Escuridão – Capítulo 1

Autora: Monica Ferreira

Chegaram até a beira da gruta.

– Desça – ordenou Hermes.

A moça obedeceu silenciosamente, descendo por uma escada entalhada na rocha que mergulhava em uma densa escuridão. O deus mensageiro desceu atrás, iluminando o caminho com seu bastão. Chegaram às margens de um rio.

– Espere – pediu ele.

Olhou para todos os lados, tentando acostumar seus olhos ao negrume em volta de si. As águas do rio também eram negras, não deixando transparecer o fundo. Conseguiu visualizar a silhueta do barqueiro ao longe, o ser que transportava as almas para o mundo dos mortos. Aproximava-se devagar, remando sem pressa, o corpo ereto no centro do barco, as barbas escuras e longas chegando até os pés. Ao avistar na margem dois seres diferentes dos habituais espíritos, seu cenho enrugado tornou-se ainda mais sombrio e um rosário de resmungos começou a sair de sua boca.

Assim que atracou na pequena praia, uma multidão de almas, vinda não se sabe de onde, apareceu e começou a clamar, desesperada, para subir na embarcação. O barqueiro, já acostumado a essa rotina enfadonha, empunhou o remo como a uma lança e ameaçou bater em qualquer um que se aproximasse. Hermes esperou-o acalmar-se para dar lugar aos cumprimentos habituais.

– Olá, Caronte. – Cumprimentou-o. – Hoje, como pode ver, temos uma companhia diferente. Nêmesis, suba. Mas não assente no barco, se não quiser ficar presa aqui.

A moça olhou-o com ar de interrogação, mas não disse nada. O velho resmungou mais alguma coisa ao ver sua balsa ranger com o peso, depois calou-se.

– Nenhum ser vivo, ao chegar aqui, pode sentar-se ou comer algo daqui. – Explicou o mensageiro divino, ao flutuar ao lado da embarcação. – Senão acabará preso, condenado a vagar por aí, até sua existência acabar e sua alma continuar sem rumo. Isso também vale para os deuses. Eu, como guia dos mortos, devo saber das regras do local. Não é verdade, Caronte?

– Estou esperando o pagamento, ou acha que vou levá-la de graça? Onde está o óbulo? – Resmungou o barqueiro.

– Ah, sim, claro. Nêmesis, dê-lhe a moeda.

A deusa retirou de sua faixa amarrada à cintura uma pequena bolsa, e despejou na palma calejada do velho uma moeda de ouro. Seus olhos negros brilharam e um sorriso desdentado apareceu debaixo de suas barbas.

– Louvada seja, Nêmesis piedosa! – Exclamou, beijando as mãos da deusa. – Que seu nome seja louvado por gerações!

Um sorriso tímido apareceu no rosto melancólico da deusa, retribuindo o gesto de Caronte. Hermes olhou tudo com reprovação, mas não dissera nada.

***

O trajeto correu em silêncio, e a moça observou cada canto do mundo inferior, com suas almas de inúmeras sentenças a vagar pelo lugar, procurando um rumo ou lamentando o que deixou para trás. Havia as almas mutiladas, sem orelhas, braços ou pernas, pertencentes a guerreiros que morreram em batalha; e as insepultas, como a multidão que ficara nas margens da entrada, cujos familiares não cumpriram com os ritos funerários (como as moedas postas na boca do morto) e são impedidas de atravessar o rio. Estas, ao descobrirem a entrada podem até voltar para o mundo dos vivos, como fantasmas a assombrar florestas.

No leito do Aqueronte ainda havia dois rios que desaguavam e bloqueavam quem quisesse sair dali. Ao lado esquerdo, o rio de fogo Flegetonte, com sua cascata de lava incandescente, e o rio Cocitos, levando as lamentações daqueles que nunca voltarão à vida.

– Não durma, senhora – avisou Caronte, ao ver a sonolência da moça atrás de si. – Se cair no rio, os redemoinhos a levarão ao fundo.

– Eu estou bem. – Murmurou, consertando a postura. Foi a única coisa que disse durante toda a viagem. Passou as mãos rapidamente pelo rosto e despertou-se do cansaço.

Estava tranquila, apesar da sentença que caía sobre seus ombros. Não havia raiva ou temor em seus olhos. Esperava por tudo, receberia seu castigo sem esmorecer. Iria pagar pelo que fez? Iria, afinal, ela era a deusa da retribuição, ou para os mortais, a deusa da vingança, cultuada na cidade de Ramnunte e temida por todos. Olhou para Hermes flutuando acima das águas, as pequenas asas de suas sandálias batendo em um ritmo frenético. Levava um alforje consigo, contendo um bolo para Cérbero.

