aí, tem algo que está para vir? Como está?
Rogério: Tenho já um livro publicado pela editora Recriar. Eu organizei esse texto, esse livro. Você encontra na Amazon, chama-se Religião, Arte e Cultura. Então é uma coletânea que nós temos lá tanto cientistas da religião, historiadores, historiadoras, antropólogos falando sobre religião, arte e cultura. E eu organizei junto com o professor da PUC, o professor Alexandre da Silva Chaves, e o meu texto nesse livro vai falar sobre a figura de Moisés na Bíblia hebraica. Eu trabalho as questões da figura de Moisés, como ele é retratado, como ele é trabalhado, e os grupos que estão por trás dessas construções do personagem.
Leonardo: Legal. Bom, vão estar todos os links aí no post, e, ouvinte, espero que tenha gostado. Rogério, muito obrigado.
[00:56:31]
(FIM)