Capítulo 9
Autora: Monica Ferreira
Nada foi resolvido, pois não tinha nada mais a fazer.
No dia seguinte, pela manhã, Nêmesis preparou-se para ir embora, despedindo-se mentalmente do quarto onde dormira, o mesmo que a hospedou por um tempo. Não teve coragem de dormir nos aposentos principais, muito menos de encará-lo, mas era inevitável.
Vestiu novamente sua túnica preta, a mesma que usava quando chegou àquele lugar. Pegando da espada repousada em uma bainha que Hades lhe dera, dirigiu-se à sala do trono, sentindo uma estranheza por não mais pertencer àquele lugar, não reconhecer mais os corredores, as paredes, as portas, o palácio inteiro, até mesmo seu regente.
– Estou pronta. – Disse, ao chegar. O deus lançou-lhe seu olhar triste e corriqueiro, mas não evitou sentir-se atraído pela moça. Mesmo resignada, a deusa continuava bela.
– Nêmesis… Sussurrou, melancólico. Acariciou pela última vez o rosto alvo da jovem e levantou o seu queixo, fazendo-a olhar para ele. – Perdoe-me.
Os olhos marejados e a voz entrecortada impediram que continuasse. A jovem não fez mais do que esboçar um sorriso triste, tentando esconder a raiva que sentia em seu peito. Segurando suas mãos, ele continuou:
– Quero que faça algo, antes de partir.
A voz grave a fez estremecer por dentro, temendo mais uma decepção.
– Nêmesis, você viveu muito tempo no submundo, respirando este ar, tocando em cada objeto, alimentando-se dos frutos daqui… Sei que não sairá a mesma do que quando chegou, mas não poderei deixá-la ir como está. É necessário que se purifique, banhando-se no Estige. Duas criadas irão acompanhá-la até o rio e, de lá, terá que ir embora.
– Por que eu estava imaginando que isso aconteceria, mais cedo ou mais tarde? – Comentou a deusa, a voz entrecortada pelo choro que insistia em aparecer. Não houve resposta, muito menos um beijo de despedida. Houve apenas um abraço demorado, que se desfez ao ouvirem os passos das moças.
Já bem informadas sobre a saída de Nêmesis, as almas transeuntes apenas a seguiam com o olhar, vendo-a entrar na floresta que circunda o Estige. A deusa enxugava rápido todas as lágrimas que teimavam em cair, pois não queria que a vissem neste estado e que sentissem pena. Sabia que uma parcela grande da culpa era sua, mas não queria que lhe apontassem o dedo.
Chegaram ao bosque. Não deixou que as criadas a despissem. Fez isso sozinha, deixando o vestido, a espada e as sandálias nas mãos de uma delas. Prendeu os cabelos em um coque alto e entrou no rio.
A água gelada parecia invadir sua alma como farpas penetrando a carne, deixando as pernas dormentes por um breve instante. Não virou-se para a margem de onde veio, ao contrário, olhou em volta, para a escuridão da mata ciliar, tentando encontrar algo ou alguém que pudesse livrar-lhe daquela sina, daquele destino tão implacável.
Não demorou muito. Assim que retirou-se das águas, uma criada veio ao seu encontro com um pano para secar-se, seguido pela outra, com seu vestido. Depois de pronta, penteou os cabelos com os dedos, terminando enfim, de arrumar-se.
– Podem voltar ao palácio. Obrigada por me acompanharem. Diga a Hades que já estou indo embora.
– Perdão, senhora, mas o soberano pediu para que a levássemos até os portões.
– Eu posso ir sozinha. Terei todos os súditos dele como testemunhas, o que acham que vou fazer?
De repente, as três ouviram a voz suave de uma ninfa amenizando a situação:
– Não se preocupem, meninas. Eu a acompanho.
Era Mentes, que resolveu ter seu momento de vitória assim que ficou a par da saída da moça. A deusa soltou um suspirou de enfado, aborrecida com a aparição. A ninfa era a última pessoa que queria encontrar em sua despedida. Mas para evitar uma indisposição com ela na frente das criadas, pediu para que voltassem ao palácio e ficou a sós com a ninfa.
– E então? Está feliz? – Perguntou Nêmesis, o ódio contido numa expressão de desprezo, ignorando Mentes e pisando firme pela mesma trilha das serviçais.