Depois de um modorrento tempo, chegaram a uma gruta que ficava entre as quedas dos dois rios. O paredão largo impedia qualquer resquício de ambos queimar ou molhar a parte de terra que cercava a entrada. Nêmesis desceu e seguiu Hermes até um enorme portão de ferro.

– Fique aqui. – Pediu o deus. – Vou distrair o cão, enquanto você passa.

A moça ouviu o rosnado da criatura ao ver o deus aproximar-se da entrada, tirando o bolo do alforje. O cão de três cabeças saiu de sua toca, horripilante, com sua pelagem negra brilhante e seus dentes avermelhados, com uma saliva gosmenta escorrendo entre eles.

– Veja o que eu trouxe, Cérbero. Está delicioso. Quer comer? Então, vai buscar!

Hermes jogou o bolo longe, fazendo o corpo robusto do monstro mover-se alucinado na direção do alvo. Suas patas enormes faziam a terra tremer. A um sinal do deus mensageiro, a deusa da vingança passou pelo portão, empurrando-o com toda sua força, e depois, fechando-o depressa.

– Não acredito que faça isso toda vez que vem aqui. – Disse Nêmesis, arfante. – Anda sempre com comida no bolso para dar a ele?

– É claro que não. – Respondeu Hermes, recompondo-se. – Fiz isso para que você passasse. Ele já conhece o meu cheiro, mas o seu, não.

– Que horror… Espero não encontrá-lo quando voltar.

– Se voltar, não é?

– Não seja estúpido. Não ficarei por muito tempo.

***

As duas divindades atravessaram uma extensa caverna e, ao sair, seguiram caminho por um descampado. O céu do reino dos mortos era de um vermelho escuro, como um eterno pôr-do-sol, de nuvens altas e esparsas.

Chegaram a um descampado e de longe avistaram o palácio de Hades, no topo de uma colina aplainada. Era uma típica construção helênica, de colunas dóricas, pórtico de seis colunas frontais e uma escadaria reta e íngreme, cercada por inúmeras colunas. Abaixo, na encosta, vinha os campos desérticos, com almas a vagar aqui e ali, suspirando coisas inaudíveis.

A viagem seguiu em silêncio, a dupla andando lado a lado por uma via principal, até aparecer diante deles uma das terríveis Erínias, entidades aladas responsáveis por empreender castigos a almas parricidas.

– Nêmesis!? – Estranhou a criatura, de cabelos emaranhados e garras como de águia. – O que faz aqui?

– Viemos falar com Hades. – Respondeu Hermes, antecipando-se. – Agora, por favor, deixe-nos passar. É um assunto importante.

– Se traz a deusa da retribuição para o mundo dos mortos, de fato, deve ser algo muito importante! – Ironizou outra, pousando logo atrás. – Seria um castigo indevido que aplicou a alguém? Uma vingança inútil encomendada por insensatos? Ou… Um flerte proibido?

– Não interessa a vocês! Agora, deixe-nos passar! – Gritou o rapaz.

– Deixe-os, irmãs – sibilou a terceira, descendo suavemente. – Sabemos o quanto o nosso senhor está um pouco entediado. Deixe-nos levar um pouco de problemas para ele. Quem sabe isso não se converta em mortos e mais mortos para nós? Iremos adorar mais uma guerra!

As três soltaram uma gargalhada que mais parecia um guincho estridente e voltaram para as suas moradas.

– Elas também são filhas de Nix? – Indagou o deus. – Então, são suas irmãs?

– Não tenho nada a ver com elas, se é o que quer saber.

– Claro que não. Você é mais terrível.

A moça ignorou o comentário e seguiu em frente. Caminharam por mais algum tempo, passando pelas almas que a reconheciam e cochichavam entre si, disfarçando o medo com a surpresa. Logo viram-se diante das escadarias do palácio.

– Está com medo? – Perguntou Hermes, brincando.

– Medo de Hades? Ele deveria me agradecer por trazer súditos a ele. Não tenho medo. Se ele me mandar ao Tártaro, que seja. O destino já foi traçado.

Sem perder tempo, Hermes disparou como uma flecha até o topo da escadaria. Nêmesis, contendo sua irritação, subiu um passo de cada vez, deixando o deus impaciente de propósito. Ao chegar, ambos contemplaram a imponente fachada.

No frontispício, haviam figuras esculpidas, que logo reconheceram como sendo Hades ao centro, Cérbero em seu lado esquerdo e as regiões do Tártaro e Campos Elíseos ao redor das imagens. Sem perder tempo, adentraram os salões principais.

Capítulo 2