– Meu sorriso responde a sua pergunta. E você escondendo o jogo… Mas não adiantou nada, viu? Você o perdeu e eu o ganhei! – Respondeu a ninfa, tendo um certo trabalho em seguir a divindade.
– Será por pouco tempo. Ele mesmo me disse que não ficará mais tão sozinho quanto antes.
– É claro que não. Eu ficarei ao seu lado, como rege o nosso desti-
– Pare de se enganar!!! – Gritou a moça, virando-se bruscamente, assustando a ninfa. – Ele não vai ficar com você! A esposa dele será uma filha de Zeus, de nome Perséfone! Aceite isso de uma vez por todas!!!
O silêncio que se seguiu foi a deixa para a divindade apressar ainda mais o passo e sair da floresta sozinha. De uma, pelo menos, estava livre. Agora precisaria passar pelas Erínias, caso aparecessem. Ao deparar-se com os habituais descampados, viu uma multidão esperando-a. Eram almas de inúmeras regiões que vieram despedir-se, acompanhá-la nos portões de entrada.
Seus olhares demonstravam toda a compaixão que recebia em seus julgamentos. Apesar de Nêmesis nunca ter-lhes dirigido uma palavra pessoalmente, sempre fora uma deusa muito respeitada e querida, além de ser muito elogiada pela sua justiça. Tê-la como rainha do mundo dos mortos, alegrando a vida de seu regente, era gratificante para eles, seus involuntários e desditosos súditos.
Vê-la partir assim, sem ao menos receber um adeus daquele que a amara com todo o seu coração, era para os mortos, algo revoltante, quase um sacrilégio. Eles pressentiam que a futura esposa de Hades não seria justa e correta como Nêmesis, mas sim uma deusa orgulhosa e soberba, talvez até odiosa de tudo e todos por ali.
Abriram caminho para a moça. Não conseguia olhar em seus rostos, tanto que passou cabisbaixa, os olhos pregados no chão, a tristeza novamente invadindo o seu peito. Ao chegar aos portões, não pôde evitar dizer algumas palavras:
– Eu…
Hesitou. A multidão parada, os mortos um ao lado do outro, enfileirados como soldados, esperou que a moça continuasse. O silêncio parecia maior do que o habitual e os olhos fundos de seus corpos etéreos a deixavam com uma ponta de pavor. Continuou, a voz cada vez mais firme:
– Eu fui muito bem recebida aqui. Irei levar todas as lembranças boas para todo o sempre. Apesar do que aconteceu, não estou arrependida do que fiz. Cuidem bem da próxima moça que vier. E obrigada por tudo.
Virou-se. Um dos portões abriu-se sozinho e a moça passou sem dificuldade e sem olhar para trás. Nem mesmo Cérbero teve ânimo de sair de sua caverna para brincar e obedecer a nova dona que agora ia embora para sempre. Caronte já a esperava à beira do rio, mais entristecido do que antes. As rugas de seu rosto pareciam multiplicadas com os acontecimentos.
– Eu gostava da senhora. – Murmurou. O olhar negro habitual mostrava-se ainda mais triste e resignado.
– Perdoe-me Caronte, mas não trouxe nenhuma moeda para pagar a viagem de volta. Sempre imaginei que, quando saísse daqui, Hermes me trouxesse alguma…
– Imagine, senhora. Depois de tudo o que fez pelo meu senhor, irei levá-la como cortesia. Durante toda a minha existência como barqueiro do mundo dos mortos, nunca vi o senhor Hades tão feliz como em todos os meses que passou ao seu lado. Sinto-me honrado em levá-la… E ser a última pessoa a vê-la partir.
Nêmesis deu-lhe um caloroso abraço. O velho ficou sem jeito, pois era, talvez, o único gesto de afeto que recebera durante toda a sua existência. Não deteve as lágrimas e deixou-as rolar até a sua espessa barba. Ao se separarem, ergueu a mão para a moça embarcar em seu bote.
A viagem foi ainda mais lenta do que quando chegou, mas encontrou o seu fim. As almas corriqueiras da margem de entrada, ao verem a deusa junto ao barqueiro, novamente recusaram-se a se aproximar do barco. Olharam, confusas, para a moça que em um momento mostrava-se feliz ao lado de seu amado, e que agora desaparecera escadaria acima, sob a luz fraca do sol de inverno que se iniciava.
Epílogo